“O Casamento”,
de Arnaldo Jabor
(1975)

 

Eixo Temático

A objetivação histórico-particular do capitalismo no Brasil produziu uma estrutura (e um imaginário) social lastreado em contradições dilacerantes entre potencialidades de desenvolvimento da individualidade humano-genérica e obstáculos modernos (e tradicionais) à objetivação da personalidade humana. A incapacidade de romper com o tempo passado e os valores da tradição, baseado numa ordem oligárquica-mercantil de viés escravista, e o desenvolvimento intenso da modernização do capital, criou formas sócio-reprodutivas de candente particularidade. É o caso da família burguesa, que se constitue no Brasil já totalmente dilacerada pelas contradições de um capitalismo hipertardio de via prussiano-colonial. Tal objetivação particular do capitalismo no Brasil irá imprimir sua marca nas classes e instituições sociais (como o casamento). A classe média que tende a ser a síntese trágica, a dramatis personae, da civilização do capital no Brasil; com suas contradições lancinantes, irá se expressar com desenvoltura a particularidade nacional. Ela irá expressar em suas atitudes ético-morais e de hipocrisia social, as idiossincrasias de uma modernidade inconclusa ou de uma modernização conservadora. Irá traduzir a tragédia histórica de um proletariado débil em sua consciência de classe e de uma burguesia incapaz (ou inapetente) em romper com o lastro passadista; e de um Estado-Nação inacabado, mas voraz em abrir veredas de modernização pelo alto, alterando a ordem social e política para preserva-la da irrupção social e popular.

Temas-chave: capitalismo hipertardio e classes sociais; modernidadade inconclusa e instituições sociais; família, reprodução social e crise do capital; violência, mulher e sociedade; valores e estranhamento social.

Filmes relacionados: “Beleza América”, de Sam Mendes; “Toda Nudez Será Castigada”, de Arnaldo Jabor; “Festa em Família”, de Thomas Vintenberg; “Tempestade de Gelo”, de Ang Lee.


Análise do Filme


Baseado num romance de Nelson Rodrigues (de 1966), o filme “O Casamento”, feito em 1975, é a segunda adaptação de uma obra rodriguena feita Arnaldo Jabor para o cinema (a primeira foi “Toda Nudez Será Castigada”, de 1973). Em “O Casamento”, Jabor continua se apropriando da crítica mordaz de Rodrigues à família pequeno-burguesa e destacando a hipocrisia moral da sociedade brasileira. Na verdade, em Nelson Rodrigues, a precariedade estrutural da sociedade brasileira, em seus vários aspectos sócio-reprodutivos, se traduz, a partir da ótica de classe média, na inversão (e perversão) de seus valores ético-morais. Neste filme, através do exagero obsceno de Rodrigues, Jabor expõe os pressupostos precários do casamento, instituição ritual fundante primordial da família moderna, tão cara à classe média. O que se esconde sob a aparente trama familiar é perversão sexual, homosexualismo, injustiça, adultério e incesto (o tema de “O Casamento”). Rodrigues explicita tais tabus para dissecar, como a autópsia de um cadáver insepulto, a sociabilidade do núcleo familiar burguês. Ele exagera, é claro,mas o exagero em Rodrigues é tão-somente recurso estilístico para traduzir os limites de uma objetivação social capitalista de via colonial-prussiana.

É a partir da ótica de classe média que os impasses estruturais de uma das mais importantes instâncias sócio-reprodutiva do sistema do capital, a família, se tornarão bastante claro. Na verdade, é possível dizer que a impossibilidade da família moderna, e sua promessa de comunidade ético-moral, é o tema candente de Nelson Rodrigues. Percebemos isso, por exemplo, no filme “toda Nudez Será Castigada” e agora, em “O Casamento”. Se no primeiro, Jabor nos mostra a dissolução da família a partir da morte da matriarca, em “O Casamento” ele trata dos fundamentos dilacerados dos laços familiares, tanto no interior de uma família burguesa (a do Dr. Sabino), quanto as bases morais precárias da constituição prévia de outra família através do casamento (a de Glorinha, filha de Sabino, que deve se casar nas próximas 48 horas).

Como diz o Dr. Sabino, um dos personagens centrais do filme: “O importante é o casamento”. É a aparência ritualística, mero verniz de uma estrutura societária dilacerada pela desigualdade social e pela inconclusão de projetos de modernização. É importante salientar que a modernidade não é apenas um projeto de desenvolvimento, mas um projeto ético-moral de sociabilidade burguesa. O que Rodrigues expõe, como crítico mordaz da sociabilidade burguesa no Brasil, é a falência prévia da modernização antecipando, portanto, os dramas de dissolução da família burguesa tão presentes no cinema de Hollywood a partir dos anos 1970.

A ação de “O Casamento” se passa nas 48 horas que antecedem o casamento de Glorinha, filha do Dr. Sabino, um pequeno barão da indústria imobiliária. Logo na abertura do filme, cenas das inundações que atingiram o Rio de Janeiro em 1966. Pode-se considerar que, para Arnaldo Jabor, a alienação da pequena burguesia das grandes cidades é "uma calamidade pública". Ou que, é dá "metáfora nasce a violência libertadora". Por isso seu filme começa com uma metáfora nada sutil, ou seja, as imagens de uma catástrofe: as enchentes que assolaram o Rio em 1966. Mas possui também outra significação: é como se a tragédia da Natureza apenas prenunciasse a tragédia da família. É curioso que o mesmo tema metafórico aparece tanto em “Beleza Americana” (de Sam Mendes), quanto em “Tempestade de Gelo”, de Ang Lee. Em Jabor, a Natureza, ou o dilúvio (sem uma Arca de Noé), é tão-somente é o mote para amaldiçoar a hipocrisia, a perversão e inversão moral das classes dominantes brasileiras. As inundações são mostradas sob a trilha sonora da Valsa Nupcial, de Mendelsohn (um dos pontos altos do filme é sua trilha musical – Ludwing Beethoven, Mahler, Ernesto Lecuona, Mike Stohler e Mendelsohn - que o transforma quase numa ópera à decadência burguesa no Brasil. O próprio Jabor, em depoimento, iria reconhecer a “cara meio operistica” de “O Casamento”).


Nas 48 horas que antecedem o casamento de sua filha Glorinha, interpretada por Adriana Prieto (em seu último papel no cinema), Dr. Sabino (Paulo Porto), empresário da Construção Civil, entra numa crise existencial. Tem a consciência tão inflamada de culpa que até sonha estar morrendo como um de seus pedreiros cercado de britadeiras (mais uma vez a inversão de “papeis sociais” – no sonho, o burguês se interverte no operário - expõe a crise da consciência burguesa. Talvez, uma aproximação com Teorema, de Píer Paolo Pasolini posso ser interessante) Quando o Dr. Sabino, enjoado de si mesmo, se olho no espelho, o allegretto da sétima sinfonia, de Beethoven, inunda a trilha sonora. É acometido de reminiscências da sua infância, quando a mãe lhe dizia peremptoriamente ser ele um “homem de bem”.

No espirilo de Sabino iriam se debater suas contradições íntimas – ser um “homem de bem”, como lhe diz a mãe. Sabino parece ser um homem religioso e devoto (o nome da sua empresa é Imobiliária Santa Terezinha), além de possuir respeitabilidade social (diz ele: “...lutei muito e dou emprego a muita gente”, sintetizando toda a ideologia do bom burguês). Entretanto, está transtornado por desejos escusos e perversões sexuais contidas (ele pergunta angustiado para o padre: “Sou um homem de bem ou não sou?”).
Em seu encontro de alcova com a secretária Noêmia, Sabino confessa ter tido desejos homossexuais na adolescência, desmentindo logo a seguir. Fantasia erótica ou realidade? Além disso, parece ter gritado pelo nome de Glorinha, sua filha, quando fazia ato sexual com Noêmia. Enfim, Sabino é um poço de perversões sexuais que, diante de uma situação-limite (o casamento da filha tão desejada) explodem em sua interioridade (Diz Sabino: “Esse casamento é tudo para mim...Ë minha vida”).

Ora, tanto a homossexualidade, quanto o incesto, desejos ocultos de Sabino, são formas de transgressão (ou renúncia inconsciente) da identidade íntima do homem. Na verdade, como pai, Sabino vive numa profunda crise de identidade pessoal. O que Rodrigues sugere no drama de Sabino é a desconstrução da autoridade paterna, “ponto de Arquimedes” da estrutura familiar burguesa. É a crise do pai, que percorre todas as narrativas de crise da família burguesa. É a crise do macho, da autoridade burguesa, sempre ameaçada nas condições de um capitalismo subalterno de via colonial-prussiana.

Na verdade, a “crise do pai” percorre toda a trama narrativa de “O Casamento”. Está também, por exemplo, na relação do Dr, Camarinha com seu filho Antonio Carlos e na relação do travesti José Honório – uma “bicha suburbana”, como o chamava Antonio Carlos - com seu pai autoritário. Para compensar sua interioridade cindida pela culpa, sua crise de identidade pessoal e da auto-representação do poder do macho, Sabino, em suas relações cotidianas, parece ser um homem autocrático, que procura impor respeito e autoridade, como observamos em sua relação com a secretária Noêmia, tratada por ele meramente como objeto de prazer sexual ou de confissões íntimas. A alcova do casal é um quarto de apartamento de uma família humilde num conjunto residencial, provavelmente de propriedade de Sabino. Ele diz sobre o local: “Só moram famílias...”. Ou seja, a atitude de Sabino não deixa de ser a profanação dos espaços do lar familiar. Por exemplo, a cena das crianças no corredor ouvindo os gemidos de Noêmia é emblemática desta corrosão (e subversão) moral do ideal do lar.


Essa crise dos “papeis sociais”, um dos aspectos da crise da instância sócio-reprodutiva da família, transparece também na observação (que abre o filme) feita pelo Dr. Camarinha, ginecologista, amigo próximo de Sabino. Ele diz que Teófilo, noivo de Glorinha, é pederasta. Alerta Sabino deste “flagelo”, dizendo ter visto Teófilo beijando José Honório, assistente dele na Clinica. Mas, Sabino parece não se abalar com o que Camarinha diz e decide manter a cerimônia. Afinal, o importante é manter as aparências de respeitabilidade social. Na verdade, Sabino vive sua profunda crise existencial, não fazendo para ele qualquer diferença a denúncia do amigo ginecologista.

Na sua confissão para o padre, Sabino expõe um drama edipiano clássico. Ao som do canto gregoriano, Sabino expõe seus conflitos íntimos. O padre, que exerce quase o papel de psicanalista (o que expressa uma representação de “sociedades tradicionais”, pouco especializadas) vocifera para Sabino: “Assuma sua lepra”. Ora, o padre parece ser a voz do escritor Nelson Rodrigues, sugerindo que o espírito do burguês esta corroído pela lepra moral. Seria a lepra moral de uma burguesia incapaz de realizar, em si e para si, o projeto de modernidade? Não apenas uma modernidade como projeto de desenvolvimento, mas como projeto ético-moral.


Mas além do drama íntimo de Sabino, “O Casamento” expõe outra tragédia afetiva: o de Xavier com sua esposa morfética. No caso, a lepra da mulher de Xavier não é metafórica. Diz ele: “Minha mulher não é mais mulher...”. O que significa que há muito tempo ele não faz amor com ela. Mas pode expressar a crise das representações pessoais. Xavier confessa para Noêmia, a secretária do Dr. Sabino, sua amante, a profunda insatisfação conjugal que sente. Mas, ao mesmo tempo confessa sua incapacidade em deixar a esposa morfética e cega. É um dilema moral profunda que degrada a interioridade de Xavier. É a tragédia de uma impotência atroz que iria se resolver num gesto transloucado de violência no final do filme: ao ser abandonado por Noêmia, insatisfeita por ser amante de homem casado, Xavier assassina a amante e a própria esposa - dá-lhe um tiro à queima roupa após dizer para ela que, naquela noite eles iriam “fazer amor...como antigamente”. Antes diz: “Eu quero que você saiba que você é a única mulher que amei...eu nunca te traí”. A seguir, mata a mulher e se mata, num desfecho trágico típico de situações-limite.

Por outro lado, percebemos a tragédia da personagem Noêmia, mulher proletária, carente, submissa e sempre disponível (disse, certa vez para Sabino: “Desde que eu entrei aqui eu gosto do senhor”). Noêmia é a representação da Amélia, mulher solitária e generosa, oprimida pelo burguês Sabino e cuja irresolução íntima de Xavier a dilacera. Na verdade, Noêmia aparece apenas como a mediação trágica das misérias íntimas de Sabino e de Xavier.


No filme “O Casamento”, os personagens são densos, complexos e intimamente problemáticos. Até um personagem lateral à trama narrativa, como o de Antonio Carlos, filho do Dr. Camarinha, em sua relação com Glorinha e com Maria Inês (amiga de Glorinha e loucamente apaixonada por ele), é passível de interpretações densas (o mesmo ocorre com o personagem José Honório, em sua curta apresentação). Antonio Carlos é a representação do jovem rebelde sem causa, playboy mimado, sem eira nem beira, imerso em conflitos íntimos, como todo personagem de Nelson Rodrigues. É com ele que Glorinha vai perder a virgindade. Eles chegam a fazer amor num dos aposentos do apartamento-mansão de José Honório, “bicha suburbana”, oprimida e humilhada por Antonio Carlos diante de todos. É marcante o cenário do casarão carcomido pelo tempo, escuro, sepulcro de um homossexual e de seu pai, um velho paralítico em contorsões epilépticas numa cadeira de rodas. Não há esperança, somente pesadelo. Nesta cena barroca, a “bicha suburbana” (como Antonio Carlos a chamava), confessa seus dramas íntimos e sua história de vida de opressão paterna. Diz ele: “Papai nunca falava comigo”. Mais uma vez, expõe-se o drama de famílias desestruturadas, tão salientado por Rodrigues que disseca em carne viva traumas mal resolvidos e dilacerações íntimas do seio familiar. Antonio Carlos, em seus diálogos com Glorinha e Maria Inês, chega a dizer: ‘Ninguém me conhece”. E diante delas ameaça se matar. Diz ele: “Todos os dias alguém me salva, entende?”. Mas, após tirar a virgindade de Glorinha e ser rejeitado por ela, que está noiva e vai se casar com Teófilo (personagem que só aparece na cena final do casamento), Antonio Carlos comete um gesto trágico – ele se mata, jogando o Jeep em cima de um poste. Naquela noite, ninguém o salvou de seu vazio interior.

No velório de Antonio Carlos, Dr. Camarinha, seu pai, expressa dilacerado, seu sentimento de culpa, pois naquela noite em que AntonioCarlos se matara, ele deu-lhe uma surra. Diz Camarinha insistentemente: “Eu sou uma merda! Dei na cara do meu filho”. Novamente, é a crise da autoridade paterna incapaz de lidar com situações de descontrole de relação pai e filho.


Finalmente, o vazio moral e afetivo da família Sabino é exposto num diálogo final entre o pai, Dr. Sabino, e a filha, Glorinha. Ele ocorre na areia à beira do mar (o mar, logo ao lado de Sabino e Glorinha, é outra representação alegórica de Jabor para o tumulto íntimo dos personagens). Glorinha pergunta para o pai: “Como é que o senhor pode gostar da mamãe?”. Logo adiante Sabino iria dizer que tem “uma certa pena dela...mas não é amor”, expressando, deste modo, a frieza na relação com sua mulher. E a seguir Glorinha diz: “Nas nossas conversas o senhor não diz tudo”. E interroga: “o senhor gosta de mim, papai?”. É nesse diálogo final que Glorinha explicita sua insatisfação visceral para com a família e para com suas relações afetivas. Desabafa dizendo: “Odeio a mamãe, as irmãs e não gosto do meu noivo”. E diz: “Gosto de outro...outro de quem não podia gostar”. Novamente, aparecem afetos deslocados e invertidos que sedimentam as relações sociais precárias. Entretanto, quem confessa seu amor incestuoso por Glorinha é Sabino. ela reage com indignação. Mais tarde, Glorinha iria dizer para a mãe, enquanto esta arrumava os presentes de casamento de Glorinha: “Mamãe, papai quis me violentar’. A resposta indiferente da mãe demonstra a incomunicabilidade profunda dos personagens da família Sabino. A mãe apenas disse: “Tua tia te deu uma bandeja de alumínio”. Além disso, a atitude da mãe de Glorinha expõe uma mulher materialista e indolente, incapaz de se indignar com as misérias da afetividade pervertida. É curioso que é sempre a mãe de Glorinha que anuncia as tragédias de morte. Por exemplo, foi ela que acordou Glorinha, comunicando, exaltada, a morte de Antonio Carlos. E foi ela que comunicou para todos – principalmente para Sabino – o trágico assassinato de Noêmia , encontrada morta no local de trabalho (a Imobiliária Santa Terezinha).

Em "O Casamento", a crise da família burguesa é apresentada em tom operistico, em clima de um cataclismo, no qual aparecem (ou padecem) incestuosos, morféticos, adúlteros, suicidas, insanos e homossexuais. O cineasta explica: "O que pretendia era, através de uma concentração violenta de clímax, num limite quase intolerável, construir uma metáfora tempestuosa de vendaval que vai levando a vida" O que Jabor fez, embora possa não saber, foi uma apresentação trágica das inconclusões do projeto ético-moral da modernização capitalista. Ou ainda, da miséria moral que atinge o núcleo orgânico das classes dominantes num país capitalista de modernização hipertardia e de via colonial-prussiana.

Giovanni Alves (2004)