Solaris,
O
filme clássico de Andrei Tarkovski, de 1972, é baseado
no romance homônimo de Stanislaw Lem (o roteiro é de Andrei
Tarkovski e de Friedrich Gorenstein). É uma produção
da extinta URSS. No filme, Kris Kelvin, interpretado por Donatas Banionis,
é um psicólogo designado para apresentar um relatório
sobre a Estação Espacial que está em órbita
do planeta Solaris. Em torno deste planeta e de seus mistérios
se constituiu uma ciência - a solarística. Na Primeira Parte do filme, Kris Kelvin, o psicólogo, considera que “a solaristica está se degenerando”. Conversando com Burton, antes de partir para a Estação Orbital de Solaris e elaborar seu relatório, diz, com ênfase: “Só me interessa a verdade. Não posso guiar-me por impulsos da alma. Não sou poeta. Tenho um objetivo concreto: tirar a estação de órbita, encerrando os estudos e legalizando a crise da solaristica ou tomar medidas extremas sujeitando o Oceano a uma irradiação intensa.” É curioso que um psicólogo diga que não pode se guiar por impulsos da alma humana, afirmando logo a seguir: “Não sou poeta” (o que demonstra a contraposição vigente entre ciência moderna x arte). Assumindo a posição do parecerista imparcial, impregnado pela objetividade e pragmatismo vigente, o psicológo Kris Kelvin busca resultados concretos. Talvez os custos financeiros elevados obrigassem o Estado a cortar verbas para o prosseguimento das investigações sobre o oceano de Solaris (tanto que, dos 86 tripulantes de Solaris, se mantinham apenas 3 na ativa). Como Burton iria dizer mais adiante, Kelvin assumia a posição do mero “contabilista” (no inicio do filme, o pai de Kris observa que o filho, imerso (e angustiado) com a ciência solaristica, ultimamente parecia "um contador fazendo suas contas"). Nesta Primeira Parte de Solaris, Kris Kelvin expressa as convicções vigentes de cariz neopositivista sobre o valor da ciência moderna. Entretanto, é perceptivel que ele vive uma crise existencial, imerso em conflitos íntimos, que iriam, só mais tarde, se manifestar, no interior da Estação orbital. Na verdade, como iremos verificar, seria Solaris, o universo desconhecido, que iria propiciar a catarse de Kris Kelvin. O diálogo entre Kris e Burton, antes da partida para a Estação Orbital, é importante, pois revela duas concepções antípodas de mundo. Burton observa, contradizendo a posição pragmática de Chris: “Quer destruir o que ainda não somos capazes de compreender? Não sou adepto do conhecimento a qualquer custo. O conhecimento só é verdadeiro quando ético”. Neste momento, Tarkovski coloca outro problema crucial – a relação ciência moderna e ética. Diante da observação de Burton, Kris responde: “Só o homem torna a ciência imoral. Lembre-se de Hiroshima.”. Mas Burton replica: “Não faça então a ciência amoral. É estranho”. Ora, o que Burton quer lembrar a Kris Kelvin é que a posição ética é intrínseca à atividade humana. Como atividade humana, a ciência não poderia ser nem imoral, nem amoral. Para ser verdadeiramente ciência precisaria ter um compromisso ético-moral. O que significa que uma ciência sem ética, baseada apenas em critérios contábeis, supostamente objetivos (e visando resultados pragmáticos), era uma fantasia tão irresponsável quanto aquela de que estava sendo acusado Burton ao relatar suas visões no oceano de Solaris. Entretanto, Kris observa para Burton: “Não tem nada de estranho [quanto a fazer uma ciência amoral].” E conclui: “Também não tem a certeza de que não foram alucinações [as visões de Burton em Solaris]”. Enfim, Kris lembra a ele que, embora a posição ética seja intrinsecamente humana, ela não nos garante nada (é quase o que disse Dostoievski: “Se Deus não existe, tudo é permitido”). Ou seja, a ética sugerida por Burton poderia ser apenas produto de uma subjetividade alucinada e baseada em valores subjetivos, portanto, arbitrários. A seguir, o psicólogo Kris Kelvin chega à Estação Orbital de Solaris, que possui ainda três tripulantes: o astrobiologo Sartorius, o especialista em cibernética Snout e o fisiologista Guibarian. Mas, chegando lá, Kris encontra um ambiente estranho, transtornado pela alucinação de seus tripulantes orbitais. Um deles – Guibarian - cometeu suicídio. Os outros vivem alucinações com pessoas que são materializaçòes de sua própria consciência. Kris Kelvin logo passa a conviver com uma dessas visitas (como seria chamada tais materializações). É a sua ex-mulher, Hary, que há cerca de dez anos, cometera suicídio. Ela é um fantasma - um espectro - dos próprios temores, medos e afetos inconscientes de Kris Kelvin. A Segunda Parte do filme tem inicio com a tentativa de Kris em se livrar de sua visita. Embora tente se livrar de Hary, ela retorna. As visitas são imortais. Ressuscitam após cada morte. Na verdade, Hary representa a materialização de um inconsciente de Kris Kelvin que resiste e se impõe. Ela é a prefiguração viva dos traumas do passado. Num certo momento, no diálogo na biblioteca da Estação Orbital, Hary irá dizer: “Para vocês [os tripulantes da Estação orbital], as visitas são uma coisa estranha e irritante. Mas as visitas são vocês próprios, são a vossa consciência.”. Kris Kelvin, não conseguindo eliminar Hary, acaba se envolvendo com ela. Cria laços afetivos. O que Tarkovski sugere é que o homem é capaz de criar laços afetivos com seus próprios fantasmas. No decorrer da narrativa, Hary se angustia com a autoconsciência de sua artificialidade e de sua humanidade incompleta. É um espectro angustiada com sua própria espectralidade. Aos poucos, Hary adquire consciência-de-si. Sente nostalgia do ser humano que nunca foi. Lamenta não possuir memórias de um tempo passado, aquelas que Kelvin possui (seria interessante, por exemplo, um contraste entre Hary e Rachel, personagem feminina de Blade Runner, de Ridley Scott). No diálogo na biblioteca, Sartorius acusa Hary de ser “uma simples réplica” [da verdadeira Hary, ex-mulher de Kris, que se suicidara], “uma repetição mecânica, uma cópia, uma imitação”. Sartorius atingira o cerne essencial das preocupações de Hari. Ela diz: “Mas eu estou me tornando humana! Não sinto menos do que você. Já posso viver sem ele [Chris Kelvin]. Eu estou amando. Sou humana.” É o amor que sente por Kris, seu “criador inconsciente”, que irá aferir o grau de humanidade de Hary. Mas ela sente os dilemas profundos do amor humano. Diz Hary: “Kris me ama. Aliás, é possível que não me ame, que apenas queria se defender de si mesmo...” E arremata: “O problema não é esse. As razões que levam o homem a amar não importam.” Enfim, o que Tarkovski está nos dizendo é que a descoberta do amor é a descoberta de suas irrazões – e mais uma vez, as razões não importam, o que importa é apenas o laço afetivo criado. Mais tarde, é Kris Kelvin que estará imerso em divagações sobre este tema eterno: “O amor é algo que nós podemos sentir. Mas nunca explicado. Só se pode explicar a idéia. O homem ama o que pode perder. A ele próprio, uma mulher, sua pátria. Até hoje, a Humanidade e a Terra ficaram fora do alcance do amor.” Antes, Kris Kelvin, num diálogo com Snout, fizera referência a Tólstoi: “ Lembra-se das atribulações de Tolstoi, que sofria por não poder amar toda a Humanidade?”. No final do filme, Hary busca se auto-destruir. Chegara à situação-limite das angústias de sua humanidade inconclusa. Novamente, podemos comparar Hary com o replicante Roy Batty (estrelado por Rudger Hauer) de Blade Runner. Ser não-humana - ou possuir a potência humana sem torná-la jamais ato - é o inferno de Hary. Entretanto, sua busca pela morte é inglória - Hary é "imortal". Ela não pertence a si própria. Nem pertence a Kris, mas tão-somente ao seu subconsciente. Só ele poderia emancipá-la deste inferno. No final, exposto a um tratamento encefalográfico, sugerido por Sartorius, Kris Kelvin submerge em suas reminiscências do passado. Como uma hipnose induzida, Kelvin adormece e sonha com sua mãe. No sonho, Hary e a mãe de Kelvin se confundem. Na verdade, ela é a própria representação da mãe de Kris. Existe uma densa relação problemática de natureza inconsciente entre Kris Kelvin e sua mãe que teria se projetado na relação dele com a ex-mulher. Num certo momento de seu sonho, Kris diz para sua mãe: "Não me lembro do teu rosto." Enfim, é um momento de plena ressonâncias freudianas na trama de Solaris. Solaris é um filme denso, complexo e metafísico. Tarkovski permeia sua narrativa filmica com divagações filosóficas. São verdadeiros monólogos do homem consigo mesmo. Os vários personagens da Estação orbital, representam as concepções de mundo de uma humanidade em crise: a humanidade negada do capital. Por exemplo, os diálogos na biblioteca da Estação Orbital são significativos. O ambiente da biblioteca é o próprio palco do mundo. Em destaque, livros e pinturas do mundo renascentista, expressões de um humanismo primordial, hoje dilacerado pela crise estrutural do capital (por exemplo, o cientista Snout cita “Dom Quixote de La Mancha”, de Cervantes e Hary, num certo momento, divaga na pintura “Os caçadores na neve” de Pieter Bruguel, expressões da cultura renascentista). Enfim, o filme Solaris é a representação alegórica da crise do homem moderno. Destacamos os diálogos do especialista em cibernetica Snout, um personagem que, a partir da sua experiência vivida e percebida na Estação orbital, torna-se totalmente cético sobre as possibilidades do conhecimento cientifico. Ele põe em questão a ciência moderna, paradigma fundamental do imaginário de vida da civilização do capital. Diz ele: “O que está lendo? Nada disto presta”. Na verdade, todo o conhecimento cientifico do homem é incapaz de explicar as visitas, materializações da própria (in)consciência humana. As visitas do filme Solaris surgem a noite, após o sono dos tripulantes. Elas aparecem e passam a conviver com eles mesmo após terem acordado. Snout divaga: “Só chegam à noite. Mas precisamos dormir. Aqui está o problema – o homem perdeu o sono.” E pede para Kris Kelvin ler uma passagem do romance clássica do renascimento burguês Dom Quixote: “Só sei uma coisa, senhor, Quando estou dormindo, desconheço o medo, as esperanças, os trabalhos e a beatitude. Agradeço a quem inventou o sono, esta única balança que iguala um pastor a um rei; um imbecil a um sábio. Mas também tem o seu lado negativo, se parece muito com a morte.” Snout diz a seguir: “Nunca antes, Sancho [Pança], você disse algo tão gracioso. Ciência? Tolice! Na nossa situação, o gênio e o medíocre, dois impotentes. Dizemos que pretendemos conquistar o Cosmos. Na realidade, só queremos aproximar a Terra das fronteiras dele. Não nos importam outros mundos. Queremos é um espelho. Procuramos muito um contato, mas nunca o encontraremos. Estamos na situação idiota de quem aspira a um objetivo que teme e que não necessita.” E exclama: “O homem precisa do homem”. É uma passagem magistral de Solaris. O especialista em cibernética Snout traduz o desencanto irremediável com a ciência moderna (é sintomático que ele seja um cientista da cibernética). Sua posição é contrária a de outro tripulante da Estação orbital, o astrobiólogo Sartorius que representa o pragmatismo responsável dos funcionários da ciência moderna. Sartorius não se sente sensibiizado pelos mistérios de Solarius. Para ele, é mera alucinação produzida pela influência do oceano de Solaris. É uma mera extravagância. Diz ele: “O homem foi criado pela Natureza para a conhecer. O homem está cada vez mais perto da verdade. Condenado a conhece-la. Todo o resto é extravagância.” De fato, Sartorius incorpora a lógica produtivista do sistema social vigente. Condena a imersão no sonho. Diz ele: “[Kelvin] Não vê além da sua ex-mulher. Passam dias deitadinhos na cama.” Ele critica Kelvin que, segundo ele, “perdeu a noção de realidade”. Diz: “É um preguiçoso, nada mais”. Por outro lado, Kris Kelvin, o psicólogo enviado para elaborar um relatório sobre o projeto Solaris, aos poucos vai-se transtornando, alterando sua percepção do mundo. De certo modo, é como se reencontrasse com Burton e suas inquietações existenciais (apresentadas na Primeira Parte do filme). Na verdade, a experiência de contato com Solaris foi catártica para Kris Kelvin. As cenas finais de Solaris estão imersas em alegorias complexas que nos fazem lembrar “2001 – Uma Odisséia no Espaço”, de Stanley Kubrick. Mas, enquanto Kubrick nos conduz pelo deep space, ao som da Valsa Danúbio Azul de Johann Strauss, quase uma celebração irônica do domínio do homem burguês sobre a Natureza, Tarkovski nos conduz pelas inquietações íntimas da alma humana. É curioso que seja um cineasta soviético, de uma sociedade pós-capitalista, comprometida com o Materialismo Histórico, que tenha nos conduzido pelas dilacerações metafísicas da alma humana. Na verdade, Andrei Tarkovski é um herdeiro do imaginário russo de Dostoievski e Tolstoi. E o que está dilacerado é a alma burguesa e a civilização do capital. No final do filme, Hary desaparece tal como veio, talvez por conta de alterações no oceano de Solaris - ou será que foi pela ação do subconsciente de Kris Kelvin?. De repente, aquele oceano vivo passou a ter "ilhas". Kelvin está numa dessa "ilhas" de Solaris, sugerindo a absorção da sua dimensão psíquica pelo oceano do planeta vivo. Andrei Tarkovski é poético e filosófico. Consegue enriquecer a trama narrativa de Stanislaw Lem, expondo através dos recursos cinemáticos, questões filosoficas de alto nível. Cinema é imagem em movimento. Talvez em Solaris haja mais imagem que movimento (o que é antípoda ao cinema de Hollywood). Na verdade, o intenso movimento está na interioridade típica dos personagens de Solaris. É através deste movimento íntimo dos personagens que Tarkovski nos apresenta suas inquietações filosóficas. Por outro lado, as imagens de Solaris são singelas, fluidas, de uma perenidade que inquieta. O filme é perpassado de detalhes significativos (a folha que flui através da correnteza do lago; a chuva repentina na casa de campo de Kris, com a Natureza expressando as dilacerações íntimas deste personagem central; os posters imensos de personalidades do Poder no salão de depoimentos da Comissão de Inquerito que entrevistava Burton, representando o comprometimento do Poder com a Ciência moderna; a queda casual de Kris Kelvin logo ao chegar na Estação orbital; a roupa inteiriça de Hary, etc). A fotografia de Vadim Yusov é belissima, com destaque para as cenas da Natureza exuberante em contraste com a civilização da Técnica. Mas é uma Natureza que se impõe ao homem. Nas imagens de abertura do filme, Kris aparece imerso na Natureza exuberante do bosque próximo a sua casa de campo. São cenas fabulosas e de uma poesia intensa. Cada imagem contém elos significativos com inquietações íntimas do personagem central - Kris Kelvin. É em torno dele que se desenvolve a trama de Solaris. Na verdade, naquela Estação orbital se encontra todo o drama reflexivo da civilização ocidental e sua crise profunda. Solaris é um filme de crise, de uma dimensão da crise orgânica do capital, da sua visão de mundo cientifica. Em Solaris, o homem está diante de seus limites. De certo modo, a temática de Solaris foi apropriada pelo filme “Contato” de Robert Zameckis (baseado num romance de Carl Sagan). Só que Tarkovski consegue ser mais denso que Hollywood.
Com Solaris, o Ocidente faz seu balanço filosófico.
O homem ou a humanidade presente através de seus tripulantes
sobreviventes (e alucinados), estão transfigurados pelas visões
de si próprio. Cada visita é a projeção
virtual dos fantasmas inconscientes de seu criador. Apenas Hary aparece
com destaque - ela é a visita do personagem central,
Kris Kelvin. As outras visitas aperecm de relance. É
curioso que a visita do astrobiólogo Sartorius, entusiasta
da visão de mundo científica, é um anão
traquina e a de Gubarian, o que cometeu suicidio, é uma jovem
adolescente. O filme Solaris começa com a experiência “mística” de Burton e termina com a de Kelvin. Depois de ter passado por Solaris, Burton não conseguiu ser mais o mesmo. Por exemplo, na primeira parte do filme, a cena de seu trajeto da casa de campo de Kris Kelvin até a metrópole, com seus fluxos de néon e de carros em alucinada velocidade, é quase que uma viagem interior. Nela, Burton parece imerso em si, sendo conduzido pela máquina. Ele deixa-se conduzir. O carro o conduz, tal como ele é conduzido pela sua experiência "mística" em Solaris. Sua expressão é de preocupação contida pois o ceticismo de Kris Kelvin o frustrou terrivelmente. Em Solaris, a presença da tela imagética é constante. É através dela que tomamos conhecimento da experiência de Burton. É através dela que sabemos da experiência trágica de Guibarian, um dos tripulantes que cometeu suicídio. É através dela que estamos, nós, entrando em contato com a narrativa de Solaris. Para Tarkovski a vida está na tela e a tela está na vida, como interfaces reflexivas de uma única experiência – a experiência de nós mesmos. Pois cada depoimento da tela diz respeito a cada um dos personagens que a assistem. Inclusive, entre os tripulantes da Estação orbital existe uma reflexão subsistente sobre o que levou Guibariam a cometer suicídio (afinal, ele não parecia ser nenhum suicida em potencial). Aquele gesto alucinado tornou-se objeto de uma reflexão filosófica no salão da biblioteca da Estação orbital. Kris observa: “ Guibarian não perdeu o ânimo. Há coisas piores ainda. Morreu porque não enxergava a saída. Não sabia que isto não acontecia apenas a ele.” E mais adiante, num de seus devaneios, dirá: “Guibarian não morreu de medo. Morreu de vergonha. A vergonha salvará a humanidade.” No filme de Tarkovski, o preto-e-branco e o colorido se sucedem, como se expressasse uma mescla de sentimentos e de percepções sobre o desconhecido (a Natureza e dentro dela, nós mesmos). Além disso, outro detalhe importante na cenografia de Solaris é a presença de ícones da modernidade e do seu imaginário cientifico (bustos de filósofos antigos, seja na casa de campo de Kelvin, seja na Estação orbital); ou até imagens de santos da Igreja ortodoxa. Enfim, estamos diante de uma justaposição quase-kitsch de ícones do tempo passado e do tempo presente. Dialogamos com o tempo futuro – Solaris é o tempo futuro, de uma situação-limite que atinge a civilização e seu dogma principal: a Razão clássica tal como se constituiu desde Sócrates (os bustos parecem ser de filósofos gregos antigos). Ciência, Arte, Religião – existe um intenso diálogo entre as formas supremas de virtualização do homem. Ao centro, o homem e suas inquietações existenciais. Por exemplo, um dos grandes temas filosóficos de Solaris são suas reflexões sobre o amor, o afeto universal que une pessoas, criador de laços societários através do tempo. Aliás, foi o tempo ao lado de Hary - tempo passado e tempo presente – que constituiu seus laços de afetividade com sua visita. Scout já disse: “Se ela passar muito tempo ao teu lado, ela se tornará humana”. Na verdade, em Tarkovski, o tempo constitui o ser humano, pois é com ele que se sedimenta os laços de amor. Como diz Saint-Exupéry (no conto “O Pequeno Príncipe”): para se cativar é preciso ter tempo. Existe um tratado sobre o amor em Solaris. Como já destacamos acima, é Kris Kelvin que diz que o homem ama o que pode perder – eis novamente Exupéry. Ou ainda: “Eu estou me tornando humana, eu estou amando.”
É interessante que as visitas apareçam após
os tripulantes adormecerem. Ao acordarem, elas estão lá,
presentes, diante de deles, como se os sonhos extrapolassem
o momento do sono e se materializassem diante dos tripulantes. Para
sonhar, é preciso que adormeçamos. As visitas
eram sonhos diurnos. Na cena da biblioteca, Scout dissera: “Aqui
está o problema - o homem perdeu o sono”. Se perdeu o sono,
torna-se incapaz de sonhar, pois em Solaris, o sonho diurno
deriva do sonho noturno;é parte (e extensão) dele. Com
Tarkovski, Sigmund Freud – e sua Interpretação
dos Sonhos, e Ernst Bloch, com suas reflexões sobre as utopias
como sonhos diurnos, dialogam intensamente. Em Solaris, o inconsciente
tornou-se carne, como o Espírito Santo e o Cristo dos Evangelhos.
Solaris exibe a parousia do inconsciente humano, que
– com isso - deixa de ser inconsciente. Torna-se autoconsciência
de um vazio criado pela civilização do Capital e da Técnica.
Kelvin diz para Snout: “ Escuta, Snout, por que ele [o oceano
de Solaris] nos tortura tanto? Perdemos nossa percepção
do Cosmo. Os Antigos não tiveram este problema. Nunca perguntaram
porquê. Lembra do Mito de Sísifo...?” . Giovanni
Alves (2004)
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