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Segunda-Feira
Ao Sol,
(Los Lunes Ao Sol)
de Fernando Léon de Aranoa
(2002)
Eixo
Temático
O
desenvolvimento da mundialização do capital e
do capitalismo global, a partir da década de 1980, implicou
numa nova divisão internacional do trabalho, com impacto
significativos em alguns setores industriais nos países
capitalistas do Primeiro Mundo, como, por exemplo, Espanha e
Reino Unido. Ocorreu um agudo processo de desindustrialização
e de reconversão produtiva que atingiu o mundo do trabalho,
contribuindo para o aumento significativo do desemprego em massa
e do desemprego de longa duração e da precarização
do trabalho. Surgiram formas agudas de estranhamento da força
de trabalho em virtude da sua desvalorização como
mercadoria. Um grande contingente de ex-operários foram
obrigados a buscar inserções precárias
no mercado de trabalho no setor de serviços em expansão.
Enfim, eles foram vítimas da globalização
do capital e das mutações do capitalismo global,
marcado pela financeirização exarcebada
e pela constituição da sociedade em rede.
Nessa nova etapa de desenvolvimento do sistema munbdial do capital
se engendra uma nova dinâmica social caracterizada pelo
sócio-metabolismo da barbarie, isto é, pela aguda
dessocialização de amplos contingentes
da sociedade do trabalho estranhado.
Temas-chaves:
trabalho assalariado, reestruturação produtiva;
desemprego, precarização do trabalho, capitalismo
global.
Filmes
relacionados: “Ou Tudo Ou Nada", de Peter Cattaneo;
"Pão e Rosas", de Ken Loach;"O Adversário",
de Nicole Garcia; "A Agenda", de Laurent Cantet.
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Análise
do Filme
Numa
pequena cidade industrial ao norte da Espanha, na região da Galicia,
um grupo de amigos, ex-operários metalúrgicos da indústria
naval (Santa, José, Lino e Amador), se reúnem no bar Naval,
pequeno bar de outro ex-operário (Rico), onde conversam e compartilham
frustrações e esperanças. Na verdade, em torno
do bar Naval gravitam as narrativas dramáticas destes homens,
vítimas do desemprego de longa duração, que giram,
como astros excêntricos, no sistema solar do capital.
Um dos principais personagens é Santa, interpretado por Javier
Barden, homem solitário, apesar de sociável e de espírito
solidário. É ex-liderança sindical de base, de
personalidade marcante, organizador nato, “intelectual orgânico”
de um coletivo de trabalho desestruturado pela reestruturação
produtiva. O estaleiro naval em que trabalhavam – estaleiro Aurora
- foi adquirido (e desativado) por investidores coreanos, que pretendem
construir no local, um hotel turístico de alto luxo.
O diretor Fernando Leon de Aranoa, expõe com lirismo, humor e
angústia, a fenomenologia da tragédia social (e pessoal)
do desemprego. O filme expõe desesperos, alegrias e ansiedades,
que Aranoa traduz com desenvoltura ao som do acordeão lírico
de Lucio Godoy. Estamos diante de uma narrativa singela, mas complexa;
de múltiplos significados metafóricos, a partir dos quais
podemos apreender nexos singulares (e particulares) da sociabilidade
estranhada do capital.
Na verdade, através da narrativa filmica de Aranoa, constatamos
que a situação social de desemprego – e o filme
trata do desemprego de longa duração, de homens e mulheres
inempregáveis, que não conseguem encontrar um lugar ao
sol - tende a ocultar uma miríade de dramas pessoais singulares,
de subjetividades negadas e, ao mesmo tempo, convulsionadas por uma
contradição candente da ordem sócio-metabólica
do capital em sua etapa de crise estrutural – isto é, a
sociedade burguesa é sociedade do trabalho – trabalho abstrato,
mas reproduz, numa escala ampliada, o não-trabalho. O que significa
que, em sua etapa de crise estrutural, é candente o movimento
de negação do trabalho vivo pelo trabalho abstrato, o
tipo de trabalho que produz valor, telos estranhado da processualidade
sistêmica do capital.
O desemprego, como expressão social da sociedade do trabalho
abstrato, isto é, trabalho estranhado, que produz valor, é,
em si, uma mera abstração, que oculta, por trás
de seus indicadores estatísticos, números-fetiches que
começam a dançar por sua própria iniciativa, dramas
pessoais singulares de negação em processo, do ser humano-genérico.
O que observamos em “Segunda-Feira Ao Sol” são homens-inertes,
personalidades suprimidas ou transfiguradas, subprodutos desta inércia
do capital em movimento. Assim, o que Aranoa nos apresenta, através
de sua narrativa, é a desfetichização do significado
do desemprego estrutural. O drama pessoal-singular de Santa, Lino, José,
Amador (e Serguei) traz à luz, escombros do trabalho vivo dilacerado
pelos densos sedimentos do trabalho abstrato que os sufoca.
Enquanto indivíduos de classe, os personagens principais de “Segunda-Feira
Ao Sol”, estão submersos na zona de contingência.
Na verdade, o desemprego é a contingência suprema, pois
Santa, José, Lino, Amador e Serguei não conseguem vislumbrar,
a partir de si e da classe social que representam, a negação
da negação. São meros fragmentos de pessoas humanas,
de poeira social de uma fratura exposta da totalidade viva do trabalho.
O filme de Aranoa nos faz um convite à reflexão sobre
a natureza objetiva e subjetiva do desemprego nas sociedades capitalistas
tardias. Ele nos sugere uma fenomenologia do desemprego estrutural.
O que significa que aqueles ex-operários metalúrgicos
da indústria navais não perderam apenas, de forma irremediável,
seu emprego no estaleiro Aurora, mas seu posto de trabalho. De nada
valem suas habilidades profissionais, pois aquele pólo de indústria
naval foi extinto. São obrigados a buscar empregos precários
em outras atividades de trabalho. O mercado de trabalho, como um deus
ex-machina, os obriga a uma reconversão profissional (caso queiram
ter empregabilidade, como diz o jargão ideológico).
A busca
de emprego
Logo
na primeira cena de “Segunda-Feira Ao Sol”, no ferryboat
Lady Espana, da estação de Ria, que os conduz ao outro
lado da cidade, sob o sol de segunda-feira, Santa, José e Lino
começam a semana buscando dar um sentido à vida. Na sociedade
do trabalho, o “sentido à vida” é dado através
da busca de...trabalho. Enquanto José preenche um bilhete de
loteria e Santa, que entra no ferryboat sem dar o bilhete, discute com
o bilheteiro, Lino lê no jornal, um aviso de emprego e se defronta
com os requisitos de contratação que tendem a excluir
do mercado de trabalho homens como ele – desempregado de meia-idade.
Exige-se, por exemplo, boa aparência, limite de idade, carro próprio
e conhecimentos de informática.
No decorrer de todo o filme, Lino se prepara para a entrevista, com
ansiedade, buscando acreditar que ainda existe uma esperança
de emprego digno. Próximo da tão-esperada entrevista,
ele coloca tintura no cabelo para aparecer mais jovem. Inclusive tenta
aprender noções de informática com o filho adolescente.
Na verdade, Lino sabe que o mercado de trabalho possui regras perversas
– exige novas qualificações e exclui homens (e mulheres)
mais velhos.
O personagem Lino parece possuir uma família estruturada. Sua
mulher é do lar, não está no mercado de trabalho.
No filme, não transparece nenhuma crise conjugal. Na verdade,
a única sombra de angústia é a falta de emprego,
fonte de identidade social e de renda monetária. O filho adolescente
de Lino, quase adulto, tal como o pai, parece ser um jovem desempregado,
imerso em empregos precários ou “bicos” ocasionais.
Na verdade, os pais não sabem por onde ele anda. É interessante
que em “Segunda-Feira Ao Sol”, pai e filho se encontrem
na mesma encruzilhada da sociedade do capital.
Nos paises capitalistas centrais, o desemprego estrutural é maior
entre jovens e homens de meia-idade. É, por isso, o caso de Lino
e seu filho. Lino parece ser um espectro do passado fordista nos segmentos
mais qualificados da classe operária. Talvez ele tivesse sido
um gerente de pessoal do estaleiro Aurora, ocupando um cargo de chefia
que lhe dava melhor remuneração. Sua estrutura familiar
tende a refletir tal ideal fordista clássico - o homem ia para
a fábrica e a mulher cuidava do lar e dos filhos. Mas, com o
desemprego de Lino, homem- provedor, a família vive às
custas do seguro-desemprego.
A Entrevista
Entretanto,
se Lino “caça”, com ansiedade, entrevistas de emprego,
assumindo o papel de personagem que ainda acredita numa inserção
formal no mercado de trabalho, o outro personagem, José, está
imerso numa crise de identidade social e numa crise conjugal anunciada.
Um detalhe: a idéia de “caçar” empregos expõe
o sentido regressivo de produtores intervertidos em “caçadores”
no deserto árido do capital, expostos ao sol escaldante.
Ora, em “Segunda-Feira Ao Sol” as metáforas naturais
são inúmeras, a começar pelo próprio título.
Tal recurso estilístico de Aranoa sugere que a sociedade burguesa
tardia, ao fechar os horizontes da modernização, tendeu
a se naturalizar, ou melhor, quase-impõe a homens e mulheres
uma segunda natureza, estranhada e fetichizada. E outra coisa: numa
situação de crise estrutural do capital, o fetichismo
da mercadoria tende a se agudizar. Por isso, tendemos a perder a consciência
histórica, a ficarmos inertes na presentificação
crônica. Imersos em valores-fetiches e objetos-fetiches, tendemos
a considerar tudo natural...Enfim, o fetichismo da mercadoria, germe
de toda forma de fetichismo social no mundo burguês, é
um tipo de naturalização perversa, tendo em vista que
aparece com maior intensidade e amplitude no mais alto estágio
de desenvolvimento civilizatório. Deste modo, a forma analógica
ou metafórica em “Segunda-Feira Ao Sol”, tende a
sugerir algo mais que a mera figura de linguagem.
Vejamos o drama íntimo do personagem José, outro ex-metalúrgico
naval. Ele é casado com Ana, operária com estatuto salarial
precário, da indústria de conservas de atum, que trabalha
no turno da noite, em condições degradantes. Ana sofre
com dores nas pernas, pois é obrigada a ficar quase oito horas
em pé na linha de produção. Em sua primeira cena
no filme, Ana aparece tirando o odor de peixe do corpo. Talvez seja
sua rotina cotidiana ao chegar em casa, logo no alvorecer do dia, após
a jornada de trabalho.
José não é mais o provedor na relação
de casal. Tal como o personagem Dave, (do filme “Ou Tudo Ou Nada”,
de Peter Cattaneo), José é um homem deslocado em todos
os sentidos – do mercado de trabalho e do mercado de afetos. Ele
está inseguro a respeito dos sentimentos da mulher Ana. Ela trabalha
e José, não. Mas em “Segunda-Feira Ao Sol”,
José é um personagem inerte – apenas divaga, ao
lado de Santa e dos companheiros de bar. Por exemplo, logo na abertura
do filme, aparece preenchendo um bilhete de loteria. Talvez não
se iluda mais com os anúncios de emprego ou a ideologia da empregabilidade.
Busca a sorte – afinal, vive-se no mundo da suprema contingência.
É perceptível em José certa indignação
contra a ordem do capital e seus constrangimentos sistêmicos.
Não alimenta mais certos tipos de ilusão. É o que
explica, por exemplo, sua rebeldia inusitada diante do gerente do banco,
quando, certa manhã, ao lado de Ana, foi tentar contrair um empréstimo
de US$ 8.000 (talvez buscando, sob pressão da mulher, montar
um pequeno negócio). José não se indigna com a
documentação exigida, mas sim, ele se rebela contra a
sociedade da simulação e do engodo - o banco simula que
analisa as solicitações de empréstimos, não
deixando de ser isto mais um engodo (e preconceitos) com homens e mulheres
sem capacidade aquisitiva. O anuncia dizia ser fácil a obtenção
de empréstimos. “Sabe como é que são os anúncios...”,
diz o gerente do banco.
Indignação
contra o capital financeiro
Tal
como a sociedade do trabalho abstrato que simula oferecer empregos (e
nos ilude com a ideologia da empregabilidade), quando, ao mesmo tempo,
elimina postos de trabalho à exaustão, através
das inovações tecnológicas e organizacionais. José
exclama, depois para Ana: “Acha que somos retardados porque não
temos dinheiro...”. E Ana pondera: “Em que mundo vives?
É assim que funciona...”.
O diálogo de José e Ana sugere um contraste de atitudes
pessoais diante do mundo do capital. De fato, Ana busca apenas se adaptar
ao mundo existente. Ela adota uma atitude pragmática. É
interessante que, pouco antes, num diálogo com o personagem Santa,
a jovem de 15 anos, Nata, filha de Rico, tenha dito para ele, após
cobrar uma comissão por um bico que conseguira para Santa: “O
mundo é assim, Santa. Caia na real!”. Através da
intervenção destas duas mulheres de gerações
diferentes – Ana e Nata – conseguimos apreender a natureza
do mundo burguês – isto é, simulação
e interesse são elementos estruturais da sociabilidade estranhada
que permeia as relações de negócios e as relações
afetivas no mundo do capital.
Podemos nos interrogar: existiria uma questão de gênero
neste contraste de atitudes pessoais que salientamos acima? Talvez em
Aranoa, as mulheres tendam a serem mais pragmáticas diante do
mundo ilusório do capital. Estão sempre alertando os homens
“É assim que funciona..” Ou então: “Caia
na real..”.
O pragmatismo
das mulheres
No
silencio de José - pois ele é um personagem quase-calado
no filme, tal como Amador, seu parceiro do bar Naval – tende a
se ocultar uma aguda indignação contra a sociedade do
simulacro. Talvez Santa, José e Amador consigam vislumbrar, através
de seus trágicos dramas pessoais, a verdade do ser do mundo burguês.
São homens trágicos no sentido clássico, meros
fragmentos de um trabalhador coletivo desestruturado, imersos na contingência
do desemprego estrutural. Tal como Santa e Amador, José parece
não aceitar mais as fábulas da modernidade estranhada.
O personagem Santa, tal como José, também divaga, a seu
modo. Ele é a figuração típica de um proletário
industrial, ex-soldador metalúrgico, que trabalhou no estaleiro
Aurora por quatro anos e conseguiu ser líder operário.
Santa não apenas divaga, mas blefa e goza. Por exemplo, para
cortejar Ângela, a moça vendedora de queijo suíço
no supermercado, diz ser especialista em queijo. Inclusive, blefa dizendo
saber falar suíço (diz que “spreguel” significa
tanto “Muito prazer” em suíço, como também
é usado para se despedir). Santa diz saber pilotar um barco,
apesar de só ter ocupado o posto de cozinheiro num barco.
Além disso, Santa brinca com os significados das palavras, dizendo
conhecer sua etimologia (é o que faz com a palavra “critério”
e “antípodas”, por exemplo. Mas ele apenas blefa,
ao dizer que “critério” vem do latim “criterium”
e significa...”critério”. Com “antípodas”,
diz significar “anti-podas”, “o contrário”.
Aliás, Santa constrói sua própria simulação.
Talvez seja sua forma de resistência íntima à lógica
da simulação estrutural. Santa é quase um Dom Quixote
de la Mancha, embora consiga discernir, com clareza, o que é
real e o que é imaginário. Santa possui sonhos e cria
fantasias para si e para os outros. Talvez não acredite nelas,
mas elas traduzem a sabedoria própria de uma desilusão.
Deste modo, enquanto José quase se cala, Santa fantasia, com
muito humor e indignação. O personagem de Javier Barden
é um personagem cativante, que nos envolve com sua humanidade
obliterada. Na verdade, ele possui uma função heurística
em “Segunda-Feira Ao Sol”: desvelar as contradições
sociais, expondo-as, sem o saber, como pequenas tragédias civilizatórias
(como, por exemplo, no caso da indenização da luminária),
ou ainda, através do humor corrosivo, ao criticar, nos pequenos
detalhes cotidianos, a sociedade burguesa como a sociedade da simulação
e do engodo (por exemplo, em certo momento, no bar Naval, após
Lino, vindo de uma entrevista, dizer que “talvez liguem”
para ele confirmando a contratação, Santa exclama: “...brindemos
a “talvez liguem””).
O personagem Santa transgride, sempre que pode, como um Carlitos pós-moderno,
o valor de troca. É expressão de sua condição
irremediável: é um homem despossuido de capacidade aquisitiva.
Por exemplo, logo no inicio do filme, entra no ferryboat sem apresentar
o bilhete. Bebe sem pagar no bar Naval, utilizando-se inclusive do caça-níquel
e come batatinhas fritas no supermercado. Na verdade, para sobreviver,
Santa simula e engoda - engana a dona da pensão, dizendo que
a amante que freqüenta seu quarto na pensão, é sua
irmã. Entretanto, é importante salientar que, sua simulação
e engodo não significam exploração do próximo.
Pelo contrário, o que Santa busca é socializar territórios
e compartilhar interesses comuns.
Santa cria fantasias. Por exemplo, sobre a Austrália (para Lino),
sobre a socialização do estaleiro Aurora (para Lazarito,
o vigia); e contesta a burocracia estatal com humor corrosivo (num certo
momento, na agência estatal de emprego, ele nos diz: “Já
que não nos dão trabalho, podiam nos dar uma chupada”.
Em “Segunda-Feira Ao Sol”, a critica da ordem burocrática
e do Estado político do capital, o suposto Estado-Providência,
é flagrante, por exemplo, numa cena em que um trabalhador desempregado
não tem acesso ao beneficio porque não possui ainda a
documentação necessária.
Mas um drama trágico – e quase cômico – persegue
Santa em “Segunda-Feira Ao Sol”. Ele é obrigado,
por ordem judicial, a ressarcir uma lâmpada destruída num
ato de protesto contra o fechamento do estaleiro Aurora. O detalhe do
valor da indenização de US$ 40.00 expõe o caráter
disciplinar da justiça burguesa. Na verdade, Santa é obrigado
a pagar menos pelo valor monetário em si e mais pela penalização
do atentado contra a propriedade privada. A tibieza do advogado de Santa,
incapaz de contra-argumentar e defender o cliente, e a lógica
obtusa do juiz, expõe, em poucos minutos, a engrenagem da justiça
do capital. Estamos diante de uma situação absurda, quase
non-sense, que oculta uma lógica férrea (e abstrata) de
dominação e de manipulação (a lógica
abstrata da justiça burguesa é flagrante, por exemplo,
quando o juiz se recusa a considerar o contexto em que ocorreu o incidente
– Santa quebrou a luminária durante a manifestação
grevista).
Mais uma vez, “Segunda-Feira Ao Sol” desvela a ilusão
da justiça burguesa, tal como desvelara a ilusão da empregabilidade.
Enfim, o mundo do capital é o mundo das ilusões perdidas.
Por exemplo, ao voltar a quebrar outra luminária Urban Light,
diante do prédio da empresa, após pagar a indenização,
Santa impõe sua resistência íntima às engrenagens
férreas do sistema do capital. Na verdade, ele volta a abstração
da justiça burguesa contra ela própria. Nesse caso, o
que vale é o ato moral. É claro que o gesto solitário
de Santa não possui, em si, uma dimensão política.
É quase um gesto pré-político, um ato de vandalismo,
solitário e anônimo. Mas possui para o personagem Santa
um significado concreto de valor íntimo profundo. Seu gesto solitário
– quase um ato de vingança íntima - é um
modo de afirmação de uma subjetividade que resiste à
lógica sistêmica do capital.
Aliás, como sujeito que resiste, o personagem Santa condensa
em si, a experiência concreta da luta de classes e da sua derrota
política e sindical. Não nos esqueçamos que, na
abertura do filme, Aranoa nos apresenta, numa cena de quase-documentário,
ao som do acordeão de Lucio Godoy, elementos da resistência
de classe dos metalúrgicos navais contra o fechamento do estaleiro
Aurora. Primeiro, a passeata, a barricada e depois, sua dissolução
através de repressão policial, que utiliza gás
lacrimogêneo, sugerindo uma névoa de terror que nos transporta
para um mundo pós-moderno. Ao encerrar o ato de abertura com
uma nevoa branca, Aranoa expõem a conclusão de uma temporalidade
histórica, de luta de classes, de organização através
de local de trabalho (comitês de empresas) e de luta contra a
extinção da empresa.
Sob a Névoa
do Capitalismo Global
Entretanto,
as marcas do tempo passado de luta de classe continuam presentes no
decorrer do filme, não apenas através da presença
(e do drama trágico) dos ex-operários metalúrgicos
(Santa, José, Lino e Amador), mas das pichações
nos muros (Naval em Lucha, por exemplo) que se contrastam com o abandono
(e a demolição) do estaleiro desativado. São marcas
visíveis de um passado que se desenrola, diante de nós,
como um presente trágico dos personagens principais de “Segunda-Feira
Ao Sol”.
A presença dos elementos midiaticos, que compõem o cotidiano
da reprodução social no capitalismo tardio, é flagrante
no filme de Aranoa. São apresentados, em geral, como elementos
de manipulação e de simulação, de ilusionismo
social, como, por exemplo, os programas de TV, reais ou simulados (como
não poderia deixar de ser, Santa brinca com seus parceiros de
bar através da simulação de um programa de TV).
Noutra cena magistral, ao assistirem o futebol, com a visão pela
metade, Aranoa sugere a desefetivação parcial do trabalhador
desempregado, que só tem acesso à metade da realidade.
Apesar disso, eles simulam que assistiram toda a cena da jogada e do
gol. Exclamam: “Que golaço!”, mesmo não tendo
acompanhado sua conclusão derradeira. Nesta cena, Serguei, imigrante
soviético desempregado, imerso em reminiscências do passado
glorioso da ex-URSS, nos fala do goleiro Yashin, o aranha negra. Na
verdade, os ex-operários metalúrgicos perderam não
apenas a perspectiva de emprego, mas a dimensão política
de utopia social, contida na promessa frustrada do socialismo real.
Metáforas e parábolas compõem “Segunda-Feira
Ao Sol”. Podemos identificar uma série delas, que buscam
transmitir a tragédia do desemprego estrutural em suas múltiplas
dimensões. Primeiro, o próprio título do filme
é uma metáfora. O sol – o astro central do nosso
sistema planetário – nos dá vida, mas também
pode significar morte; é o prenuncio de um novo dia, de uma Aurora
(que, inclusive é nome do estaleiro fechado); mas que, por exemplo,
para o jovem Icaro, personagem da mitologia grega, significou morte.
Ícaro buscou alçar vôo e teve suas asas derretidas
pelo calor do sol, assim nos diz a lenda. Talvez Aranoa esteja sugerindo,
sem o saber, que a mera luta sindical-corporativa – em “Segunda-Feira
Ao Sol” não aparecem partidos políticos de classe
– é tão inglória quanto o vôo de Ícaro.
A Cigarra
e a Formiga
Depois,
algumas parábolas e fábulas se destacam em “Segunda-Feira
Ao Sol”, tais como a da fábula “A Cigarra e a Formiga”,
lida por Santa ao acalentar a criança; ou ainda a parábola
dos irmãos siameses (contada por Amador). Através delas,
com poesia, Aranoa nos diz algo sobre a lógica sistêmica
do capital e a tragédia dos anos de chumbo do neoliberalismo
e da globalização. É do relato de homens partidos
que podemos apreender, de modo sinuoso e elíptico, o significado
sombrio dos novos tempos.
É claro que Santa e os demais colegas desempregados sabem disso
– mas, em si, não conseguem apreender a negação
da negação. Na verdade, não têm perspectivas
coletivas de negar, através do movimento social e da política,
a lógica sistêmica do mercado que se impõe. Esta
é a tragédia expressa através do monologo de Amador
sobre Deus. Pois, se não há a “negação
da negação”, mesmo como possibilidade concreta,
é porque Deus não existe e, como diz o ex-metalúrgico,
mesmo se existisse, não acreditaria em nós (Dostoieveky
dizia: “se Deus não existe, tudo é permitido”)
Outra parábola (ou sonho) curioso em “Segunda-Feira Ao
Sol” é a parábola da Austrália como um lugar
distante e um sonho de felicidade. A Austrália é, no imaginário
de Santa, em seu diálogo com Lino, sob o sol de segunda-feira,
um lugar do sonho. Talvez seja o Eldorado, contido na imaginação
sonhadora dos velhos espanhóis, navegantes desbravadores dos
primórdios da modernidade do capital. Não podemos esquecer
que a Espanha, em tempos idos, no século XV e XVI, foi potência
imperial, onde a indústria naval construiu caravelas grandiosas
que desbravaram o Novo Mundo e abriraram a aurora da modernidade do
capital.
O personagem Amador é um personagem interessante. É a
própria expressão da desefetivação proletária.
Ele expõe a situação-limite dos parceiros desempregados
do Bar Naval. Amador é a síntese do Nada, da completa
perda de sentido de realidade, em si, mas não para si, pois através
dele, em seu diálogo, ele divaga de modo elíptico e parabólico,
sobre a essência da forma de ser do mundo burguês. O suicídio
enigmático de Amador – suicídio ou queda repentina?
– traduz o ponto final de uma vida sem sentido – vale dizer,
sem sentido, mas, como salientamos, com plena consciência de si,
dos impasses da condição pós-moderna. Amador talvez
tenha sido como Santa, um grande agitador sindical, no local de trabalho.
No decorrer do filme, ele oculta de seus companheiros que foi abandonado
pela mulher. Sentado num cantinho no balcão do bar Naval, é
um tipo calado e solitário. Enfim, não possui mais gana
de viver.
Amador tem um tique neurótico-obsessivo. Ele sempre implica com
a luminária do banheiro do bar, que possui um temporizador. A
luz não se apaga ao sair, mas depois de um certo tempo. Amador
não entende a lógica do temporizador. Supõe que
ela gasta mais energia elétrica. Mas eis mais uma metáfora
de Aranoa: o que é o homem desempregado? Por que ele não
se apaga mesmo após ser desligado de sua fonte de vida, o trabalho?
Talvez Amador tenha decidido apagar sua própria luz. É
interessante que, no velório de Amador, o último a sair
foi Santa que esquece – e volta logo a seguir – para apagar
a luz. Outra fato curioso: os companheiros de amador perdem sua urna
funerária. Perdido na vida. Perdido na morte.
Os desdobramentos derradeiros de “Segunda-Feira Ao Sol”,
expõem os impasses de vida dos personagens. Eles não conseguem
ir além de si próprios. São homens e mulheres demasiadamente
territorializados – inclusive em seus afetos - que se contrastam,
por exemplo, com a modernidade do capital, tão fugaz quanto liquida
(ou gasosa). Em tempos de globalização, só resta
aos desempregados, expressão suprema desta territorialziação
precária, homens com pés-de-chumbo, “volare”
(ou seja, voar) como diz a canção dos Gipsy King, cantada
no bar-karaokê por Lino, Nata, Santa, Rico e José. Diz
a música: “Y volando, volando feliz/Yo me encuentro mas
alto /Mas alto que el sol/Y mientras que el mundo/Se aleja despacio
de mi/Una musica dulce Se ha tocada solo para mi.”
No final, Ana não consegue deixar José. No decorrer do
filme é visível a relação conjugal insatisfatória.
Ela está decidida a deixá-lo, mas após ouvir o
pequeno relato da vida de Amador, contado por José, ela desiste.
Ela teme que José possa seguir o mesmo caminho do amigo de bar
– cometer suicídio. É amor ou compaixão?
Talvez as duas coisas a liguem a José.
Precarização
do sentido de temporalidade
Lino
não tem coragem de ser entrevistado e deixa passar a sua vez
ao ser chamado. Talvez, naquele momento, ele tenha vislumbrado a lógica
ilusionista da suposta empregabilidade. Teria ele se recusado a cumprir
mais uma farsa? Farsa por farsa, Santa, ao visitar o estaleiro abandonado,
conta, mais uma vez, uma fantasia para Lazarito, o vigia. Diz que os
proprietários vão sortear os lotes do ex-estaleiro para
os trabalhadores. É o “socialismo fantástico”
de Santa. Ele fala com firmeza. O gesto final é o batismo imaginário,
com uma garrafa de cerveja, de uma navio abandonado. Ao batiza-lo, Santa
reafirma, no plano do imaginário, um território do sonho,
o sonho de uma subjetividade que resiste. Na verdade, a quebra da luminária
e o batismo do navio abandonado por Santa expõe pequenos gestos
pré-politicos desta subjetividade contingente que tenta sobreviver
como pessoa humana.
Aliás, ao perder a noção de tempo, os desempregados
tendem a expressar uma forma de desefetivação. Homens
e mulheres desempregados são indivíduos humano-pessoais
afetados de negação. No filme, por exemplo, é Santa
quem sempre se interroga: “que dia é hoje?”. E, aliás,
todo dia é segunda-feira ao sol.
Um detalhe: o humor do personagem Serguei, o desemprego soviético
em “Segunda-Feira Ao Sol” nos cativa, primeiro, pela ingenuidade
lancinante, quase expressão da idéia de um socialismo
num só país; e depois pela tragédia que sugere
o desmonte de uma fantasia – “socialismo real”.
©Giovanni
Alves (2005)
Clique
Aqui para visualizar abertura em flash
do site oficil do Filme "Los Lunes Ao Sol",
com a bela trilha musical de Lucio Godoy.
(ATENÇÃO:
Esta análise de filme é parte do Projeto
de Extensão Tela Crítica 2005)
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