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Dogville,
de Lars Von Trier
(2003)
Não
restam dúvidas: Lars Von Trier é um dos melhores cineastas
contemporâneos. Fazer cinema para ele não se restringe
apenas a produzir belos filmes, mas também despertar reflexões
e emoções legítimas em meio à sonolência
da indústria cinematográfica atual. Suas produções
que já somam sete longas: Dogville (2003), Dançando
no Escuro (2000), Os Idiotas (1998), O Reino II
(1997), Ondas do Destino (1996), O Reino I (1994)
e Europa (1991) carregam fortes traços de originalidade
estética, provocação, autoria e reflexão.
Nesse sentido, o filme Dogville chega num momento ideal para
desconstruir as convenções cinematográficas atuais
e discutir o próprio mito “Lars Von Trier” e suas
idéias (geniais?) em torno das possibilidades estéticas
da produção de filmes e do modo como concebemos a arte.
Já com Os Idiotas, primeiro precursor do Movimento
Dogma 95, Trier começou a enfrentar algumas das convenções
do cinema norte-americano, colocou a câmera nas mãos
e filmou um grupo de pessoas que se fingiam de retardados sem se importar
com a iluminação, cenário, maquiagem ou música.
Tudo parecia ser “amador” e “não-artístico”
– porém o que valeu foi a polêmica levantada em
produzir ótimos filmes sem grandes recursos econômicos
e tecnológicos.
Assim, o cinema de Lars Von Trier é polêmico e inovador.
Como um artista que se preze, revê os próprios conceitos
e modifica-os na medida em que nossa percepção é
subjugada pelos filmes hollywoodianos, em sua maior parte. Se Hollywood
pretende mobilizar e satisfazer os nossos sentidos, Trier opera na
contramão: tudo o que ele menos quer é agradar o espectador.
Faz-nos sentir incomodados com todos os seus filmes, uma sensação
de estranhamento nos é comum, uma emoção absurda
e cruel nos flerta e, no final, sua provocação parece
ampliar (e não paralisar) a nossa percepção em
todas as suas ressonâncias nos mostrando realidades obscuras
até então. Trier tem convicções tão
egocêntricas que é sem dúvida um neurótico.
Ele próprio já se definiu como um obstinado por suas
idéias – o que talvez seja uma de suas grandes qualidades.
Obviamente que adentrar nos limites de seus filmes é puramente
subjetivo, há quem odeie qualquer referência ao Dogma
95, Trier, Dogville, Björk, impactos e coisas do tipo. Se você
for um destes, é melhor se afastar de Dogville. Mas se quiser
adentrar no universo emotivo proporcionado pelo mesmo, agüente
as três horas de filme e a brutal catarse final.
Dogville
faz parte de um projeto de Lars Von Trier em que na Trilogia América
- País das Possibilidades constarão todas as inconveniências,
absurdos, ironias e a brutalidade da América do Norte no decorrer
do século XX. É uma Trilogia de caráter anti-americano.
O segundo filme já está em fase de produção
e vai se chamar Mandalay. “O filme vai retomar a história
de Dogville, algumas semanas depois do seu final. O terceiro vai se
chamar Wasington (assim sem h)”, antecipa o diretor. Todo seu
esforço começou após Dançando no Escuro
– o qual já mantinha traços anti-americanos quando
uma imigrante tcheca (interpretada pela cantora islandesa Björk)
que tentava uma vida melhor nos EUA, apenas encontrou o sofrimento,
a exploração e a perda. A crítica, principalmente
a norte-americana – a qual detestou o filme – ao invés
de se debruçar sobre as pérolas e os equívocos
do filme acabou por levantar uma questão tão simplista
e banal: as locações. Criticaram o fato de Dançando
no Escuro se passar nos EUA sem nunca Trier nem sua produção
terem pisado no território americano. Uma crítica assim
é tão superficial quanto a maioria dos filmes produzidos
por Hollywood. Seria mágoa dos críticos norte-americanos?
O cineasta, que na verdade nunca viajou de avião por medo,
respondeu em tom de desafio que Hollywood já foi para o Egito,
para a Índia e até para Marte sem nunca terem ido a
esses lugares, tudo se passou nos grandes estúdios hollywoodianos
à maneira deles.
A resposta de Trier foi ir adiante com Dogville e atacar
ainda mais os Estados Unidos, mesmo não indo lá. Confessa
que “queria fazer uma campanha para libertar a América.
Tenho certeza de que é um belo país, porém vejo
muita merda por lá. Oitenta por cento da programação
da TV dinamarquesa é norte-americana. Não me sinto preparado
para ir aos EUA. Este filme é sobre como a América é
na minha cabeça”. Para tanto, optou por um cenário
único e pela primeira vez na história do cinema usado
durante todo o filme: o palco de um teatro. Mas não é
uma peça. Talvez um teatro visual. É um filme puro que
utiliza deste cenário (ou ausência de cenário)
para contar parte da história de Grace, interpretada magicamente
por Nicole Kidman, bela e anti-hollywoodiana. A atriz, por sinal,
recusou o papel de protagonista para os próximos dois filmes
da trilogia, sendo substituída no segundo por Bryce Howard.
Grace é sinônimo de graça, uma burguesinha americana
que perseguida por gângsters se refugia numa cidadezinha localizada
nas montanhas rochosas nos Estados Unidos: Dogville, ou quem
sabe “A vila do cão” ou o “País do
cão?” – a qual só no final do filme você
descobrirá o porquê desse nome. A cidade não existe
na realidade bem como não existe um filme filmado num teatro,
mas Trier é um bruxo e faz tudo acontecer. “Dogville
se passa na América, mas uma América vista através
dos meus olhos. Não é um filme histórico, nem
científico. É um filme de emoção. É
claro que fala dos Estados Unidos, mas também de qualquer cidadezinha
no mundo” - declara o cineasta.
Os anos são 1930, época difícil para o país
devido à crise de 1929 que da Bolsa de Nova York expandiu suas
conseqüências ao povo. Há muita miséria,
desavenças e ganância. E Grace sofre tudo isso. Só
acaba sendo aceita em Dogville devido à influência
de Tom (interpretado por Paul Bettany), uma espécie de filósofo
consultor que dialoga com pouco mais de 15 habitantes da cidade. Tom
se define como o homem que cuida da “alma humana bem onde ela
cria bolhas.” Tom é esperto, pois tem interesses: é
apaixonado por Grace, só lhe quer o bem, até que sua
máscara lhe escapa pela própria Grace. Tom na verdade
é um cínico que joga através das ambigüidades.
O tempo avança. A forasteira é acolhida pelos moradores
(sinal de aceitação pelo estrangeiro?), porém
em troca de serviços domésticos à comunidade.
Mais tarde será escravizada, humilhada e delatada aos policiais.
O próprio Tom convence Grace: “Salvar a sua vida não
vale um joguinho?”
Por algumas cenas “fortes” constantes em seus filmes,
Trier sempre é acusado pela crítica de “maltratar”
suas atrizes, que ao meu ver sempre foram suas heroínas. O
diretor mostra que tal tratamento se restringe apenas à construção
da personagem. Declara que “Algumas pessoas acham que eu não
gosto de mulheres, o que é falso. É sobretudo com os
homens que tenho problemas (…) Os homens à minha volta
estão sempre a chatear-me, a trair-me nas costas. As mulheres
não fazem isso. Nicole disse-me que queria trabalhar comigo.
Escrevi o papel de Grace para ela, ou para a imagem que tinha dela.
Descobri que é uma ótima atriz. É interessante
escolher alguém que fez sobretudo papéis frios e deixar
fazê-la outra coisa. E depois é também interessante
pegar numa estrela de Hollywood e pô-la num filme destes. Talvez
atraia um público diferente, a menos que fiquem assustados
pelo fato de só haver atores e um chão negro...”
Grace carrega trejeitos de Bess (de Ondas do Destino) e de Selma (de
Dançando no Escuro), uma voz inocente e misericordiosa de quem
se desespera pela redenção de um mundo melhor. Mas logo
nos surpreendemos com o final brutal e irônico de Dogville.
Toda a fé e a esperança existente em seus outros filmes
agora se reestruturaram na desesperança, num mundo cruel, numa
existência triste, nas mesquinharias e explorações
capitalistas. Trier mostra o quanto a “natureza” humana
é transformada pelo Poder que, em seu abuso, acaba por destruir
qualquer traço de solidariedade e humanidade (característica
melhor revelada no final do filme). A própria música
utilizada em várias cenas, de Antonio Vivaldi “Cum Dederit”
do Salmo 127, faz referência a tal crueldade: “Se o Senhor
não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam;
se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela/
Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde,
comer o pão de dores, pois assim dá ele aos seus amados
o sono”. Assim Dogville parece ser uma parábola política
quanto às formas de utilização do poder por aqueles
que estão numa situação mais favorecida.
O filme é dividido em 9 capítulos e um narrador em off
(John Hurt) anuncia o que veremos nas próximas cenas de
modo irônico. No último capítulo é avisado
que o filme está acabando, ou seja, nossas três horas
assistindo a Dogville está na rodada final. Se em
Dançando no Escuro era avisado em letras garrafais
no final que não era propriamente “o final” nem
a “última canção”, agora Trier nos
diz claramente que o filme deve encerrar. Mas será mesmo o
fim? Não, nos créditos desfilam fotos originais daquela
região dos EUA, na década de 30, com pessoas e lugares
na miséria e abandonados. O som é de David Bowie “Young
Americans”: o sonho americano contrastado com a pobreza. A impressão
que dá é um sentimento raivoso e uma sensação
de que na verdade o filme não terminou. Algo fica indigesto
e precisa ser resolvido. Porém, a meu ver, ocorrem algumas
ambigüidades e contradições nesse final. Se a tese
do filme é a de que todo ser humano é ruim e utiliza
o poder ao seu modo, os habitantes de Dogville, nesse sentido, por
serem americanos como a Grace, também compartilham o ódio
e esse “abuso” de poder a favor do vilarejo - fato que
poderíamos compará-lo à vingança de Grace.
Será que as pessoas de Dogville, junto às fotos
finais, foram tão cruéis como a Grace ou misericordiosos?
A vingança se paga com a mesma moeda, algo meio bíblico
em que se oferece a outra face? A crueldade não se revela como
a falta de aceitação? A própria Grace profere
no final sobre o “maior” problema humano e de seu país:
o da aceitação.
O
gosto o cineasta por locações de confinamento se resume
à construção do personagem e, mais que isso,
à atenção do espectador apenas na ação
em si e nem tanto no espaço em que ela se desenvolve. A opção
pelo isolamento numa fábrica em Dançando no Escuro
permitiu que o trabalho entre idéias e sentimentos com os atores
não se dispersasse para outros elementos triviais. Tanto que
80% das cenas que vemos no filme são “reais”, ou
seja, foram filmadas na primeira tomada sem necessitar de repetição.
Com Dogville o trabalho com os atores não é
diferente: mente-corpo-intuição, princípios do
Teatro da Crueldade de Antonin Artaud, corações
e mentes dilacerados ao que é primordial e essencial para o
trabalho do artista, conforme também sinalizou Bertold Bretch.
É o próprio cineasta que lida cara-a-cara com seus atores,
ele mesmo faz o papel de consultor, diretor, roteirista, psicólogo
e cinegrafista. Foi Trier que filmou Dogville a todo o momento,
não desligou a câmera nem para o descanso, tudo foi filmado,
desde as conversas, as pausas, as repetições de cena
e os desabafos. Isso deu origem a um documentário intitulado
Dogville Confessions, editado e co-produzido por Sami Naif,
o qual só foi exibido uma vez no Festival de Cinema do Rio
em 2003, em que é algo ambíguo: um making-off
que é também o próprio filme. Os atores choram,
resmungam, encenam, conversam, desistem e encenam. Não se sabe
o quanto se tem de veracidade ou encenação. Estamos
perante o real camuflado pelo ficcional e não o contrário.
Lars
Von Trier foi pretensioso demais com Dogville. Sua provocação
meio impulsiva articulada à industria cinematográfica
atual dá pistas para desconfiarmos do quão “marketeiro”
ele é. Se o cineasta foi ou não aos EUA pouco importa.
Se o Dogma 95 foi uma jogada publicitária de cineastas em baixa,
pouco tem relevância se notarmos o resultado final dos excelentes
filmes do movimento. Às vezes as propostas técnicas
e estéticas do cineasta se sobrepõem ao conteúdo
de seus filmes. Sua estética parece ser mais política
que o próprio discurso. Ou seja, a forma pela qual a história
é contada se torna mais interessante que o fato em si.José
Geraldo Couto diz que “ao construir um país no ‘espaço
vazio’, passando ostensivamente ao largo de preocupações
como a verossimilhança, Von Trier investe na imaginação
contra o naturalismo rasteiro e a hipertrofia expositiva que reinam
na cultura atual. Talvez seja essa a ação mais política
que um artista pode abraçar em nosso tempo.”
Dogville se localiza no esboço de uma cidade, em sua
planta. Vemos do alto o chão negro da cidade e marcas de giz
no solo que delimitam as ruas, as casas e os jardins. São marcações,
como numa lousa, escritas "Casa de Thomas Edison”, “Arbusto”,
“Moisés: o cachorro”, porém não há
nada de real lá, apenas as indicações. Os personagens,
por exemplo, batem à porta das casas, mas não há
porta e, mesmo assim, ouvimos um som semelhante às batidas.
Tal provocação é um tanto incômoda para
nós espectadores. Pois demoramos até cerca de uma hora
para acostumarmos com aquela cidade que na verdade é um palco.
Trier desafia: não temos que crer que os filmes hollywoodianos
feitos em lugares em que nunca fomos como em Marte e na Lua são
legítimos? “Tomei a decisão de fazer um filme
diferente assim, depois que assisti a Senhor dos Anéis com
seus maravilhosos efeitos digitais”.
A composição do filme se desenvolveu a partir de várias
referências como a dramaturgia de Bertold Brecht. Sua maior
fonte de inspiração foi Ópera dos Três
Vinténs e a Canção de Jenny de
Brecht e Kurt Weill - a qual também inspirou A Ópera
do Malandro de Chico Buarque. “Nesta ópera, existe
a canção da personagem feminina, que fala de vingança.
E existe a própria concepção de Brecht e Weill
de fazer uma ópera contra o capitalismo. Aproveitei as idéias
básicas da ópera - a discussão sobre as origens
do capitalismo, a personagem feminina, usada e abusada, a vingança”
– diz o cineasta. Apesar de ser inevitável a comparação
de Dogville com o retrato do capitalismo brutal figurado por George
W. Bush, o cineasta diz que não pensou no filme “como
um comentário sobre a América reacionária de
Bush filho. É verdade que ele representa tudo o que eu odeio
num político, está fazendo a vida pior para todos nós
no planeta, menos para os seus cúmplices. E talvez esse sentimento
tenha passado de forma inconsciente para o filme.”
Dogville, que perdeu para Elephant de Gus Van Sant
a Palma de Ouro de melhor filme no Festival de Cannes em 2003, é
sem dúvida um dos melhores filmes para 2004. Não é
sempre que temos a dádiva de desfrutarmos produções
como esta. Se Trier defende a sua tese (e a sua não-tese) resta
a nós testar os limites de seus filmes. O fato é que
o cineasta já alcançou a maestria e a autenticidade
na industria cinematográfica presente. Fazer um “cinema
da crueldade” nos tempos atuais parece ser uma inconveniência
dissonante. Mesmo com um público se formando a cada filme,
Trier continua a ousar, a radicalizar e a incomodar o espectador em
sua confortável passividade diante da arte e talvez da própria
vida.
José
Rodrigo Gerace,
é graduando em Ciências Sociais da UNESP
– Campus de Araraquara
(2004)
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