|
“Gattaca
- A Experiência Genética”
(Gattaca),
de Andrew Niccol
(1997)
Eixo
Temático
O
desenvolvimento das técnicas de manipulação
genética decorrem do desenvolvimento das forças
produtivas do trabalho social e da redução das barreiras
naturais. É claro que, nas condições de uma
sociedade de classes, onde predomina a divisão hierárquica
do trabalho e a propriedade privada, tal avanço da ciência
genética se traduz em possibilidades concretas de incremento
do controle social estranhado. Neste caso, o capital tende a se
apropriar do desenvolvimento das forças produtivas sociais
para aprofundar seu controle de classe. Estamos diante de uma
visceral contradição entre as imensas potencilaidades
de desenvolvimento humano-genérico e da plena socialização
da sociedade humana, e a aguda vigência de determinações
de controle social estranhado e de exploração de
classe. Ao lado do admirável mundo novo, subsiste velhos
valores estranhados e sociabilidades corrompidas pela lógica
do capital.
Temas-chave:
técnica e tecnologia, capital e processo civilizatório,
ecossistema social e contradições do capital, identidade
e memória social.
Filmes
relacionados: “Blade Runner”, de Ridley Scott;
“Matrix”, dos Irmãos Wachowski; “Metropólis”,
de Fritz Lang; “2001-Uma Odisséia no Espaço”,
de Stanley Kubrick; “IA - Inteligência Artificial”,
de Steven Spielberg; “Eu, Robô”, de Alex Proyas.
|
Análise
do Filme
Annette
Kuhn, em seu livro Alien Zone: Cultural Theory and Contemporary
Science Fiction Cinema (Verso, 1990), observa que uma das características
do cinema de ficção-científica é a sua intertextualidade.
Ou seja, o gênero Science Fiction (SF) tende a se confundir
com outros gêneros fílmicos, como, por exemplo, o Policial,
a Comédia ou Horror. O que poderia significar essa intertextualidade
do gênero Science Fiction? Ela é característica
peculiar de um gênero fílmico (o de ficção-científica)
que constitui sua trama narrativa a partir de uma determinada racionalidade
(a racionalidade tecnológica), que é a própria
racionalidade da sociedade moderna. Nesse caso, como a tecnologia perpassa
os mais diversos aspectos da vida cotidiana moderna, ela não
poderia deixar de estar no centro estruturante da trama filmica, principalmente
em se tratando de um filme SF. O que acontece é que, no caso
do filme SF, a trama filmica se constitui em função de
uma determinada racionalidade tecnológica. Na verdade, a técnica
e a tecnologia pulam adiante do argumento dramático, estruturando-o,
sem dissolver sua linha argumentativa (que incorpora outras textualidades).
O filme Gattaca – A Experiência Genética,
de Andrew Niccol (1997) é um caso exemplar. Apesar de ser um
filme de ficção-científica deixa claro sua intertextualidade.
A partir de um certo momento, Gattaca parece se tornar um filme policial
ou de suspense quando a trama narrativa se desloca para a busca do assassino
de um dos diretores da corporação Gattaca. No desenrolar
da trama, todo o suspense se concentra no personagem Vincent Freeman,
um Inválido condenado pelo seu código genético
a tarefas degradantes (Freeman significa, literalmente, “homem
livre”).
A sociedade de Gattaca está dividida em duas “classes sociais”,
os Válidos, os “filhos da Ciência”, produtos
da engenharia genética e da eugenia social, e os Inválidos,
os “filhos de Deus”, submetidos ao acaso da Natureza e às
impurezas genéticas. Gattaca retrata uma sociedade de
classe cuja técnica de manipulação do código
genético tornou-se prática cotidiana de controle social.
Vincent é um jovem ambicioso, que almeja ir além do seu
destino genético e decide assumir a personalidade de Jerome Morrow,
um Válido que, em virtude de um acidente, ficou paralítico.
Utilizando os serviços clandestinos de um “pirata genético”,
Vincent clona os registros genéticos de Jerome. Sua ambição
é driblar as restrições de classe e se integrar
na elite intelectual e moral de Gattaca e realizar seu maior sonho:
ir para o planeta Titã, satélite de Júpiter (seria
uma alegoria de fuga do sistema do capital, de agudo cariz regressivo,
tal como um "retorno ao útero materno"?).
No final, a trama de Gattaca sugere um drama familiar, no estilo
de East of Eden, de Elia Kazan (com James Dean), quando Vincent
encontra em Gattaca, seu irmão Anton, que descobre a verdadeira
personalidade de Jerome e ameaça denuncia-lo. Torna-se claro,
mais uma vez, a rivalidade entre irmãos (que é, no filme,
a transfiguração de uma rivalidade de classe, cabe salientar):
um, “filho de Deus”, nascido do acaso da Natureza, outro,
produto de um planejamento genético quase perfeito.
O que se observa é que o tema da técnica de manipulação
genética perpassa todo o drama policial (e familiar) de Gattaca.
Apesar do mais alto controle social garantido pelo registro genético,
a espécie humana continua a mesma: dividida em classes sociais
e se utilizando de subterfúgios escusos e clandestinos para atingir
seus interesses egoístas. Ao lado dos mais sofisticados recursos
de manipulação genética, que hoje estão
se tornando realidade pelos avanços da engenharia genética
e da biologia molecular, assistimos a um jogo de ambição
e fraude, seja a de Vincent para ter acesso à corporação
Gattaca e realizar seu sonho de tornar-se astronauta; ou do diretor
Josef, de Gattaca (representado pelo escritor Gore Vidal, num papel
especial), que assassina outro diretor num jogo de poder.
Numa sociedade de controle social quase-absoluto, os “de baixo”
apelam para fraudes sutis, clandestinas, como forma de resistência
individual ao totalitarismo do destino genético. Nesse ambiente
de resistência individual, pode-se perceber certa solidariedade
entre os “de baixo”, como a atitude condescendente do faxineiro
Caesar (representado por Ernest Borgnine) ou pelo médico Lamar,
que aparentam certa simpatia pelos ideais transgressores de Vincent/Jerome.
O filme se passa na corporação Gattaca, mas poderia se
passar num Campo de Concentração ou numa sociedade totalitária
qualquer. E Vincent representa o herói americano – um anti-herói
ao estilo de Charles Chaplin? - em sua luta contra o sistema, agora
representado pelos imperativos categóricos da eugenia social.
A ambição individualista de Vincent é que conduz
a trama. A sua luta é contra o destino de classe – ou casta?
- agora demarcado, graças ao avanço da técnica,
pelo estigma do destino genético. É um destino genético
produzido pelo homem, mas que, na medida em que é produto de
um afastamento das barreiras naturais – o domínio do código
da vida - numa sociedade de classe, tende a tornar-se uma “segunda
natureza”. É contra essa “segunda natureza”,
produzida pela manipulação técnica, que Vincent
se revolta e busca uma saída individual.
Na
ótica do Cinema de Hollywood, as saídas são individuais,
apesar do drama possuir, antes de tudo, conteúdo de classe. A
sociedade do capital, baseada na divisão hierárquica do
trabalho, dividida em classe, com o desenvolvimento da técnica,
tende a incorporar novas determinações de poder e de controle
cada vez mais rígidas e com um lastro natural (pode-se, nesse
caso, considerar mesmo uma divisão de classe, no sentido clássico,
ou sim, uma divisão em casta ou de acordo com o sangue, bem ao
estilo das sociedades tradicionais?).
Em Gattaca, os proletários seriam os Inválidos,
os Condenados da Terra. Apesar disso, a atitude arrogante do verdadeiro
Jerome diante de um policial que o interroga, numa certa passagem do
filme, sugere que, mesmo entre os Válidos existe uma certa hierarquia
de classe - a não ser que os policiais, guardiães da Ordem
genético-fascista da sociedade de Gattaca, sejam da classe dos
Inválidos. Não podemos culpar a técnica em si,
mas a forma social que a desenvolve e se apropria dela.
Gattaca sugere o dualismo Acaso (ligado a “primeira natureza”)
versus Planejamento (imperativo da “segunda natureza”).
Pode-se apreender no filme, certa nostalgia de um passado distante em
que um fio de cabelo era apenas um fio de cabelo (ou uma mera lembrança
afetiva), e não um registro genético capaz de denunciar
a identidade de classe das pessoas, através de exame de DNA.
A luta de Vincent não é apenas contra o Sistema de Gattaca,
mas contra si mesmo, contra seus fluidos e restos corporais capazes
de denúncia-lo como Inválido. É o estranhamento
assumindo proporções abismais, atingindo o próprio
ser orgânico do homem, objeto de uma rede controlativa, de uma
“grade”, talvez uma nova forma de ciberespaço,
capaz de aprofundar o controle social do capital.
Mas
apesar do clima totalitário, o filme expõe as falhas irremediáveis
de Gattaca e do seu sistema de controle. Contra a técnica que
supostamente desumaniza o homem, na verdade, já desumanizado
pelo capital, o diretor e roteirista Andrew Niccol sugere uma “natureza
humana” recalcitrante às imposições sistêmicas.
A perspectiva do filme Gattaca é tipicamente americana,
mas o final não é propriamente um final feliz. O destino
trágico do verdadeiro Jerome,que comete suicido se incinerando
num auto-forno no exato momento em que Vincent parte para Titã,
não deixa de ser um protesto contra a sociedade de Gattaca, que
exclui como lixo humano todos os Inválidos, agora num sentido
amplo, sejam eles de nascimento, sejam eles por incapacidade adquirida.
E o sonho de Vincent (ir a lua Titã), não deixa de ser
singelo e desesperador. É como se o único herói
do filme busca-se lá fora o sentido da vida. Seria a sociedade
de Gattaca uma “gaiola de ferro”, no sentido weberiano,
ou seja, uma alegoria da sociedade (pós)-moderna, uma sociedade
de classe em que só restaria, para as pessoas, adaptar-se, se
auto-incinerar ou então viajar para Titã (se conseguir,
é claro, apresentar-se como um Válido) ?
Giovanni Alves (2003)
|
|