“Neve sobre os Cedros”, de Scott Hicks


(1999)

 

 


Neve sobre os Cedros é um filme sobre um julgamento. Cobrindo o julgamento, o repórter Ishmael Chambres (Ethan Hawke – de Sociedade dos Poetas Mortos e Gattaca) reencontra seu primeiro amor, que agora está casada com o acusado do crime. Ocorre que Ishmael se defronta com um grande impasse, pois suas investigações levantam evidências reveladoras, o que lhe gera conflito, resultante do aspecto emocional associado ao passado (esse fato põe em questão aspectos éticos – inclusive associados a sua profissão de jornalista - e um dilema interno). Porém, este não é apenas um filme sobre o julgamento de um homem. Mais do que isso, pode-se dizer que a sociedade está em julgamento. Como bem expõe o veterano advogado (Max von Sydow, de O Exorcista) ao se dirigir aos jurados, na sustentação de defesa do acusado: “Vejo aqui a mesma fraqueza humana, passada de geração para geração. Odiamos uns aos outros. Somos vítimas de medos irracionais e de preconceitos. Vocês podem pensar: este é um pequeno julgamento em uma pequena cidade? Não! De vez em quando, em algum lugar do mundo, a humanidade vai a julgamento. Assim como a integridade e a decência. De vez em quando, pessoas comuns são chamadas para dar nota à raça humana”.


O filme se passa logo após a Segunda Guerra Mundial, sendo que o acusado é um nipo-descendente. Aliás, a irracionalidade fica evidente pelo próprio comportamento dos agentes da Justiça, na condução do julgamento. O juiz chama a atenção para o 9º aniversário do ataque a Pearl Harbor (ainda que argumentando que isso não se relaciona ao julgamento, provoca exatamente o efeito contrário, ao chamar a atenção para o fato). O promotor, como bem lembrou o advogado de defesa: “[...] pediu aos jurados para olhar e considerar a aparência do acusado. Julgar como um americano. Não precisam provas contra um homem que bombardeou Pearl Harbor. Olhem seu rosto e verão nele um inimigo!”.

O fato do acusado ter lutado com bravura como tenente americano na Europa parece não ser tão relevante. O que importa é que ele é um “japonês”, um inimigo, que deve ser condenado. Assim, o filme demonstra o lado sombrio da personalidade humana, eivada de preconceitos, ódio e intolerância. A propósito, ressalte-se, nesse aspecto, a sintonia com a fotografia do filme, em tomadas externas, cercada de névoa, chuva e neve, como que uma alusão à personalidade sombria e fria... Mais do que a mera narrativa sobre o julgamento, acentua-se os aspectos subjetivos, presentes nos diálogos, em particular quando dos testemunhos no tribunal. Muitos estão cheios de preconceito e ódio (ainda que de forma implícita), mas, como bem esclarece no seu depoimento a esposa do acusado: “[...] julgamentos não refletem sempre a verdade, embora assim devesse ser”.


A natureza humana se revela no próprio julgamento, no retrato da época. O preconceito contra os nipônicos nos EUA durante a Segunda Guerra Mundial é a amostra da intolerância contra um grupo étnico diferente. A propósito, o filme chega a mostrar campos de concentração para os japoneses e seus descendentes, demonstrando que a injustiça e a intolerância também esteve presente em território estadunidense, ainda que a história oficial pareça fazer questão de esquecer (aliás, a história é escrita pelos vencedores...). O ambiente social em si era intolerante e carregado de preconceito e, assim, o julgamento nada mais é do que o retrato disso, com o desejo de antecipar a condenação, de acordo com um preconceito acerca da raça do acusado.

Um outro aspecto interessante a ser analisado no filme é o fato de que a acusação toma como motivo do crime a suposta vingança, já que a venda da propriedade dos pais do acusado foi frustrada pela atitude da mãe da vítima, que, com torpeza, vende a terra, desfazendo um contrato celebrado anteriormente entre seu falecido esposo e o japonês; ela vende por um preço superior a uma outra pessoa, beneficiando-se (note-se que o japonês, pai do acusado, só não honrou seu compromisso quanto às ultimas parcelas porque foi enviado para um campo de concentração). Mas, a intolerância e a torpeza não se limita a essa senhora, como fica acentuado no filme: o próprio Estado proíbe contratos relacionados com territórios nos EUA, envolvendo imigrantes japoneses, nessa época de guerra.

O filme retrata a intolerância na sociedade, a discriminação racial e a injustiça (individual ou institucionalizada). Fatos semelhantes continuam muito presentes, em várias partes do mundo...

 

Sérgio R. Urbaneja de Brito
é Advogado, Mestre em Direito pela UNIVEM
(2004)