eXistenZ, de David Cronenberg (1999)
eXistenZ, filme com o qual o canadense David Cronenberg ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlin de 1999, é uma ficção científica pós-moderna cyberpunk. Neste, Cronenberg, responsável pelo roteiro e direção, apresenta um mundo complexo e hiper-real, onde as percepções humanas, provenientes de experiências vividas, são substituídas por imagens simuladas e no qual indivíduos que divulgam novas idéias, encaradas de forma extremamente ameaçadora por instâncias da sociedade, precisam se esconder para sobreviver (a exemplo de Salmon Rushdie, autor de Versos Satânicos, entrevistado por Cronenberg em 1995). Contudo, o diretor, propositadamente, não mostra computadores, laboratórios ou quaisquer outros objetos ou ambientes futuristas comumente presentes em filmes de ficção científica. É a supressão intencional desta estética que confere significado à mensagem do filme e aponta suas questões centrais: a assustadora hibridação biotecnológica pode dissipar as fronteiras entre o mundo real o mundo virtual? O ser humano será absorvido por extensões tecnológicas e perderá a visão de si mesmo? Quais são os efeitos prejudiciais de viver em uma realidade virtual? No início do filme a personagem Allegra Geller, projetista de jogos RPG (Role Playing Games) neurais interpretada pela atriz Jennifer Jason Leigh, começa a explicar que seu novo jogo, eXistenZ, constitui um revolucionário sistema de imersão interativa em ambientes virtuais desenvolvido pela empresa Antenna Research. Para jogar eXistenZ são necessários três dispositivos biotecnológicos: um “game pod” (console de videogame feito de DNA e órgãos sintéticos, obtidos através da criação de anfíbios mutantes), uma “bio-porta” (orifício, similar a uma tomada, instalado no final da medula espinhal do jogador) e um “UmbyCord” (espécie de cordão umbilical para conectar o console ao sistema nervoso central dos participantes do jogo). Estes aparatos bombardeiam o sistema nervoso com estímulos neurais até que seja impossível distinguir sua artificialidade, ou seja, até a instituição de um simulacro tridimensional, palpável e extremamente plausível pautado na “geração de modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real” (BAUDRILLARD, 1991, p. 8). O cerne da discussão reside, portanto, em questionar até que ponto o ser humano pode ser seduzido ou não por este simulacro e se existem limites para a total aceitação dos modelos e pressupostos colocados.
Cronenberg, então, acrescenta outros ingredientes à trama. O primeiro deles é a oposição entre virtual e atual. O filósofo Pierre Lévy, no livro O que é o virtual? (1996), coloca que o virtual se opõe ao atual, não ao real, porque a atualização está vinculada à solução criativa de um problema, diferentemente da realização, que envolve somente a concretização de uma possibilidade previamente existente. Em um sistema complexo como o jogo eXistenZ a realização de uma possibilidade representaria a reação (resposta) do sistema, ao passo que a atualização de uma virtualidade seria interativa, uma criação pautada nas ações dos jogadores. A interação entre os participantes do RPG neural constitui, desta forma, o elemento chave para o desenvolvimento da narrativa hipertextual, construída coletivamente e alterada pelas decisões e ações provenientes da cooperação para ultrapassar os desafios colocados pela arquitetura do sistema biotecnológico. Por isso, Allegra argumenta que precisa jogar eXistenZ com alguém amistoso, para verificar se o jogo foi danificado, e que passear pelo ambiente sozinho não tem a menor graça.
Mas, em que medida as pessoas estão preparadas para isso? O personagem Ted Pikul diz: “tenho fobia em ter meu corpo penetrado cirurgicamente... não sei... não posso fazer isso. É assustador, me dá arrepios!”. Ela contra-argumenta dizendo que a instalação do dispositivo abrirá um novo mundo de possibilidades para ele: “Não tem jeito, esta é a jaula para sua raça que o mantém preso em um local minúsculo para sempre. Saia da sua jaula. Saia agora”. Na mesma cena, Willem Dafoe, que faz uma aparição no filme como frentista de posto de gasolina diz: “Continuo sendo frentista após ter sido introduzido aos games, mas só no nível mais patético da realidade”. Esta frase antológica de eXistenZ pode ser relacionada a frase de um poema de William Blake – “Se as portas da percepção fossem abertas, as coisas surgiriam como realmente são: infinitas”. Tais possibilidades são extremamente instigantes porque, como coloca Sherry Turkle (1997, p. 15), “À medida que participam, os jogadores tornam-se autores [...] de si próprios, construindo novas identidades através da interação social”. Com o gradativo mergulho no microcosmo surrealista de eXistenZ, Cronenberg procura oferecer indícios ao espectador de que a hipotética diferenciação entre realidade e simulação colocada inicialmente não existe: o universo de eXistenZ constitui o cenário do jogo transCendenZ – ou seja, é um jogo dentro de outro jogo. Isto configura transCendenZ como um “metajogo” que engloba jogos como eXistenZ para descrever a questionar a transparência da simulação, a substituição da vida real por um simulacro e a transferência de padrões complexos de comportamento do console do videogame para o cérebro dos jogadores (os quais, em determinados momentos, entram em “loop” mental à espera de um código para continuação da interação). Contudo, não satisfeito, Cronenberg conduz o espectador a outras questões: quantos outros níveis existem no jogo? A transCendênciA da eXistênciA é um jogo ou um simulacro? Existe uma saída ou o propósito maior é o abandono do corpo físico em detrimento de um corpo-imagem simulado? O mundo existe ou é um conjunto de ambientes virtuais que integra um simulacro global? Nesta última pergunta reside o maior ponto de convergência entre as propostas de eXistenZ e de Matrix (dos irmãos Andy e Larry Wachowski), filmes que estrearam no mesmo ano (1999). Outros pontos de aproximação entre estes filmes são a presença de bio-portas (sendo que em Matrix o conector é plugado diretamente na nuca) e a utilização do ser humano como fonte de energia para o sistema. Porém, em Matrix os seres humanos são escravizado por uma Inteligência Artificial (IA) que os utiliza como “pilhas”. Em eXistenZ, por outro lado, é o ser humano que “cultiva” anfíbios geneticamente modificados para fabricar consoles para jogos como o eXistenZ, utilizados como um alucinógeno para a “deformação da realidade”. O filme eXistenZ termina com o assassinato do suposto criador do jogo transCendenZ, Yevgeny Nourish, morto por Allegra Geller e Ted Pikul, que seriam terroristas pertencentes ao movimento para a destruição de sistemas que possibilitam “eXistênciA” mediada por dispositivos biotecnológicos. “Morte ao demônio Yevgeny Norish! Morte à Pilgr-Image! Morte ao transCendenZ!” A repetição desta frase familiar (dita em eXistenZ para a personagem Allegra Geller) sugere que o jogo continua em um outro nível, o que deixa uma dos participantes confuso a ponto de dizer: “Não precisam atirar em mim. Digam-me a verdade: ainda estamos no jogo?” Cronenberg demonstra com isso que a possibilidade de acessar e interagir em diferentes níveis de realidade virtual leva à total perda de índices de localização e referência dos limites que separariam o jogo da realidade.
Pollyana Notargiacomo Mustaro
Referências bibliográficas: BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Água: 1991. LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleção TRANS) TURKLE,
Sherry. A vida no ecrã. A identidade na era da Internet.
Lisboa: Relógio d’Água: 1997.
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