“Cidade dos Sonhos” de David Lynch


(2001)

 

A vida é sonho. E, muitas vezes, o sonho converte-se em pesadelo. O cinema de David Lynch parece organizar-se com freqüência em torno deste limiar frágil que separa a realidade e a fantasia e, ao assim proceder, a própria natureza do cinema é igualmente colocada em discussão. Afinal, existirá arte mais próxima do onírico? Quando as luzes se apagam, quando a tela branca vai sendo paulatinamente preenchida por uma infinidade de imagens, não é ao mundo dos sonhos que nos transportamos? De tão fundamental, tal associação já foi desenvolvida pelos mais diferentes cineastas, nas mais inesperadas direções. Tomemos apenas um dentre muitos exemplos possíveis: O Gabinete do Doutor Caligari de Robert Wiene (1920). Quem sonha neste filme clássico? É o louco com seus delírios persecutórios, vendo no diretor do asilo um ser diabólico que o persegue? É o Doutor Caligari, vilão que a todos engana, fazendo-se passar por médico? É o público, que acompanha avidamente primeiro o delírio do louco, depois a desmistificação do homem de ciência, sempre crédulo, no entanto, ao acompanhar a força irresistível das imagens? Ou serão as massas na própria Alemanha que, anos depois irão mergulhar no pesadelo do nazismo? O adormecer e o sonhar da razão produzem figuras monstruosas, mas estas nunca mais foram as mesmas a partir da invenção do cinema.


É justamente em torno de uma figura monstruosa que Lynch começa a tecer seu mundo onírico particular. O Homem Elefante (1980) é o retrato provavelmente mais acabado de um monstro humanizado – John Merrick –, educado, gentil, sensível mas desfigurado pela doença. Mais deformada e horrível, no entanto, é a sociedade vitoriana que o circunda, com os horrores da revolução industrial, com a curiosidade pelo grotesco explorada pelos circos populares, com o olhar insolente do cientificismo autoconfiante do século XIX. Curiosamente, diante desta realidade opressiva, o ponto de fuga de Merrick será o sono, o sonho, a morte.


Desde então, os pesadelos se sucedem nos filmes de Lynch – Veludo Azul (1986), Twin Peaks (1992), A Estrada Perdida (1997) – apenas com um magnífico sonho de maturidade, como que a funcionar de contraponto – Uma História Real (1999). E com Cidade dos Sonhos (2000), é o próprio lugar de produção por excelência das imagens oníricas da atualidade que se encontra em causa. É o sonho de Hollywood – logo, o sonho sonhado por todos nós, em todo o mundo – que é o objeto do filme. Nele, vida e sonho estão tão firmemente interligados que as fronteiras se esvanecem, os sentidos se misturam, as propriedades estão trocadas. A experiência real de Diane/Betty, sua busca desesperada pela fama em Hollywood, toma a forma de um pesadelo, ao passo que seu sonho, o desejo de comunhão com Rita/Camilla, emerge como uma narrativa realista e organizada, embora cheia de mistérios. Começa-se pelo sonho, que por mais coerente que seja, ainda assim apresenta lacunas e enigmas: quem é Rita, por que a perseguem, onde conseguiu o dinheiro que encontra em sua bolsa, por que está permanentemente triste?

Quando finalmente o sonho é deixado para trás, surge o pesadelo que é a vida de Betty. Apaixonada por Camilla, vive como atriz fracassada, talvez prostituta, que se desespera diante da possibilidade de perder Camilla para o jovem diretor Adam Kesher. O ciúme a leva a encomendar a morte de Camilla e ao suicídio, envenenada pela culpa. Mas nada está nitidamente separado, pois essa vida “real” permanece imersa num clima onírico de desespero. Tudo o que Betty persegue em sua vida é ilusório, quer seja o sucesso como atriz em Hollywood, quer seja o amor incondicional de Camilla. Em contrapartida, Diane busca certezas: a identidade de Rita, a reconstituição de sua história, o lugar certo de todas as coisas. Mas, do mesmo modo que atrás da música não há orquestra, atrás do mistério não há realidade, mas apenas a crescente confusão entre o onírico e o real que contamina e confunde tudo. O único fio condutor é o desejo de Diane/Betty por Rita/Camilla, que transita através da caixa azul. Silêncio! Não há realidade! Apenas naufrágio no desejo.

Ao final de um filme tão perturbador, alguém pode ainda despertar na sala de cinema, seguro do fim da ilusão? Não é a sociedade do espetáculo que ainda nos espera do lado de fora? Afinal, quem governa hoje a Califórnia: Conan ou o Exterminador do Futuro? Bem vindos ao pesadelo do real!

 

Marcos César Alvarez,
é professor de sociologia da USP (Universidade de São Paulo)
(2004)