"O Salário do Mêdo",
(Le Salaire de La Peur)

de Henri-George Clouzot
(1953)

Eixo Temático

A sociedade burguesa hipertardia é uma sociedade do risco e do medo. É claro que risco, medo e precariedade são determinações estruturais do trabalho vivo nas condições sócio-historicas do modo de produção capitalista. Eles têm caracterizado a sociabilidade capitalista desde seus primórdios. Entretanto, nos últimos trinta anos de crise estrutural do capital, situações de risco e de medo têm assumido dimensões ampliadas no mundo do trabalho e da reprodução social. Surgem múltiplas formas qualitativamnete novas de risco e insegurança do trabalho: insegurança no emprego, no salário, na seguridade social e na representação sindical, como podemos observar não apenas nos países capitalistas do Terceiro Mundo, mas hoje também, do Primeiro Mundo. Entretanto, insegurança e precariedade atingem também a dimensão da subjetividade do homem, instituindo formas particulares-concreta de sócio-metabolismo da barbárie. Podemos até dizer que hoje, o medo tende a ser o afeto da alma humana capaz de constituir a mediação subjetiva das novas formas do consentimento do capitalismo global. Assume várias formas de ser, de acordo com a experiência de vida e as múltiplas temporalidades – passado, presente e futuro – do sujeito estranhado. Ele assume novas configurações psicossociais nas condições históricas da sociedade mercantil desenvolvida e nas subjetividades complexas.

Temas-chave: precariedade e precarização do trabalho, modernização do capital e sociedade de risco, capitalismo e trabalho estranhado.

Filmes relacionados: “O comboio do medo”, de William Friedkin(1973).

Análise do Filme

Num país miserável da América Central (Guatemala), quatro homens são selecionados para transportar uma imensa carga de explosivos (200 galões de nitroglicerina) destinada a extinguir um incêndio num poço de petróleo da SOC (Southern Oil Company), por uma estrada de difícil acesso. Thriller de suspense de George-Henri Clouzout, produzido em 1953 e baseado no romance homônimo de Georges Arnaud (Clouzot fez a adaptação e os diálogos do filme).

Num primeiro momento, Clouzot nos apresenta Las Piedras, pequena cidade degradada pela miséria e abandono completo no interior da Guatemala, cuja única atividade produtiva é estar próximo da exploração de petróleo da SOC, companhia petrolífera norte-americana. É em Las Piedras que se encontra a sede regional da SOC. O calor, desemprego, subemprego e miséria, assolam a pequena cidade. Ruas esburacadas, sem pavimentação, cheias de poças d’água estagnada, com vira-latas transitando com indolência.

Logo nas primeiras cenas, Clouzout expõe a síntese cruel daquele cenário urbano degradado onde irá se desenrolar o thriller em seus primeiros momentos: uma criança nativa brinca com insetos numa poça de lama. A seguir, vislumbra-se o cenário de subdesenvolvimento absoluto. Ao lado de transeuntes miseráveis, vê-se alguém pedindo esmolas. Uma mulher carrega uma lata d’água na cabeça (é provável que não exista saneamento básico em Las Piedras). Uma senhora idosa vende algum petisco num carrinho. Aos seus pés, um vira-lata atento ao que se passa. Enfim, o thriller de O Salário do Mêdo passa-se num cenário de subdesenvolvimento perverso, típica "República das Bananas", quintal do imperialismo yankee. É o cenário pleno da exceção da modernização capitalista. É nele que se desenrola o drama existencial de homens estranhados imerso num thriller de mêdo e de angústia.

Ao abrir o filme com a cena da criança brincando com insetos numa poça de lama, Clouzot traduz numa imagem o drama existencial de O Salário do Medo. É a metáfora da barbárie social. O recurso metafórico da bárbarie humana, em sua forma primordial, foi utilizado também, por exemplo, nas primeiras cenas de "Meu ódio será sua herança”, de Sam Peckinpah (de 1969), em que crianças assistem com satisfação um escorpião ser devorado por formigas do deserto.


Enfim, as primeiras imagens de O Salário do Medo expõem a aguda precariedade das condições de vida social no lugarejo do interior da Guatemala. Tal impressão de miséria humana está com vigor no romance de Georges Arnaud que, como epigrafe diz-nos: “”Não queiram encontrar neste livro aquela exatidão geográfica que não passa de um logro: a Guatemala, por exemplo, não existe. Eu sei-o, vivi lá.”

Talvez Clouzot, ao utilizar o best-seller de Arnoud quisesse elaborar uma metáfora sobre a condição humana (existe certo clima existencialista no thriller de Clouzot), ou ainda, apresentar para as sociedades européias do centro capitalista, o lado oculto da civilização do capital (estamos em 1953 e o Terceiro Mundo ainda era um Outro Mundo).

Mas, a presença de uma multinacional do Petróleo expõe o caráter moderno da miséria de Las Pedras (Mario, um dos personagens do filme, irá dizer: “Onde tem petróleo, tem americanos”). A SOC explora a força de trabalho dos indígenas e enfrenta a resistência do sindicato local (ao ocorrer a explosão no poços de petróleo, por exemplo, o sindicato local, liderado por uma mulher nativa, faz uma manifestação na sede da empresa, em Las Piedras, denunciando a morte de trabalhadores indígenas). A presença de indígenas nativos é marcante em algumas cenas de O Salário do Medo.

No romance de Arnaud a idéia da máquina imperialista que explora o trabalho vivo dos nativos é marcante. Diz-nos ele: “O suor, por vezes, o sangue desses homens, são necessários para o bom andamento da máquina. Toda a noite a sofrer calor e sono para esperar um novo dia.”


No cenário social degradado de Las Piedras, vive um contingente de homens de vários países. Eles se distinguem dos supostos cidadãos do país (os nativos indígenas), por não terem nenhum direito trabalhista. São eles que irão transportar a imensa carga de explosivos. Eles serão personagens principais em O Salário do Mêdo. O que sugere que o drama existencial do thriller de Clouzot não apenas quer expor o lado oculto da civilização do capital, isto é, as mazelas sociais do Terceiro Mundo, mas o inferno existencial de homens estranhados, verdadeiros easy riders do Primeiro Mundo. Encontramos franceses, italianos e holandeses perdidos na miséria degradante de Las Piedras. Inclusive a relação deles com os nativos é tensa. Um dos personagens centrais (M. Jo, interpretado por Charles Vanel) explicita um sentimento de racismo de cariz colonialista. Mesmo homens estranhados e despossuidos cultivam em si uma alma colonialista (observe-se, por exemplo, a cena em que Jo rejeita ouvir, no rádio do El Corsário Negro, musicas nativas). Ainda é Jo que afirma, com respeito aos nativos: “Multiplicam-se como coelhos”, levando a supor que seja tal idiossincrasia reprodutiva é que explicaria a condição de miséria dos nativos.

Mais uma vez, apelamos para o romance de Arnaud que nos diz sobre os estrangeiros em Las Piedras: “...corridos de todos os países vizinhos, inibidos pelo seu passado, enterrados num buraco sórdido e pestilento, onde lhes era impossível viver e que não podiam deixar senão para ir muito longe: o México, o Chile.” E Arnaud prossegue, descrevendo o que Clouzot expôs em imagens: “Dinheiro não havia. Pouco a pouco, a anemia perniciosa roia-os, comia-lhes os glóbulos vermelhos; a desinteria, as tripas; as febres e a melancolia, com o seu cortejo de drogas e cópulas, roia-lhes o cérebro. Sem trabalho, sem dinheiro, esperavam, procurando uma improvável porta de saída. A escolha era para eles bem simples: partir ou rebentar. Não podiam partir e recusavam-se terminantemente a rebentar.” (o grifo é nosso)

E Arnaud prossegue, descrevendo o drama existencial-limite de homens estranhados: “As mãos crispadas, os dentes cerrados mediam com raiva o tamanho da ratoeira der homens em que haviam caído: ‘Não se toma o avião sem dinheiro. Não há dinheiro sem trabalho. Não há trabalho. Não se toma avião sem dinheiro... Apenas um homem se agüenta de pé, esgotado, sem coragem nem sangue. Não se assaltam os cofres de uma companhia americana, quando os guardam uma patrulha de homens valentes, criados expressamente para serem capazes de matar um homem com um soco...Não se parte sem dinheiro.” (o grifo é nosso)

Com certeza, o cinema não conseguiria traduzir com tanta crueza a descrição de Arnaud. Mas Clouzot conseguiu se aproximar bastante do drama existencial destes homens estranhados, sujeitos monetários de uma sociedade sem trabalho, e, portanto, sem dinheiro, que habitam Las Piedras. A frase “Não se parte sem dinheiro” expressa a verdade lancinante de O Salário de Medo.

O sonho dos personagens estrangeiros enterrados em Las Piedras, “buraco sórdido e pestilento”, é voltar para o país de origem É, por exemplo, o que sonha Mario, o francês, personagem central, interpretado por Yves Montand, que guarda ainda em seus pertences, um bilhete do Metro de Paris (Mario se interroga: “por que teimamos em ficar?”). Ele divide um quarto com Luigi, italiano de origem, pedreiro condenado pelo medico por ter cimento nos pulmões e que, como os outros, sonha sair de Las Piedras (um detalhe: os personagens centrais de O Salário do Mêdo não aparecem com seus sobrenomes, o que sugere o desenraizamento pleno).

O local de encontro de tais homens estranhados, ociosos, à espera do Nada, é o El Corsário Negro, bodega e barzinho local. A chega de Jo e a explosão do poço de petróleo, com a convocação de contratação de estrangeiros para carregar a carga de explosivos, é o que irá dar um eixo narrativo ao thriller de Clouzout.


Jo é um personagem complexo, francês trapaceiro e mafioso, aventureiro em busca de negócios escusos, fracassado na vida, que chega em Las Piedras, talvez em busca de um emprego na SOC (um detalhe curioso: o taxista que traz Jo do Aeroporto de Las Piedras - um campo de pouso - chama-se, por ironia, Napoléon Buonaventura). Clouzot constrói um personagem misógino. Diz Jô: “Mulheres são perda de tempo”. Ele exala coragem e ousadia, mas, no decorrer do thriller irá se revelar um verdadeiro covarde (o que Mario irá exclamar: “um Al Capone de tipo acovardado”). Ao chegar a Las Piedras, subornando o funcionário do aeroporto para obter visto de turista, acaba caindo no redil dos estrangeiros enclausurados na miséria do interior guatemalteco. “Não se parte sem dinheiro” – logo Jô irá saber disso. E ele será mais um que quer sair deste “país de morte”, como disse Arnaud em seu romance.

Um detalhe: a questão de gênero é candente em O Salário do Mêdo. Por um lado, temos a relação de submissão de Linda com Mário (ela é empregada de El Corsário Negro, mulher branca, interpretada por Vera Clouzot, mulher brasileira do diretor francês). Linda é uma namorada apaixonada que corteja constantemente Mario. Em alguns momentos, ele demonstra certa aversão por ela. Na verdade, sua única paixão é partir de Las Piedras e voltar para Paris. Mas, em O Salário do Medo, a mulher não aparece apenas como sexo submisso e instrumentalizado. É importante destacar a presença de uma mulher como líder sindical. Ela aparece protestando contra as mortes de nativos na explosão do poço de petróleo da SOC. Entretanto, é um personagem secundário e totalmente periférico na narrativa de Clouzot. Além da misogenia de Jo e do machismo de Mario, é importante destacar a presença homossexual de Bimba, um dos personagens centrais, um holandes declaradamente homossexual, interpretado por Peter Van Eyck. De certo modo, o sexismo de O Salário do Mêdo, bem ao estilo dos western, cujo gênero possuía esse traço indelével, talvez esteja sugerindo a precarização do desejo, da sexualidade e da própria identidade masculina, em homens estranhados, deslocados de si em todos os sentidos, que, só confiam (e têm prazer) na força e na rudeza, traços de auto-afirmação da personalidade masculina.


Mas, a grande oportunidade para tais homens estranhados, e que irá nos introduzir na segunda parte deste filme, é aceitar a convocação de voluntários estrangeiros feita pela SOC. Eles devem carregar uma carga de explosivos (200 galões de nitroglicerina), em caminhões comuns, sem amortecedores, sem dispositivo especial de segurança, até o poço de petróleo em chamas (a SOC não quer ter problemas com os nativos sindicalizados e por isso contrata estrangeiros). O prêmio é de US$ 2.000. É um trabalho perigoso, de alto risco, que não deixa de ser a metáfora da precarização em sua dimensão absoluta (diz o gerente da SOC explicando os riscos: “A menor sacudidela, o menor calor e vocês desaparecem”. E arremata: “Terão que confiar em seus braços e pernas. Já foram avisados. Estão arriscando suas vidas”).

Ora, apenas homens estranhados em sua forma aguda, iriam se submeter (e se dispor) a aceitar um trabalho precário desta natureza. Na verdade, o que os atrai é o dinheiro. E por trás do dinheiro, a realização de seus sonhos. Há um processo de seleção para escolher os quatro motoristas dos caminhões (os “candidatos à morte”, como disse Arnaud em seu romance). São escolhidos o francês Mario, o holandês Bimba, o italiano Luigi e o holandês Smerloff (que não aparece no momento de saída do comboio – talvez tenha sido "sumido" por Jô ou tenha tão-somente desistido da empreitada. Um detalhe: Smirloff não morreu, pois, na cena final do filme, aparece dançando com Linda, a valsa de Strauss). No lugar de Smerloff, vai Jo, o francês mafioso, que toma seu lugar (um dos estrangeiros, o jovem italiano Fernando, desesperado por não conseguir partir e fracassar na seleção da SOC, comete suicídio).

O primeiro caminhão a partir é o de Mario e Jo; o segundo, o de Luigi e Bimba. Nesta segunda parte do filme, é o thriller propriamente dito, de maior intensidade dramática, pois, como disse o gerente da SOC, “a menor sacudidela, o menor calor e vocês desaparecem”. Agora, homens estranhados estão imersos no trabalho precário, de risco, embora bem remunerado. O medo é sua companheira constante.

O escritor Georges Arnaud irá sugerir uma verdadeira fenomenologia do medo nesta passagem de seu romance: “E que cor tem o medo? Com certeza nem sempre é azul? Branco? Cinzento? Mesclado de rosa e verde? O medo é um líquido incolor, inodoro e insípido.” E mais adiante irá dizer: “O medo. O medo está presente, maciço e estúpido e não se esconde. Fogo no rabo e não se pode correr.” E Arnaud prossegue dizendo: “A coragem está em continuar, quando se começa a ter consciência. Aí está a diferença entre os dois homens.” Arnaud faz referência a Mario e Jo. Desde que o caminhão de explosivos sai de Las Piedras, Jo, o tipo chefão mafioso, entra num clima de medo e terror.

Ora, há medos e medos. O que Clouzot (e Arnaud) nos sugere é que existe diferenças cruciais entre o medo de Jo e o de Mario. Ele traça, como dissemos, uma análise do medo humano. O medo de Mario, nos diz Arnoud em seu romance, é “um medo em tudo nada racionado, um medo preciso que deixa ao espírito todo o seu poder, toda a sua vivacidade para fugir às ratoeiras.”. O medo de Jo é, simplesmente um medo. É “essa forma de pânico que nunca mais se esquece”, como nos diz Arnaud em seu romance. “Foi por ter experimentando esse medo, e talvez só uma única vez, que o velho Jacques [Jo, no filme de Clouzot] se transformou naquele frangalho desesperado.”

No decorrer do comboio da morte (título em português da versão de 1973, “Sorcerer”, dirigida por William Friedkin), personagens expressam sua atitude diante da presença constante do risco de morte. Entretanto, nesta odisséia do medo, há um momento de parceria e de cooperação entre eles. É quando Luigi, Mario e Bimba explodem, com nitroglicerina, uma imensa pedra que obstaculizava o caminho (eis o paradoxo: eles cooperam para conseguirem cumprir seu trabalho estranhado). Nesta cena temos um dos poucos momentos de alegria e companheirismo entre homens estranhados.

A natureza do medo é determinada pelo corte geracional. Mario e Jo pertencem a gerações diferentes. Mário é mais novo que Jo. Tiveram experiências de vida diferenciadas. Ora, o medo é um sentimento concreto. Sua percepção é mesclado pelas lembranças do tempo passado e pelas expectativas do tempo futuro. É um afeto intenso que paralisa o sujeito, expondo seus fantasmas íntimos. É o que Clouzot sugere em O Salário do Medo. Antes do comboio partir, Mario diz para Jo: “Estou com medo. Tenho medo de não ser bom o suficiente.” É um medo egoísta, o medo do sujeito heróico, que está diante de sua provação irremediável. Seu medo é não conseguir provar que não é bom o suficiente. É o medo do tempo futuro, das expectativas que alimenta a respeito de si. O medo de Jo é o medo do tempo passado, das lembranças do terror, dos fantasmas íntimos e das incógnitas existenciais.

Por outro lado, Luigi e Bimba não demonstram sentir medo. Mas eles o sentem. É perceptível em suas expressões de terror. Bimba, cuja experiência de vida incrustou nele certa sabedoria do risco de morte, tal como Jô, estivera também em campo de concentração nazista. Diz-nos: “É possível envelhecer em poucos meses. É só estar no lugar certo e na hora exata.” Na verdade, o tempo de vida do homem é marcado pela intensidade de seus afetos íntimos – o medo é o mais intenso e desgastante.

Mas quem traduz a angústia da morte, pois esta imerso no medo alucinante, é Jo. Mario o provoca dizendo: “O chefão ficou morrendo de medo. Um Al Capone do tipo acovardado. Está morto de medo. Você é um maricas!”. Mas Jô nos diz: “Se você soubesse o que já passei”. E continua: “Sei o que isso significa. Você se arrisca imprudentemente. Você não tem imaginação. Vejo cada seixo e cada buraco. Morri mil vezes desde ontem à noite. Vejo a explosão e me vejo partindo em pedaços. Eu tenho um cérebro na cabeça. Vai acabar pendurado numa árvore. Como as folhas mortas”.


Na verdade, a imaginação de Jô, sua prévia-ideação diante da situação de risco extremo, destroça seu espírito e o transtorna. É o medo na sua forma pura. Mario retruca outra vez: “Ele está com medo. Um valentão de meia-tigela.”. Entretanto, o que Mario não sabe é que Jo trabalhou numa salina, num campo de concentração nazista durante a II Guerra Mundial (é Bimba que procura compreender o medo de Jô, pois também tivera a experiência do terror nazista. Diz: “Se for comparar, isto aqui é uma piada.”) Por isso, Jô dissera para Mario: “Se você soubesse o que já passei”. Como dissemos acima, o medo de Jo é o medo do tempo passado. Ele tem em seu passado uma terrível experiência de presença constante com a morte; o que significa que o medo que se sente é de outra natureza, pois é impregnado de terror pretérito que o persegue no inconsciente. Nesse trajeto do risco supremo de morte, Jô se desestrutura e torna-se um covarde, um frangalho desesperado, como nos diz Arnaud.

Mas, mesmo em situações de risco extremo, e da morte sempre à espreita, os homens sonham e imaginam não apenas a morte, mas a realização de seus desejos. É o que nos demonstra Clouzot em O Salário do Medo. É claro que, o que alimenta sonhos e desejos são os US$ 2.000 de salário pela empreitada de risco. “Com este dinheiro voltarei para a bela Itália”, diz-nos Luigi. Seria o caminhão de Luigi e Bimba que iria explodir ao ter solavanco na estrada. Clouzot explicita as ironias contingentes, de sonhos precários, nascidos da própria condição de precariedade extrema.

Em dois momentos do filme, Clouzot, num toque existencialista, expõe a atitude de homens diante da morte. Por exemplo: antes dos caminhões partirem para sua empreitada do medo, Mário aparece para tomar seu posto de motorista bem vestido. Ele nos diz: “Até quando te mandam para a guilhotina, tem que se vestir bem.” Mais tarde, Bimba, antes de ir pelos ares, junto com Luigi, devido a explosão do caminhão, se barbeia. Luigi pergunta: “Por que se barbeia?”. Bimba relata uma história familiar: “Antes de ser enforcado, meu pai me pediu para tomar um banho. Isto é uma tradição na família. Gosto de limpeza. Ao ser um cadáver, eu quero estar apresentável.” Segundos depois deste dialogo entre Bimba e Luigi, ocorre a explosão da carga de nitroglicerina, que não deixaria nenhum rastro deles.

Esta cena da explosão foi bem elaborada por Clouzot. É uma construção filmica de intensa sugestão existencialista. Primeiro, a cena se passa no caminhão de Mário e Jo. Eles estão bem atrás, distantes do caminhão de Luigi e Bimba. A câmera se fixa nos dedos de Jo manipulando tabaco, ao lado de Mário, que dirige. A seguir, de repente, uma corrente de ar, espalha, o tabaco e vemos, antes que nós mesmo percebamos, que o caminhão de Luigi e Bimba, bem adiante, explodiu. O detalhe curioso: é através do efeito do tabaco ao vento que constatamos que Bimba e Luigi não existem mais. Só depois é que a câmera nos mostra, ao longe, o cogumelo de fumaça da explosão. Estupefato, Jo observa, de imediato: “Luigi não existe mais”. Ao observar o estrago da explosão na vegetação diz: “Parece marca de avião que levantou vôo”. Mais tarde, nos parcos destroços, Jo encontra a piteira de Bimba (“Foi o que sobrou deles”, observa Jo).


Homens perdidos diante de situações precárias, de risco extremo de morte, é um tema propicio a reflexões existencialistas. A França de 1953 estava imersa no clima existencialista, do pós-guerra, com Jean-Paul Sartre e Marcel Camus. O próprio romance de Georges Arnoud continha tal espírito existencialista. E Clouzot não poderia fugir do espírito do seu tempo. Talvez O Salário do Medo seja apenas a metáfora da condição humana. Mas a precariedade em O Salário do medo é a precariedade do trabalho estranhado. Aliás, é através dele que torna-se apreensível, em sua plena intensidade, tal condição humana. Por exemplo, neste filme, é através desta empreitada de risco, convocada por uma corporação capitalista, multinacional do petróleo, que homens despossuidos e desterritorialziados num país miserável, se encontram diante do medo e da desafetivação pessoal. E a morte é a desafetivação suprema dos homens.


No local da explosão do caminhão de Luigi e Bimba, abre-se uma cratera de óleo, que escorre de uma tubulação que estava ao largo da estrada. É nesta cratera de óleo que o caminhão de Mario e Jo se atola. Ao tentar retirá-lo, Jo sofre um sério acidente. Sua perna é esmagada pelo caminhão. Observamos homens cobertos de óleo tentando ir adiante e chegar a seu destino. Em Clouzot aquele óleo tem um sentido metafórico. Enfim, expressa uma condição humana irremediável.

Mario consegue retirar o caminhão e prosseguir caminho. Jo gravemente ferido, ao seu lado, com a perna destroçada, agoniza. Diz: “Sou eu mesmo. Cheiro a cadáver. Posso sentir que estou apodrecendo. Olhe as minhas unhas. Estão rochas.”. E Mario pergunta: “Escute. Você não vai querer morrer, vai?”. Já é noite e estão próximos dos poços de petróleo em chamas.



O diálogo derradeiro entre Mário e Jo contém o sentido da angústia existencialista. Mário tenta reanimar Jo com divagações sobre o passado e lembranças de sua terra distante. Mario pergunta: “Onde morava em Paris?”. Jô diz: “Eu morava na Rua Galande”. “Lembra da tabacaria que ficava na esquina?”, retruca Mario. “É claro. Ao lado da loja de ferragens.”, observa Jô. E diz ainda: “No meu tempo havia uma cerca”. Mário confirma: “Está certo. Primeiro havia uma cerca.” Jô confessa que nunca soube o que havia lá atrás daquela cerca. Na verdade, aquela cerca que habita o tempo passado de Jo é a prefiguração da sua incógnita existencial. Talvez o lastro de seus sonhos. Mas, Mario não sabe nada disto. Aquele cerca, para ele, era apenas uma cerca. Ele responde para Jo que não havia nada atrás daquela cerca: “Nada. Apenas um terreno vazio.” Após ouvir tal resposta de Mario, Jo parece agonizar. Aquilo o abalou com certeza. “Está bem?”, pergunta Mario preocupado. ”Estou bem”, diz Jo totalmente imerso no passado. Observa: “É uma rua comprida”. E diz: “Estou sem ar”. Mario tenta incentivá-lo: “Agüente! Estamos quase chegando!”. Mas Jo prossegue agonizando, imerso no passado. Diz: “Estou tentando lembrar-me. Aquela cerca...o que poderia haver por trás dela.” E Mario responde: “Não havia nada. Realmente nada”. As últimas palavras de Jô moribundo são: “Não há nada!”.


Jo expressava, em si, o homem totalmente desafetivado, inclusive do seu passado imaginário. É o homem desencantado não apenas no seu tempo presente, mas dos ícones do passado singular. Ora, o que aquela cerca poderia significar para Jo? Talvez aquilo que ele nunca encontra na vida precária. Talvez sonhos, ilusões e fantasias perdidas. Mas descobrira agonizando que não havia nada por trás dela.

Mario consegue chegar ao objetivo. Desfalece de cansaço e acorda no dia seguinte, disposto a retornar para Las Piedras com US$ 4.000 no bolso (recebe também, em cheque, a parte de Jô): “Quero chegar antes que o banco feche”. Antes de partir, ao falarem de Jo, com o encarregado dos poços de Petróleo, Mario preserva o mito do amigo morto. É uma passagem interessante. Diz: “Era um sujeito e tanto”. E o outro retruca: “E duro também”. Oferecem a Mário um motorista para leva-lo a Las Piedras, conduzindo o caminhão. Diz ele: “Obrigado. Tenho medo quando alguém dirige.”

Ao saberem que Mario está de volta, com o "salário do medo", Linda se alegra e dança valsa com os companheiros do El Corsário Negro. Ao som da valsa de Johann Strauss II, “Danúbio Azul”, que celebra a vitória do Homem diante das adversidades do Mundo, Mário "dança" com o caminhão na estrada íngreme, agora livre da carga de explosivo. Num certo momento, na curva, ele perde o controle da máquina e o caminhão cai num despenhadeiro. Mario morre (sem conseguir descontar o cheque de US$ 4.000 dada pela SOC). Próximo de suas mãos, o ícone de seus sonhos: o bilhete do metro, símbolo de sonhos de liberdade. Arnoud conclui seu romance dizendo: “ Vítima do próprio entusiasmo, do seu entusiasmo de viver, Sturmer [ou Mario, no filme] ficou agarrado ao volante.”

O sentido metafórico de O Salário do Medo é lancinante. Quando Mário imaginava estar livre das contingências da vida e da morte, seguro de si, após enfrentar a experiência de risco, conduzindo a carga de explosivos, vêem-lhe a sua desefetivação suprema (a morte). Ela atinge-lhe através de um acidente banal, quando o caminhão não responde aos seus comandos numa curva. Clouzout sugere: o homem perde o controle da máquina e a máquina volta-se contra ele. Mário é a personificação do sujeito humano, que após conseguir realizar seus intentos heróicos – conduzir a carga de explosivos por um trajeto difícil – retorna cheio de si para o lar, acreditando que conseguiu livrar-se da condição estranhada. É a máquina descontrolada que irá lembra-lhe da sua sina trágica – diriam os existencialistas (Clique Aqui).

O problema do existencialismo é que ele transforma em destino, o que é condição historico-social, de dominação do capital e de determinadas relações sociais estranhadas, instauradas pelo próprio homem e portanto passível de supressão histórica. A morte e o risco de morte, e o próprio medo, possuem um conteúdo histórico-concreto (como o próprio filme de Clouzot sugere). O interessante na metáfora de Clouzot é que o descontrole da máquina ocorre ao som da valsa “Danúbio Azul” de Johann Strauss II, um verdadeiro ode à burguesia da bélle époque, símbolo de uma época que glorificava, com suas músicas, uma alegria de viver jamais superada, celebração do homem burguês vitorioso contra as forças da Natureza. O paralelo com "2001 – Uma Odisséia no Espaço" é deveras candente. Neste filme clássico de Stanley Kubrick, a valsa de Strauss glorifica o Homem que conseguiu ir além do tempo-espaço por meio dos avanços da tecnologia (CliqueAqui). A valsa dos artefatos espaciais é uma cena clássica em "2001 – Uma Odisséia no Espaço". Em Clouzot, a valsa de Strauss acompanha, como fundo musical, a dança do caminhão, máquina suprema, conduzida pelo sujeito heróico (Mario) em seu caminho de volta a Las Piedras. É curioso que, em 1953, Clouzot exponha a morte do sujeito heróico burguês através do descontrole da máquina. É a sugestão magistral de O Salário do Mêdo.

©Giovanni Alves (2005)