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"O
Salário do Mêdo",
(Le Salaire de La Peur)
de Henri-George Clouzot
(1953)
Eixo
Temático
A
sociedade burguesa hipertardia é uma sociedade do
risco e do medo. É claro que risco, medo e precariedade
são determinações estruturais do trabalho
vivo nas condições sócio-historicas do
modo de produção capitalista. Eles têm caracterizado
a sociabilidade capitalista desde seus primórdios. Entretanto,
nos últimos trinta anos de crise estrutural do capital,
situações de risco e de medo têm assumido
dimensões ampliadas no mundo do trabalho e da reprodução
social. Surgem múltiplas formas qualitativamnete
novas de risco e insegurança do trabalho: insegurança
no emprego, no salário, na seguridade social e na representação
sindical, como podemos observar não apenas nos países
capitalistas do Terceiro Mundo, mas hoje também, do Primeiro
Mundo. Entretanto, insegurança e precariedade atingem
também a dimensão da subjetividade do homem, instituindo
formas particulares-concreta de sócio-metabolismo da
barbárie. Podemos até dizer que hoje, o medo
tende a ser o afeto da alma humana capaz de constituir a mediação
subjetiva das novas formas do consentimento do capitalismo global.
Assume várias formas de ser, de acordo com a experiência
de vida e as múltiplas temporalidades – passado,
presente e futuro – do sujeito estranhado. Ele assume
novas configurações psicossociais nas condições
históricas da sociedade mercantil desenvolvida e nas
subjetividades complexas.
Temas-chave:
precariedade e precarização do trabalho, modernização
do capital e sociedade de risco, capitalismo e trabalho estranhado.
Filmes
relacionados: “O comboio do medo”, de William
Friedkin(1973).
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Análise
do Filme
Num
país miserável da América Central (Guatemala),
quatro homens são selecionados para transportar uma imensa
carga de explosivos (200 galões de nitroglicerina) destinada
a extinguir um incêndio num poço de petróleo da
SOC (Southern Oil Company), por uma estrada de difícil
acesso. Thriller de suspense de George-Henri Clouzout, produzido
em 1953 e baseado no romance homônimo de Georges Arnaud (Clouzot
fez a adaptação e os diálogos do filme).
Num primeiro momento, Clouzot nos apresenta Las Piedras, pequena cidade
degradada pela miséria e abandono completo no interior da Guatemala,
cuja única atividade produtiva é estar próximo
da exploração de petróleo da SOC, companhia petrolífera
norte-americana. É em Las Piedras que se encontra a sede regional
da SOC. O calor, desemprego, subemprego e miséria, assolam
a pequena cidade. Ruas esburacadas, sem pavimentação,
cheias de poças d’água estagnada, com vira-latas
transitando com indolência.
Logo nas primeiras cenas, Clouzout expõe a síntese cruel
daquele cenário urbano degradado onde irá se desenrolar
o thriller em seus primeiros momentos: uma criança
nativa brinca com insetos numa poça de lama. A seguir, vislumbra-se
o cenário de subdesenvolvimento absoluto. Ao lado de transeuntes
miseráveis, vê-se alguém pedindo esmolas. Uma
mulher carrega uma lata d’água na cabeça (é
provável que não exista saneamento básico em
Las Piedras). Uma senhora idosa vende algum petisco num carrinho.
Aos seus pés, um vira-lata atento ao que se passa. Enfim, o
thriller de O Salário do Mêdo passa-se num cenário
de subdesenvolvimento perverso, típica "República
das Bananas", quintal do imperialismo yankee. É
o cenário pleno da exceção da modernização
capitalista. É nele que se desenrola o drama existencial de
homens estranhados imerso num thriller de mêdo e de
angústia.
Ao
abrir o filme com a cena da criança brincando com insetos numa
poça de lama, Clouzot traduz numa imagem o drama existencial
de O Salário do Medo. É a metáfora da
barbárie social. O recurso metafórico da bárbarie
humana, em sua forma primordial, foi utilizado também, por exemplo,
nas primeiras cenas de "Meu ódio será sua herança”,
de Sam Peckinpah (de 1969), em que crianças assistem com satisfação
um escorpião ser devorado por formigas do deserto.
Enfim, as primeiras imagens de O Salário do Medo expõem
a aguda precariedade das condições de vida social no lugarejo
do interior da Guatemala. Tal impressão de miséria humana
está com vigor no romance de Georges Arnaud que, como epigrafe
diz-nos: “”Não queiram encontrar neste livro aquela
exatidão geográfica que não passa de um logro:
a Guatemala, por exemplo, não existe. Eu sei-o, vivi lá.”
Talvez Clouzot, ao utilizar o best-seller de Arnoud quisesse
elaborar uma metáfora sobre a condição humana (existe
certo clima existencialista no thriller de Clouzot), ou ainda,
apresentar para as sociedades européias do centro capitalista,
o lado oculto da civilização do capital (estamos em 1953
e o Terceiro Mundo ainda era um Outro Mundo).
Mas, a presença de uma multinacional do Petróleo expõe
o caráter moderno da miséria de Las Pedras (Mario, um
dos personagens do filme, irá dizer: “Onde tem petróleo,
tem americanos”). A SOC explora a força de trabalho dos
indígenas e enfrenta a resistência do sindicato local (ao
ocorrer a explosão no poços de petróleo, por exemplo,
o sindicato local, liderado por uma mulher nativa, faz uma manifestação
na sede da empresa, em Las Piedras, denunciando a morte de trabalhadores
indígenas). A presença de indígenas nativos é
marcante em algumas cenas de O Salário do Medo.
No romance de Arnaud a idéia da máquina imperialista que
explora o trabalho vivo dos nativos é marcante. Diz-nos ele:
“O suor, por vezes, o sangue desses homens, são necessários
para o bom andamento da máquina. Toda a noite a sofrer calor
e sono para esperar um novo dia.”
No cenário social degradado de Las Piedras, vive um contingente
de homens de vários países. Eles se distinguem dos supostos
cidadãos do país (os nativos indígenas), por não
terem nenhum direito trabalhista. São eles que irão transportar
a imensa carga de explosivos. Eles serão personagens principais
em O Salário do Mêdo. O que sugere que o drama
existencial do thriller de Clouzot não apenas quer expor
o lado oculto da civilização do capital, isto é,
as mazelas sociais do Terceiro Mundo, mas o inferno existencial de homens
estranhados, verdadeiros easy riders do Primeiro Mundo. Encontramos
franceses, italianos e holandeses perdidos na miséria degradante
de Las Piedras. Inclusive a relação deles com os nativos
é tensa. Um dos personagens centrais (M. Jo, interpretado por
Charles Vanel) explicita um sentimento de racismo de cariz colonialista.
Mesmo homens estranhados e despossuidos cultivam em si uma alma colonialista
(observe-se, por exemplo, a cena em que Jo rejeita ouvir, no rádio
do El Corsário Negro, musicas nativas). Ainda é
Jo que afirma, com respeito aos nativos: “Multiplicam-se como
coelhos”, levando a supor que seja tal idiossincrasia reprodutiva
é que explicaria a condição de miséria dos
nativos.
Mais uma vez, apelamos para o romance de Arnaud que nos diz sobre os
estrangeiros em Las Piedras: “...corridos de todos os países
vizinhos, inibidos pelo seu passado, enterrados num buraco sórdido
e pestilento, onde lhes era impossível viver e que não
podiam deixar senão para ir muito longe: o México, o Chile.”
E Arnaud prossegue, descrevendo o que Clouzot expôs em imagens:
“Dinheiro não havia. Pouco a pouco, a anemia perniciosa
roia-os, comia-lhes os glóbulos vermelhos; a desinteria, as tripas;
as febres e a melancolia, com o seu cortejo de drogas e cópulas,
roia-lhes o cérebro. Sem trabalho, sem dinheiro, esperavam,
procurando uma improvável porta de saída. A escolha
era para eles bem simples: partir ou rebentar. Não podiam partir
e recusavam-se terminantemente a rebentar.” (o grifo é
nosso)
E Arnaud prossegue, descrevendo o drama existencial-limite de homens
estranhados: “As mãos crispadas, os dentes cerrados mediam
com raiva o tamanho da ratoeira der homens em que haviam caído:
‘Não se toma o avião sem dinheiro. Não
há dinheiro sem trabalho. Não há trabalho.
Não se toma avião sem dinheiro... Apenas um homem se agüenta
de pé, esgotado, sem coragem nem sangue. Não se assaltam
os cofres de uma companhia americana, quando os guardam uma patrulha
de homens valentes, criados expressamente para serem capazes de matar
um homem com um soco...Não se parte sem dinheiro.” (o grifo
é nosso)
Com certeza, o cinema não conseguiria traduzir com tanta crueza
a descrição de Arnaud. Mas Clouzot conseguiu se aproximar
bastante do drama existencial destes homens estranhados, sujeitos
monetários de uma sociedade sem trabalho, e, portanto,
sem dinheiro, que habitam Las Piedras. A frase “Não se
parte sem dinheiro” expressa a verdade lancinante de O Salário
de Medo.
O
sonho dos personagens estrangeiros enterrados em Las Piedras, “buraco
sórdido e pestilento”, é voltar para o país
de origem É, por exemplo, o que sonha Mario, o francês,
personagem central, interpretado por Yves Montand, que guarda ainda
em seus pertences, um bilhete do Metro de Paris (Mario se interroga:
“por que teimamos em ficar?”). Ele divide um quarto com
Luigi, italiano de origem, pedreiro condenado pelo medico por ter cimento
nos pulmões e que, como os outros, sonha sair de Las Piedras
(um detalhe: os personagens centrais de O Salário do Mêdo
não aparecem com seus sobrenomes, o que sugere o desenraizamento
pleno).
O local de encontro de tais homens estranhados, ociosos, à espera
do Nada, é o El Corsário Negro, bodega e barzinho
local. A chega de Jo e a explosão do poço de petróleo,
com a convocação de contratação de estrangeiros
para carregar a carga de explosivos, é o que irá dar um
eixo narrativo ao thriller de Clouzout.
Jo é um personagem complexo, francês trapaceiro e mafioso,
aventureiro em busca de negócios escusos, fracassado na vida,
que chega em Las Piedras, talvez em busca de um emprego na SOC (um detalhe
curioso: o taxista que traz Jo do Aeroporto de Las Piedras - um campo
de pouso - chama-se, por ironia, Napoléon Buonaventura). Clouzot
constrói um personagem misógino. Diz Jô: “Mulheres
são perda de tempo”. Ele exala coragem e ousadia, mas,
no decorrer do thriller irá se revelar um verdadeiro
covarde (o que Mario irá exclamar: “um Al Capone de tipo
acovardado”). Ao chegar a Las Piedras, subornando o funcionário
do aeroporto para obter visto de turista, acaba caindo no redil dos
estrangeiros enclausurados na miséria do interior guatemalteco.
“Não se parte sem dinheiro” – logo Jô
irá saber disso. E ele será mais um que quer sair deste
“país de morte”, como disse Arnaud em seu romance.
Um detalhe: a questão de gênero é candente
em O Salário do Mêdo. Por um lado, temos a relação
de submissão de Linda com Mário (ela é empregada
de El Corsário Negro, mulher branca, interpretada por
Vera Clouzot, mulher brasileira do diretor francês). Linda é
uma namorada apaixonada que corteja constantemente Mario. Em alguns
momentos, ele demonstra certa aversão por ela. Na verdade, sua
única paixão é partir de Las Piedras e voltar para
Paris. Mas, em O Salário do Medo, a mulher não
aparece apenas como sexo submisso e instrumentalizado. É importante
destacar a presença de uma mulher como líder sindical.
Ela aparece protestando contra as mortes de nativos na explosão
do poço de petróleo da SOC. Entretanto, é um personagem
secundário e totalmente periférico na narrativa de Clouzot.
Além da misogenia de Jo e do machismo de Mario, é importante
destacar a presença homossexual de Bimba, um dos personagens
centrais, um holandes declaradamente homossexual, interpretado por Peter
Van Eyck. De certo modo, o sexismo de O Salário do Mêdo,
bem ao estilo dos western, cujo gênero possuía
esse traço indelével, talvez esteja sugerindo a precarização
do desejo, da sexualidade e da própria identidade masculina,
em homens estranhados, deslocados de si em todos os sentidos, que, só
confiam (e têm prazer) na força e na rudeza, traços
de auto-afirmação da personalidade masculina.
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Mas, a grande oportunidade para tais homens estranhados, e
que irá nos introduzir na segunda parte deste filme, é
aceitar a convocação de voluntários estrangeiros
feita pela SOC. Eles devem carregar uma carga de explosivos (200 galões
de nitroglicerina), em caminhões comuns, sem amortecedores, sem
dispositivo especial de segurança, até o poço de
petróleo em chamas (a SOC não quer ter problemas com os
nativos sindicalizados e por isso contrata estrangeiros). O prêmio
é de US$ 2.000. É um trabalho perigoso, de alto risco,
que não deixa de ser a metáfora da precarização
em sua dimensão absoluta (diz o gerente da SOC explicando os
riscos: “A menor sacudidela, o menor calor e vocês desaparecem”.
E arremata: “Terão que confiar em seus braços e
pernas. Já foram avisados. Estão arriscando suas vidas”).
Ora, apenas homens estranhados em sua forma aguda, iriam se submeter
(e se dispor) a aceitar um trabalho precário desta natureza.
Na verdade, o que os atrai é o dinheiro. E por trás do
dinheiro, a realização de seus sonhos. Há um processo
de seleção para escolher os quatro motoristas dos caminhões
(os “candidatos à morte”, como disse Arnaud em seu
romance). São escolhidos o francês Mario, o holandês
Bimba, o italiano Luigi e o holandês Smerloff (que não
aparece no momento de saída do comboio – talvez tenha sido
"sumido" por Jô ou tenha tão-somente desistido
da empreitada. Um detalhe: Smirloff não morreu, pois, na cena
final do filme, aparece dançando com Linda, a valsa de Strauss).
No lugar de Smerloff, vai Jo, o francês mafioso, que toma seu
lugar (um dos estrangeiros, o jovem italiano Fernando, desesperado por
não conseguir partir e fracassar na seleção da
SOC, comete suicídio).
O primeiro caminhão a partir é o de Mario e Jo; o segundo,
o de Luigi e Bimba. Nesta segunda parte do filme, é o thriller
propriamente dito, de maior intensidade dramática, pois, como
disse o gerente da SOC, “a menor sacudidela, o menor calor e vocês
desaparecem”. Agora, homens estranhados estão imersos no
trabalho precário, de risco, embora bem remunerado. O medo é
sua companheira constante.
O escritor Georges Arnaud irá sugerir uma verdadeira fenomenologia
do medo nesta passagem de seu romance: “E que cor tem o medo?
Com certeza nem sempre é azul? Branco? Cinzento? Mesclado de
rosa e verde? O medo é um líquido incolor, inodoro e insípido.”
E mais adiante irá dizer: “O medo. O medo está presente,
maciço e estúpido e não se esconde. Fogo no rabo
e não se pode correr.” E Arnaud prossegue dizendo: “A
coragem está em continuar, quando se começa a ter consciência.
Aí está a diferença entre os dois homens.”
Arnaud faz referência a Mario e Jo. Desde que o caminhão
de explosivos sai de Las Piedras, Jo, o tipo chefão mafioso,
entra num clima de medo e terror.
Ora,
há medos e medos. O que Clouzot (e Arnaud) nos sugere é
que existe diferenças cruciais entre o medo de Jo e
o de Mario. Ele traça, como dissemos, uma análise do medo
humano. O medo de Mario, nos diz Arnoud em seu romance, é “um
medo em tudo nada racionado, um medo preciso que deixa ao espírito
todo o seu poder, toda a sua vivacidade para fugir às ratoeiras.”.
O medo de Jo é, simplesmente um medo. É “essa forma
de pânico que nunca mais se esquece”, como nos diz Arnaud
em seu romance. “Foi por ter experimentando esse medo, e talvez
só uma única vez, que o velho Jacques [Jo, no filme de
Clouzot] se transformou naquele frangalho desesperado.”
No decorrer do comboio da morte (título em português da
versão de 1973, “Sorcerer”, dirigida por William
Friedkin), personagens expressam sua atitude diante da presença
constante do risco de morte. Entretanto, nesta odisséia do medo,
há um momento de parceria e de cooperação entre
eles. É quando Luigi, Mario e Bimba explodem, com nitroglicerina,
uma imensa pedra que obstaculizava o caminho (eis o paradoxo: eles cooperam
para conseguirem cumprir seu trabalho estranhado). Nesta cena
temos um dos poucos momentos de alegria e companheirismo entre homens
estranhados.
A natureza do medo é determinada pelo corte geracional.
Mario e Jo pertencem a gerações diferentes. Mário
é mais novo que Jo. Tiveram experiências de vida diferenciadas.
Ora, o medo é um sentimento concreto. Sua percepção
é mesclado pelas lembranças do tempo passado e pelas expectativas
do tempo futuro. É um afeto intenso que paralisa o sujeito, expondo
seus fantasmas íntimos. É o que Clouzot sugere em O
Salário do Medo. Antes do comboio partir, Mario diz para
Jo: “Estou com medo. Tenho medo de não ser bom o suficiente.”
É um medo egoísta, o medo do sujeito heróico, que
está diante de sua provação irremediável.
Seu medo é não conseguir provar que não é
bom o suficiente. É o medo do tempo futuro, das expectativas
que alimenta a respeito de si. O medo de Jo é o medo do tempo
passado, das lembranças do terror, dos fantasmas íntimos
e das incógnitas existenciais.
Por
outro lado, Luigi e Bimba não demonstram sentir medo. Mas eles
o sentem. É perceptível em suas expressões de terror.
Bimba, cuja experiência de vida incrustou nele certa sabedoria
do risco de morte, tal como Jô, estivera também em campo
de concentração nazista. Diz-nos: “É possível
envelhecer em poucos meses. É só estar no lugar certo
e na hora exata.” Na verdade, o tempo de vida do homem é
marcado pela intensidade de seus afetos íntimos – o medo
é o mais intenso e desgastante.
Mas quem traduz a angústia da morte, pois esta imerso no medo
alucinante, é Jo. Mario o provoca dizendo: “O chefão
ficou morrendo de medo. Um Al Capone do tipo acovardado. Está
morto de medo. Você é um maricas!”. Mas Jô
nos diz: “Se você soubesse o que já passei”.
E continua: “Sei o que isso significa. Você se arrisca imprudentemente.
Você não tem imaginação. Vejo cada seixo
e cada buraco. Morri mil vezes desde ontem à noite. Vejo a explosão
e me vejo partindo em pedaços. Eu tenho um cérebro na
cabeça. Vai acabar pendurado numa árvore. Como as folhas
mortas”.
Na
verdade, a imaginação de Jô, sua prévia-ideação
diante da situação de risco extremo, destroça seu
espírito e o transtorna. É o medo na sua forma pura. Mario
retruca outra vez: “Ele está com medo. Um valentão
de meia-tigela.”. Entretanto, o que Mario não sabe é
que Jo trabalhou numa salina, num campo de concentração
nazista durante a II Guerra Mundial (é Bimba que procura compreender
o medo de Jô, pois também tivera a experiência do
terror nazista. Diz: “Se for comparar, isto aqui é uma
piada.”) Por isso, Jô dissera para Mario: “Se você
soubesse o que já passei”. Como dissemos acima, o medo
de Jo é o medo do tempo passado. Ele tem em seu passado uma terrível
experiência de presença constante com a morte; o que significa
que o medo que se sente é de outra natureza, pois é impregnado
de terror pretérito que o persegue no inconsciente. Nesse trajeto
do risco supremo de morte, Jô se desestrutura e torna-se um covarde,
um frangalho desesperado, como nos diz Arnaud.
Mas, mesmo em situações de risco extremo, e da morte sempre
à espreita, os homens sonham e imaginam não apenas a morte,
mas a realização de seus desejos. É o que nos demonstra
Clouzot em O Salário do Medo. É claro que, o
que alimenta sonhos e desejos são os US$ 2.000 de salário
pela empreitada de risco. “Com este dinheiro voltarei para a bela
Itália”, diz-nos Luigi. Seria o caminhão de Luigi
e Bimba que iria explodir ao ter solavanco na estrada. Clouzot explicita
as ironias contingentes, de sonhos precários, nascidos da própria
condição de precariedade extrema.
Em dois momentos do filme, Clouzot, num toque existencialista, expõe
a atitude de homens diante da morte. Por exemplo: antes dos caminhões
partirem para sua empreitada do medo, Mário aparece para tomar
seu posto de motorista bem vestido. Ele nos diz: “Até quando
te mandam para a guilhotina, tem que se vestir bem.” Mais tarde,
Bimba, antes de ir pelos ares, junto com Luigi, devido a explosão
do caminhão, se barbeia. Luigi pergunta: “Por que se barbeia?”.
Bimba relata uma história familiar: “Antes de ser enforcado,
meu pai me pediu para tomar um banho. Isto é uma tradição
na família. Gosto de limpeza. Ao ser um cadáver, eu quero
estar apresentável.” Segundos depois deste dialogo entre
Bimba e Luigi, ocorre a explosão da carga de nitroglicerina,
que não deixaria nenhum rastro deles.
Esta cena da explosão foi bem elaborada por Clouzot. É
uma construção filmica de intensa sugestão existencialista.
Primeiro, a cena se passa no caminhão de Mário e Jo. Eles
estão bem atrás, distantes do caminhão de Luigi
e Bimba. A câmera se fixa nos dedos de Jo manipulando tabaco,
ao lado de Mário, que dirige. A seguir, de repente, uma corrente
de ar, espalha, o tabaco e vemos, antes que nós mesmo percebamos,
que o caminhão de Luigi e Bimba, bem adiante, explodiu. O detalhe
curioso: é através do efeito do tabaco ao vento que constatamos
que Bimba e Luigi não existem mais. Só depois é
que a câmera nos mostra, ao longe, o cogumelo de fumaça
da explosão. Estupefato, Jo observa, de imediato: “Luigi
não existe mais”. Ao observar o estrago da explosão
na vegetação diz: “Parece marca de avião
que levantou vôo”. Mais tarde, nos parcos destroços,
Jo encontra a piteira de Bimba (“Foi o que sobrou deles”,
observa Jo).
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Homens perdidos diante de situações precárias,
de risco extremo de morte, é um tema propicio a reflexões
existencialistas. A França de 1953 estava imersa no clima existencialista,
do pós-guerra, com Jean-Paul Sartre e Marcel Camus. O próprio
romance de Georges Arnoud continha tal espírito existencialista.
E Clouzot não poderia fugir do espírito do seu tempo.
Talvez O Salário do Medo seja apenas a metáfora
da condição humana. Mas a precariedade em O Salário
do medo é a precariedade do trabalho estranhado.
Aliás, é através dele que torna-se apreensível,
em sua plena intensidade, tal condição humana. Por exemplo,
neste filme, é através desta empreitada de risco, convocada
por uma corporação capitalista, multinacional do petróleo,
que homens despossuidos e desterritorialziados num país miserável,
se encontram diante do medo e da desafetivação
pessoal. E a morte é a desafetivação suprema dos
homens.
No local da explosão do caminhão de Luigi e Bimba, abre-se
uma cratera de óleo, que escorre de uma tubulação
que estava ao largo da estrada. É nesta cratera de óleo
que o caminhão de Mario e Jo se atola. Ao tentar retirá-lo,
Jo sofre um sério acidente. Sua perna é esmagada pelo
caminhão. Observamos homens cobertos de óleo tentando
ir adiante e chegar a seu destino. Em Clouzot aquele óleo tem
um sentido metafórico. Enfim, expressa uma condição
humana irremediável.
Mario consegue retirar o caminhão e prosseguir caminho. Jo gravemente
ferido, ao seu lado, com a perna destroçada, agoniza. Diz: “Sou
eu mesmo. Cheiro a cadáver. Posso sentir que estou apodrecendo.
Olhe as minhas unhas. Estão rochas.”. E Mario pergunta:
“Escute. Você não vai querer morrer, vai?”.
Já é noite e estão próximos dos poços
de petróleo em chamas.
O diálogo derradeiro entre Mário e Jo contém o
sentido da angústia existencialista. Mário tenta reanimar
Jo com divagações sobre o passado e lembranças
de sua terra distante. Mario pergunta: “Onde morava em Paris?”.
Jô diz: “Eu morava na Rua Galande”. “Lembra
da tabacaria que ficava na esquina?”, retruca Mario. “É
claro. Ao lado da loja de ferragens.”, observa Jô. E diz
ainda: “No meu tempo havia uma cerca”. Mário confirma:
“Está certo. Primeiro havia uma cerca.” Jô
confessa que nunca soube o que havia lá atrás daquela
cerca. Na verdade, aquela cerca que habita o tempo passado
de Jo é a prefiguração da sua incógnita
existencial. Talvez o lastro de seus sonhos. Mas, Mario não sabe
nada disto. Aquele cerca, para ele, era apenas uma cerca. Ele
responde para Jo que não havia nada atrás daquela cerca:
“Nada. Apenas um terreno vazio.” Após ouvir tal resposta
de Mario, Jo parece agonizar. Aquilo o abalou com certeza. “Está
bem?”, pergunta Mario preocupado. ”Estou bem”, diz
Jo totalmente imerso no passado. Observa: “É uma rua comprida”.
E diz: “Estou sem ar”. Mario tenta incentivá-lo:
“Agüente! Estamos quase chegando!”. Mas Jo prossegue
agonizando, imerso no passado. Diz: “Estou tentando lembrar-me.
Aquela cerca...o que poderia haver por trás dela.” E Mario
responde: “Não havia nada. Realmente nada”. As últimas
palavras de Jô moribundo são: “Não há
nada!”.
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Jo expressava, em si, o homem totalmente desafetivado, inclusive do
seu passado imaginário. É o homem desencantado
não apenas no seu tempo presente, mas dos ícones do passado
singular. Ora, o que aquela cerca poderia significar para Jo?
Talvez aquilo que ele nunca encontra na vida precária. Talvez
sonhos, ilusões e fantasias perdidas. Mas descobrira agonizando
que não havia nada por trás dela.
Mario consegue chegar ao objetivo. Desfalece de cansaço e acorda
no dia seguinte, disposto a retornar para Las Piedras com US$ 4.000
no bolso (recebe também, em cheque, a parte de Jô): “Quero
chegar antes que o banco feche”. Antes de partir, ao falarem de
Jo, com o encarregado dos poços de Petróleo, Mario preserva
o mito do amigo morto. É uma passagem interessante. Diz: “Era
um sujeito e tanto”. E o outro retruca: “E duro também”.
Oferecem a Mário um motorista para leva-lo a Las Piedras, conduzindo
o caminhão. Diz ele: “Obrigado. Tenho medo quando alguém
dirige.”
Ao saberem que Mario está de volta, com o "salário
do medo", Linda se alegra e dança valsa com os companheiros
do El Corsário Negro. Ao som da valsa de Johann Strauss
II, “Danúbio Azul”, que celebra a vitória
do Homem diante das adversidades do Mundo, Mário "dança"
com o caminhão na estrada íngreme, agora livre da carga
de explosivo. Num certo momento, na curva, ele perde o controle da máquina
e o caminhão cai num despenhadeiro. Mario morre (sem conseguir
descontar o cheque de US$ 4.000 dada pela SOC). Próximo de suas
mãos, o ícone de seus sonhos: o bilhete do metro, símbolo
de sonhos de liberdade. Arnoud conclui seu romance dizendo: “
Vítima do próprio entusiasmo, do seu entusiasmo de viver,
Sturmer [ou Mario, no filme] ficou agarrado ao volante.”
O sentido metafórico de O Salário do Medo é
lancinante. Quando Mário imaginava estar livre das contingências
da vida e da morte, seguro de si, após enfrentar a experiência
de risco, conduzindo a carga de explosivos, vêem-lhe a sua desefetivação
suprema (a morte). Ela atinge-lhe através de um acidente banal,
quando o caminhão não responde aos seus comandos numa
curva. Clouzout sugere: o homem perde o controle da máquina e
a máquina volta-se contra ele. Mário é a personificação
do sujeito humano, que após conseguir realizar seus intentos
heróicos – conduzir a carga de explosivos por um trajeto
difícil – retorna cheio de si para o lar, acreditando que
conseguiu livrar-se da condição estranhada. É a
máquina descontrolada que irá lembra-lhe da sua sina trágica
– diriam os existencialistas (Clique
Aqui).
O problema do existencialismo é que ele transforma em destino,
o que é condição historico-social, de dominação
do capital e de determinadas relações sociais estranhadas,
instauradas pelo próprio homem e portanto passível de
supressão histórica. A morte e o risco de morte, e o próprio
medo, possuem um conteúdo histórico-concreto (como o próprio
filme de Clouzot sugere). O interessante na metáfora de Clouzot
é que o descontrole da máquina ocorre ao som da valsa
“Danúbio Azul” de Johann Strauss II, um verdadeiro
ode à burguesia da bélle époque, símbolo
de uma época que glorificava, com suas músicas, uma alegria
de viver jamais superada, celebração do homem burguês
vitorioso contra as forças da Natureza. O paralelo com "2001
– Uma Odisséia no Espaço" é deveras
candente. Neste filme clássico de Stanley Kubrick, a valsa de
Strauss glorifica o Homem que conseguiu ir além do tempo-espaço
por meio dos avanços da tecnologia (CliqueAqui).
A valsa dos artefatos espaciais é uma cena clássica em
"2001 – Uma Odisséia no Espaço". Em Clouzot,
a valsa de Strauss acompanha, como fundo musical, a dança do
caminhão, máquina suprema, conduzida pelo sujeito heróico
(Mario) em seu caminho de volta a Las Piedras. É curioso que,
em 1953, Clouzot exponha a morte do sujeito heróico burguês
através do descontrole da máquina. É a sugestão
magistral de O Salário do Mêdo.
©Giovanni
Alves (2005)
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