O
Lobisomen
"O
Lobisomem" (The Wolf Man), de George Waggner é
um dos filmes clássicos de terror da Universal Studios, ao lado
de Drácula, Frankenstein, A Noiva de Frankenstein,
O Homem Invisível e O Fantasma da Ópera.
O roteiro é de Curt Siodmak, um grandes escritores e roteiristas
de ficção-cientifica. Judeu, alemão, exilou-se
nos EUA após a subida de Hitler ao poder em 1933. Siodmak baseia-se
numa das lendas populares mais difundidas no mundo que inspirou vários
filmes de Hollywood (antes e depois do The Wolf Man, de Georges
Waggner). O cerne essencial da estrutura narrativa é sempre o mesmo: homem se transforma em lobo, assumindo as características físicas do animal. Em torno deste mote narrativo, desenrola-se o enredo de The Wolf Man. O cinema de Hollywood se apropriou diversas vezes da figura do Lobisomen. Depois do The Wolf Man, produzido em 1941, surgiram várias versões desta lenda popular, sempre adaptadas de acordo com os interesses de público e do mercado da indústria cultural. O filme The Wolf Man, de Georges Waggner, com Lon Chaney Jr, no papel do Lobisomem, é considerado um clássicos não apenas pelo sucesso de público, mas pela originalidade do roteiro de Siodmak, um artesão competente da literatura fantástica. O roteiro de Curt Siodmark possui peculiaridades interessantes. Ele recria, de modo sugestivo, a mitologia popular do lobisomem. A forma de apropriação do mito pelo cinema de Hollywood pode nos dizer muito a respeito da sociabilidade burguesa. Ou seja, através dele podemos apreender alguns elementos constitutivos da ordem burguesa e da sociedade do capital. Toda apresentação do mito possui significados sócio-históricos particulares. O mito nos diz mais a respeito de nós e da sociedade em que vivemos do que possamos imaginar. De certo modo, é uma forma interessante de reflexo estético dos impasses da modernidade burguesa. Através desta apresentação lendária podemos vislumbrar dimensões do mundo do capital e do seu sócio-metabolismo estranhado. Em primeiro lugar, vejamos a estrutura do roteiro de Siodmak. O filho de um lorde inglês, Larry Talbot, regressa ao Castelo de seu pai no País de Gales, logo após a morte de seu irmão mais velho. O jovem Talbot, representado por Lon Chaney Jr., vem dos Estados Unidos onde vive. Parece ter como hooby, observar os astros (ele é astrônomo amador). Logo que chega, instala seu telescópio no Castelo Talbot. Foi testando a ocular do telescópio que descobriu a bela Gwen Conliffe, filha de um comerciante de Antiguidades da aldeia local. É na Loja de Conliffe que adquire uma bengala com uma cabeça de lobo de prata e um pentagrama (que, no roteiro de Siodmak, é a marca do lobisomem). É a primeira insinuação do "destino" de Larry Talbot. Ele insiste para a jovem Gwen acompanhá-lo à noite, numa visita, aos ciganos, buscando ler o futuro. Com eles vai uma amiga que se tornará a primeira vitima do Lobisomem (este lobisomem é Bela, o vidente, filho da cigana, representado pelo conhecido ator Bela Lugosi). Ao ver a jovem atacada pelo lobo, Larry a socorre, matando o lobisomem, com sua bengala de prata. Apesar de matar o lobo, o filho de Lorde Talbot é mordido pelo animal monstruoso. Deste modo, adquire irremediavelmente, a marca do lobisomem. Esta é a tragédia de Larry Talbot. Até o final do filme, Larry ataca, como lobisomem, algumas pessoas, até ser, por fim, morto pelo próprio pai. Por trás desta trama simples, existem alguns detalhes de conteúdo significativos que podem sugerir aspectos essenciais da sociabilidade do mundo do capital. Por exemplo, é comum, no décor do filme, o contraste entre tradicional e moderno (o que expressa, de certo modo, esta justaposição inorgânica intrínseca à ordem do capital). Na verdade, a sociabilidade do capital é uma sociabilidade convulsionada por um passado inscrito no presente; por uma modernidade sempre aterrorizada pela tradição. O que representa o passado é o mito do lobisomem e seu ambiente rural. O cenário do País de Gales, reconstruído nos estúdios da Universal, apresenta o décor da Tradição. A cenografia não é nada original, mas expressa bem o espírito de aldeia tradicional. Por outro lado, a presença de Larry Talbot, com seu carro moderno (em contraste com as carroças dos ciganos), fornece o décor da Modernidade. Ora, ciência moderna e mito, identificado com superstição, tendem a expressar a contraditoriedade orgânica da reprodução sócio-metabólica do capital nas bordas menos desenvolvidas do sistema mundial (o País de Gales é o cenário escolhido, como poderia ser qualquer região da Europa central). Enfim, o capital não consegue abolir o lastro do passado. Ele pesa como uma assombração sobre os vivos. É nesse contexto do capitalismo hipertardio, onde o arcaico convive com o moderno, que se coloca o problema da mutação antropológica, isto é, da transformação do homem em não-homem, no caso do The Wolf Man, num animal monstruoso (o que nos faz lembrar o personagem Gregor Samsa do conto “A Metamorfose”, de Franz Kafka, cuja narrativa se passa na Europa Central e que, “certa manhã, depois de uma noite viu-se transformado num inseto monstruoso”). A literatura e o cinema fantástico do século XX expressam com vigor o problema da mutação antropológica na perspectiva da deriva do Homem e da perda da sua humanidade, que pode ocorrer, tanto através da sua transformação num animal monstruoso, quanto da sua transformação num ser estranho à si próprio ou aos outros (por exemplo, O Homem Invisível ou O Fantasma da Ópera, filmes clássicos da Universal, ou ainda o clássico O Médico e o Monstro) ou ainda sua transfiguração numa determinação reflexa estranhada, como Frankenstein ou mesmo Drácula. O tema da mutação antropológica ou de sua reflexividade estranhada está intrinsecamente vinculado ao problema do estranhamento exacerbado na modernidade complexa do capital. É a expressão estética deste fenomêno social ampliado. No caso de The Wolf Man, o problema da mutação antropológica é apresentada por meio da representação mitológica do lobisomem. Nesse caso, a ocorrência fantástica da mutação do homem em não-homem, no caso, um animal monstruoso, não apela para a Ciência moderna ou para a Técnica, como ocorre, por exemplo, nas ficções-científicas tecnológicas, tal como Blade Runner (de Ridley Scott) com seus replicantes (que não são propriamente monstros). O exemplo clássico primordial desta mutação antropológica tecnificada é Frankenstein, de Mary Shelley. Por outro lado, em The Wolf Man, a causalidade fantástica da mutação antropológica tenderia a ser, segundo o roteiro de Siodmak, a demência humana (nesse caso, o mito tenderia a perder sua dimensão não-racional). O que significa que. em seu roteiro, Siodmark sugere que a licantropia é uma doença mental. Assim, o que explicaria a transformação monstruosa de Larry Talbot? Logo na abertura do filme aparece uma definição, de acordo com uma Enciclopédia, do que seja Lobisomismo (ou licantropia), isto é, trata-se de uma “uma doença mental no qual enfermos se julgam transformados em lobos. As vitimas assumem as características físicas do animal.” O que significa que, nesse caso, a mutação antropológica possuiria uma causalidade racional, isto é, ela não passaria de um distúrbio mental. Em The Wolf Man, o discurso da Ciência moderna é representado por Lorde Talbot e pelos agentes da Ordem (o policial, por exemplo) que buscam, de certo modo, atribuir ao lobisomismo um tipo de esquizofrenia. Ela derivaria da própria alma humana, não tendo, portanto, nenhuma natureza sobrenatural. O lobisomismo seria decorrente da natureza humana atribulada, do “atoleiro mental” do homem, visto sempre na ótica individual (o lobisomismo não seria um fato social, mas apenas um fato psicológico, apesar de que possa haver, no filme, a sugestão de que trata-se de um fenomêno de histeria coletiva). Estes personagens (Lorde Talbot e o policial) apresentam o discurso da desmitolização, uma operação de desencantamento do mundo, propiciado pela racionalização da Ciência moderna. Entretanto, o próprio filme sugere o paradoxo lancinante entre o discurso da ciência moderna e a imagem fantástica de mitos que nos assombram. Apesar de Lorde Talbot dizer que o lobisomismo é uma doença mental, o que ele observa, no final, é seu próprio filho transformado num animal monstruoso. Na verdade, significa que o mundo do capital reencanta o mundo através do fetichismo da mercadoria. E não apenas isso: é um mundo que não aboliu a presença do Mito e da Tradição. Eles convivem, lado a lado, com a razão científica e a Modernidade. Poderíamos até dizer que o fetiche da mercadoria convoca as forças do passado para constituir o sócio-metabolismo do presente. É esta contradição alucinada que perpassa o imaginário burguês e que o cinema de Monstros nos apresenta com vigor. Esta operação estética, que pertence à lógica intrínseca da virtualização fantástica, traduz o dilaceramento do sócio-metabolismo do capital, desta forma societal particular-concreta que se dissiminou pelo Ocidente há séculos. Um outro detalhe curioso de “O Lobisomem”, de Georges Waggner, é a situação de classe inscrita em sua trama narrativa. Por exemplo, Larry Talbot, filho de um lorde, possui estilo de playboy. Vive na cidade grande, sendo, de certo modo, a representação da Modernidade afluente. Mas é uma modernidade com laços com o mundo da nobreza tradicional. É Larry que irá se transformar num lobo após ter sido mordido por um lobisomem (que era o cigano Bela, representação das classes subalterna). Ë como se Siodmak sugerisse que a perversão da Modernidade afluente proviesse das classes subalternas. Ou seja, é da periferia arcaica, ligada à superstição e à tradição, que sobreviria o Mal que atacaria a civilização culta (Em Drácula, de Bram Stoker, existe o mesmo tema). É como se presenciássemos, através da transformação de Larry Talbot em Lobisomem, a vingança da Tradição. Talvez o horror mitológico seja a prefiguração alegórica desta vingança da Tradição. Em vários momentos do filme, a presença da Tradição é forte. Por exemplo, Lorde Talbot diz para o filho que no decorrer de 300 anos o castelo não mudou. Outro detalhe curioso: o filho é astrônomo amador, preocupado com as coisas da Ciência dos Céus, mas é capturado pelas coisas da Terra, ou seja, pela Tradição e superstição da Terra primordial. Diríamos que a figura lendária do lobisomem expressaria o cruzamento não apenas dos referenciais de Moderno e Tradicional (que também está no personagem Drácula, de Bram Stoker), mas expressa o que já salientamos ao tratar da mutação antropológica: o cruzamento dos referenciais de Homem x Animal. Ou seja, põe em questão a idéia de Homem Racional (o que encontramos no conto O Medico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson). O homem é um ser clivado, dividido e estranhado. No plano epistemológico, a psicanálise expressaria um elemento desta dissolução, ou pelo menos, da problematização da auto-representação iluminista do Homem. No plano do pensamento, Nietzche, por exemplo, seria seu arauto filosófico. O homem passaria a ser avassalado não apenas pela sua exterioridade, mas pela sua interioridade alucinada. Tal como O Medico e o Monstro, a lenda do lobisomem, apresentada pelo filme de Waggner, pode ser expresão desta mente enferma. O homem se acha transformado num animal. Não ele que ele seja um animal, tendo em vista que o processo evolucionário o distinguiu da natureza meramnete instintiva; mas o homem, por conta da bárbarie social, se considera um animal, agindo deste modo (diria o jovem Marx: o homem se encontra alienado da vida humano-genérica e deste modo, de si mesmo e dos outros). No bojo desta mutação do capitalismo moderno, na virada para o século XX, vislumbramos uma alteração significativa da auto-representação de homem vindo do Iluminismo. O capitalismo monopolista e a etapa do Imperialismo expõem a crise da Razão Iluminista e da idéia de Sujeito Racional. Expõe com desenvoltura, no plano da representação estética, a crise do Humanismo. O que significa que as expressões estéticas da literatura e do cinema fantástico se disseminam numa situação de crise da civilização burguesa. Por um lado, deslocam o lugar do homem na linha de sua evolução cósmica (o Homem se metamorfoseia em Animal-Monstro) e por outro lado, apresentam a interversão da Vida em Morte, tal como ocorre no sistema do capital. Por exemplo, tal como o vampiro Drácula, o lobisomem só morre sob certas circunstancias especiais (ser atingido pelo bastão de prata ou bala de prata, por exemplo). E aparece sob certas circunstâncias especiais: nas noites de lua cheia durante o Outono. Ele é, portanto, propiciado pela prolífica mãe-Natureza. Entretanto pertence ao mundo da Morte e da negação da Vida (o que observamos com expressividade no mito do vampiro, o Não-Vivo). Finalmente, no roteiro de The Wolf Man, Siodmak inclui referencias à Mitologia Grega. O lobisomem de Siodmak representa algum tipo de tragédia grega. Por exemplo, no final, é o pai, Lorde Talbot, que mata o filho, bem ao estilo das tragédias de Sofócles. Além disso, a bárbarie de Larry Talbot, sua transformação em lobisomem, possui referencias a uma histeria coletiva, talvez próximo àquela que atingiu o país de origem de Siodmak, exilado alemão, fugido do nazi-fascismo logo após a ascensão de Hitler. O tema da mutação antropológica bem que poderia ser o tema da bárbarie nazi-fascista que se abateu sob a civilização do capital no decorrer dos anos de 1930 e que Siodmak sentiu na pele. Nesse caso, a arte imita (ou reflete), através de prefiguraçòes fantásticas (e mitológicas), os dilaceramentos do mundo burguês. Giovanni Alves (2004) |