“Vinhas da Ira” de John Ford

(1940)

 

 

 

Crises cíclicas do capitalismo e impactos nas condições de vida da classe trabalhadora

 

“As vezes eles fazem coisas com você.
Eles o machucam até você se tornar um homem mau.
E o machucam de novo e você se torna pior ainda.
Até que não é mais menino nem homem, apenas malvadeza encarnada.”

(Ma Joad).

 

Introdução

Nessa sintética análise do filme “As Vinhas da Ira” (1940), em termos metodológicos, também consideramos a narrativa fílmica como uma totalidade semiótica com intensa capacidade de interação e produção de significados, que vão além de luz, som, roteiro e atuação. Se por um lado um filme não é apenas um complexo de técnicas aglomeradas, ele também não é auto-explicativo, pelo contrário, torna-se mais difícil compreender uma produção humana se não compreendemos o contexto social no qual foi produzido, pois, está repleto de significação social-histórica. O produtor também é produzido por determinada realidade e suas respostas podem ser múltiplas, tratam-se estruturas pré-postas que lhe exigem respostas e tomadas de posições. Nesse sentido, a arte é entendida aqui como emanação de potencialidade que se objetiva de variadas formas, seja na forma de pintura, literatura, esculturas, cinema, teatro, música, dança, ciências, entre outros.

A narrativa fílmica, por ser produzida por seres sociais de um período social determinado traz sempre à reflexão um complexo articulado, como sínteses de múltiplas determinações históricas à disposição do espectador, uma interpretação da realidade que é marcada universo humano-social, e que não pode furtar-se completamente disso. Por outro lado, a interpretação do espectador tende a ser marcada não apenas pelos elementos apresentados pela narrativa, mas também é influenciada pela realidade do espectador, que re-significa e interpreta os elementos que lhe são apresentados. Nesse sentido o espectador também é sempre sujeito atuante, o que faz dele um sujeito-espectador. Desta forma, um dos elementos centrais a ser observado na narrativa fílmica é a forma histórico-social nos quais aspectos das relações de hominidade são representados.

Por se tratar de abordagens distintas de elementos constitutivos das relações humanas, ainda que de variadas formas, em muitos aspectos a narrativa pode transcender a imediaticidade histórica de sua produção, podendo estimular a pensar não apenas o período em que se decorre a narrativa, mas também a própria realidade material e social do sujeito-espectador a partir de elementos concreto-objetivos recorrentes em nosso tempo presente. Ou seja, trata-se da interação de temporalidades distintas, a do tempo da produção da obra e a do tempo presente do sujeito-espectador. Esta confrontação temporal e social oferece ampla gama de aspectos e elementos que conformam e disponibilizam vias para a crítica das relações sociais.

 

Análise do filme

O filme “As Vinhas da Ira”, dirigido por Jonh Ford, é um excelente exemplo de obra de arte que se faz clássica pela riqueza de sua abordagem, principalmente por tratar de problemas sociais ainda atuais, que perpassam gerações durante o desenvolvimento das relações burguesas, tais como consciência de classes, superexploração do trabalho, formas de materialização da disciplina e violência na ordem burguesa. O filme foi baseado no romance de John Steinbeck, que têm o mesmo título. Servido-se largamente dos efeitos Claro e Escuro, o diretor em um intenso e envolvente discurso fílmico narra por meio do drama da Família Joad a história de famílias de trabalhadores rurais durante a Grande Depressão Econômica, que vai de 1929 até a primeira metade dos anos de 1930.

Rumo à Califórnia

Somou-se à Grande Depressão, fatores de ordem natural climático que geraram um período de baixa produtividade agrícola, com isso, muitos fazendeiros ficam endividados perdem as terras hipotecadas e vão à falência, pequenos proprietários e arrendatários são expulsos das terras onde vivem e trabalham, suas casas são demolidas por tratores, além disso, são contratados capangas e policiais pelos proprietários para garantir que as famílias abandonassem as terras onde viviam. Embora não possamos subestimar a importância e os impactos das crises do sistema capitalista, é necessário observar que elas, não podem ser encaradas apenas como fenômenos eventuais, mas sim como parte intrínseca da dinâmica organizacional e da própria reorganização do sistema capitalista, que hora desencadeiam processos mais ou menos intensos e traumáticos. Como nos lembra Hunt: [...] Na primeira metade do século XIX, por exemplo, os Estados Unidos só tiveram duas crises econômicas graves (que começaram em 1919 e em 1937) e a Inglaterra teve quatro (que começaram em 1815, 1825, 1836, 1847). Na ultima metade do século, as crises ficaram mais graves e aumentaram para cinco, nos Estados Unidos (começando em 1857, 1866, 1873, 1884, 1894 e 1893), e seis na Inglaterra (começando em 1857, 1866, 1873, 1882, 1890 e 1900). No século XX, a situação ficou pior. Depressões cada vez mais freqüentes infestaram o capitalismo, tendo culminado com a Grande Depressão dos anos 30. (Hunt, 1981).

Diante da Grande Depressão e de seus impactos, a solução encontrada de imediato pelos grandes capitalistas e proprietários era a de interromper qualquer processo produtivo. Com isso os camponeses se tornam desnecessários, um peso que deveria ser expurgado. Ou seja, a crise atinge a todos, mas desencadeia impactos financeiros e de sobrevivência diferenciados em cada grupo social ou famílias, de acordo com suas posses. Os proprietários agarram-se à propriedade aguardando o final da crise, para com isso entrar em um novo ciclo de acumulação. A “classe” trabalhadora, por possuir como forma de assegurar sua sobrevivência apenas sua própria força de trabalho, não pode simplesmente deixar de trabalhar durantes as crises, ou aguardar em suas casas até que a crise ceda. Os trabalhadores despossuidos precisam continuar trabalhando, e vendendo sua força de trabalho continuamente, pois caso não o façam, por não possuir nenhuma outra forma de assegurar o básico necessário à sobrevivência do ser humano, enquanto seres naturais ficam expostos ao risco eminente da miséria, fome, e da morte. Então correm de um canto a outro, de Norte a Sul, em busca de quaisquer formas de emprego, porém, dada à forma com se organiza a propriedade, o sistema de lucro e o salariato, os que estão com a posse dos meios de produção podem recusar-se a qualquer investimento, ou mesmo, recusar-se a permitir que os sem-propriedade compartilhem dos meios de produção, que são também nesse sentido, meios de produção e reprodução da vida. Para termos uma idéia aproximada de tal problemática considerar que: Entre 1929 e 1932, houve mais de 58.000 falências de empresas; mais de 5.000 bancos suspenderam suas operações; os valores de das ações da bolsa de valores de Nova Iorque caíram de 87 bilhões para 19 bilhões de dólares; o desemprego aumentou para 12 milhões, com quase um quarto da população sem meios de se sustentar; a renda agrícola caiu a menos da metade e o produto industrial caiu quase 50%. (HUNT, 1981).

As famílias pobres de Oklahoma, que tinham a posse da terra onde moravam, mas que não eram proprietários, como crise produtiva, financeira e imobiliária, ficam sem ter onde morar e trabalhar, ou seja, não tem mais como sobreviver nesta região. Assim muitas destas famílias se viram obrigada a migrarem para outras regiões dos Estados Unidos.


Se o lucro não é satisfatório não tem emprego

A família Joad, como muitas do Estado de Oklahoma migram para a Califórnia em busca de promessas de trabalho e meios de sustentar-se através da colheita de pêssegos. Tom Joad (Henry Fonda), o filho mais velho da família Joad, sai da prisão depois de quatro anos, e ao retornar para casa encontra sua região totalmente transformada pela seca e pela crise. Tom Joad reencontra a família as vésperas de uma migração em busca de trabalho. É ele quem leva sua família em uma pequena caminhonete, de Oklahoma para a Califórnia pela Route 66 (ironicamente as famílias percorrem a mesma rota dos conquistadores do Oeste).

A Califórnia, naquele momento surgia no imaginário das famílias de Oklahoma como uma esperança derradeira, pois prometia de muitos empregos, como diz o panfleto “muito trabalho na Califórnia. Precisa-se de 800 colhedores”, a esperança de encontrar salário e estabilidade, frente à dirupção de toda uma organização social, que implica também a dissolução de formas de vida, deu impulso para que as famílias pensassem a possibilidade de se restabelecer em outro lugar. A Califórnia é vista aqui como uma chance de recomeço, um lugar mais próspero com novas oportunidades. Mas como mostra o filme, não seria tão fácil abandonar a terra onde estas famílias viviam a gerações. Pois a terra é mais do que o meio de onde as famílias tiram o seu sustento, é nela onde as famílias desenvolveram seus laços sociais e todo um universo de significados, com formas específicas de pensar, compreender e agir sobre a realidade, desta forma, a terra é mais do que o local onde se vive. Deve-se levar em conta, além do apego a terra, os vínculos de amizade e os vínculos familiares que são esgarçados mediante tal processo. O capitalismo dilacera os laços comunais, arranca os camponeses da terra onde viveram por gerações.

A família Joad, como os outros trabalhadores agrícolas retratados no filme, ao perder a posse das terras, onde podiam cultivar e comercializar seus produtos mediante parceria com os proprietários das terras, passa por um processo de proletarização, com a conseqüente e característica perda total do controle sobre o que produzem. A terra que cultivavam era também sua única fonte de renda, era nela onde toda a família trabalhava e conseguia seu sustento diário. Com a migração para a Califórnia, as famílias de Oklahoma deixam de ser proprietários do que produzem e passam a depender da oferta de trabalho e de salário para sobreviverem. Os agricultores são convertidos em força de trabalho, pois deixam de produzir para si mesmos e passam de uma classe para outra, e com isso passam a depender de serem contratados como assalariados para comer e beber e morar.


Durante a chegada à Califórnia, a primeira impressão não transmite bom presságio, pois a família Joad defronta-se como inúmeras outras famílias que migraram para Califórnia em busca de melhores condições de vida, mas que não conseguiram emprego, e estão agora em grandes acampamentos improvisados slum (favelas), em condições precárias de sobrevivência, sem nem ao menos ter garantido lugar onde morar e o que comer. Os grandes proprietários da Califórnia podem ainda tirar proveito de tal situação. Pois com o amplo contingente de trabalhadores despossuidos a disposição dos donos dos meios de produção, os grandes proprietários, que monopolizam a produção e o comércio, podem fazer baixar ao mínimo possível os salários dos trabalhadores.

O capitalismo predatório não tem limites, todos são fontes de mais-valia, é o que se pode observar ao longo do filme. Na Califórnia mesmo as crianças e os idosos são recrutados para a rotina extenuante e baixos salários. Toda família Joad se vê obrigada a entrega-se à colheita dos pêssegos a fim de contribuírem com a renda mínima necessária para prover a alimentação de todos seus membros. A busca desenfreada do capitalista pelo lucro e acumulo para o benefício da burguesia agrária, lança as famílias camponesas em uma situação de proletarização, diante da concorrência obrigatória pela sobrevivência, reduzindo o homem a busca cotidiana da realização de suas necessidades básicas, comer, beber e dormir.


Outro aspecto importante que pode ser observado é que com a reorganização do capitalismo, que obriga a reorganização das famílias dos trabalhadores, abre-se também a possibilidade para uma nova tomada de consciência sobre a realidade, trata-se de um processo de re-significação da realidade, movido pelas transformações da realidade material, tal desdobramento pode ser observado no filme sobre diversas instâncias. Como por exe. no caso do jovem Tom Joad, que começa fazer novos questionamento a si próprio a nova realidade que o cerca e ainda em muitos momentos Tom Joad ousa se incitar contra esta realidade posta que subsume sua família e sua classe. Isso também pode ser observado, de maneira ainda mais evidente no caso do ex-pastor Casey, que, aos poucos, passa a substituir a centralidade depositada na crença religiosa, pela investigação das causas materiais que determinam a realidade material a sua volta.
Isso porque é impossível separar a realidade material da forma como ela é produzida, pois as forma de produzir mercadorias (independente de serem pêssegos, laranjas ou algodão), são também formas de produzir a realidade material. Como já destacava Marx, “um modo de produção ou estágio industrial determinados estão constantemente ligados a um modo de cooperação ou um estágio social determinados, e que esse modo de cooperação é, ele próprio, uma “força produtiva”; decorre igualmente que a massa das forças produtivas acessíveis aos homens determinam o estado social” (MARX, 1998, p. 24). Também para Gramsci, complementando a análise de Marx, os “métodos de trabalho são indissociáveis de um determinado modo de viver, de pensar e de sentir a vida; não é possível obter êxito num campo sem obter resultados tangíveis no outro” (GRAMSCI, 1999, p. 266).

A forma como esta estruturada a realidade social é a base da sociabilidade, na lógica do capitalismo que busca-se submeter os sem-propriedade a está estrutura. Porém, dizer que o modo como uma realidade material este é estruturada é a base da sociabilidade é diferente de dizer que é ela quem determina formas de pensar e agir de determinados grupos. A classe hegemônica busca submeter os sem-propriedade, os trabalhadores, aos seus imperativos, porém os despossuidos constantemente estão em luta contra tal estrutura.

A estrutura, embora seja uma base pré-posta, não determina os sujeitos. Exemplo de tal rejeição aos imperativos do capital são as posturas de Tom Joad, do ex-pastor Casey e de muitos outros trabalhadores que se unem contra a exploração imposta pelos grandes proprietários em “As vinhas da ira”. E ainda de forma mais trágica o que se passa com Muley Graves, que passa a refugiar-se na ex-casa abandonada, recusando-se a migrar para a Califórnia. Algo semelhante acontece com o avô William James Joad que embora em um primeniro momento demostre-se empolgado com a migração: “Espere até eu chegar lá. Vou comer laranja quando quiser”. Num segundo momento, na hora da partida, e de abandonar a fazenda, o avô Joad desespera-se agarrando a terra, e diz : “Esta é minha terra e eu pertenço a ela”. Os impactos do choque são de tal amplitude que o avô falecerá. Isto evidencia que os proprietários, em busca do lucro, lutam para conferir determinda trajetória de desenvolvimento para a realidade social. Porém não o fazem sem a intensa resistência dos trabalhadores, que compreendem e, em diversas circunstâcias, buscam negar a ordem imposta à força.

Porém, um elemento importante que dificulta o processo de organização e de negação/superação das condições de pobreza e de privação em que a classe trabalhadora é mantida, é que a melhora de suas condições de vida, o fim da superexploração dos trabalhadores, choca-se com os objetivos da burguesia, que é favorecida pela ordem do capital, e por isso a burguesia luta, por meio de uma infinidade de instrumentos para “conservar” as coisas como estão. Ou seja, a riqueza e prosperidade da burguesia é parte constituinte da miséria de milhões. Com isso os objetivos da burguesia tornam-se opostos às necessidades históricas da classe trabalhadora.

Para que o capitalismo mantenha seu vigor e organicidade, como modo de produção dominante, assegurando sua própria reprodutibilidade enquanto modelo de organização social, deve-se garantir que mantenha, em intensidade e extensão, a ordem das coisas como elas estão, isso para que se assegure que o desenvolvimento social siga determinado sentido. Mas, conforme destacamos no caso dos trabalhadores em “As Vinhas da Ira”, tal prerrogativa não se realiza com facilidade, pelo contrário, pois os trabalhadores, enquanto classe para si (e mesmo como sujeitos “isolados”) em luta diária e também de tempos em tempos se contrapõe à burguesia em luta intensa. Por isso é necessária a burguesia um grande exercício em busca de desenvolver capacidade de controle dos corpos e mentes e da geração de mais-valia. Ou seja, mesmo a relação capital-trabalho alterando-se historicamente, com o movimento da sociedade, trata-se de assegurar o nexo principal do capitalismo, que seja formas eficientes de dominação-produção-de-consenso e reprodução da mais-valia. Não se consegue manter a estrutura do capital sem uma grande dose de violência contra os trabalhadores, individualmente ou em grupo.

Foucault em “Vigiar e Punir” é um dos autores que mais desenvolverá a discussão sobre a importância da utilização do poder para formar corpos e mentes em busca de uma disciplina específica. Suas formulações complementam, em determinada medida, a perspectiva elaborada por Marx, Gramsci e Althusser. Foucault destaca que as pessoas não se rendem aos imperativos do sistema produtivo apenas pela identificação com seus objetivos, ou mesmo conduzidas por necessidades imediatas, e nem ainda, apenas por força da ideologia dominante, mas também e principalmente, por que sucumbem frente às múltiplas formas de coerções que lhe são impostas. É por meio de uma série de mecanismos que se torna possível o controle. Foucault destaca que a burguesia, para conseguir a cooperação dos trabalhadores, precisa servir-se de coação calculada que torne possível direcionar e controlar ações sociais.

A partir da dominação e adestramento dos corpos é que se desenvolvem técnicas de gestão de construção de disciplina eficientes que buscam a formação da docilidade-utilidade para fins específicos dos interesses da burguesia. A disciplina se dissemina e é disseminada pelas instituições sociais, Estado, escolas (que incluem as escolas técnicas e de arte), igrejas, conventos, universidades entre tantas outras. As instituições tratam de disseminar e desenvolver, por meio de uma série de mecanismos, as políticas de coerção. É importante destacar que as relações capital-trabalho não se dão no campo da plena harmonia, onde sujeitos livres entram em livres relações comerciais, como defendem os liberais. Existe além das necessidades materiais, e do “consenso” uma intensa relação de poder que intenta enquadrar os homens, como forma de criar uma disciplina e com isso buscam manter determinada formação social, ou a ordem da coisa como estão. Um dos obstáculos ao rompimento destas formas de dominação é que estas formas de coação também modificam-se como o movimento da sociedade. Cada modo de produção tem suas próprias necessidades e por isso desenvolvem em tal proporção as técnicas de coerção, dominações e produção de consensos. Tom Joad sentiu na pele a violenta reação burguesa, e Casey pagou com a própria vida por ter buscado descobrir o que estava errado.

 

 


Violência contra os sem-propriedade

A violência dos proprietários dos meios de produção pode ser entendida, grosso modo, pela existência de grupos que querem conservar as formas de organização social e a submissão de determinadas classes, ao mesmo tempo em que podem existir classes ou grupos que queiram transformar esta mesma realidade e definir novas formas de relações sociais. Com a migração, a família Joad entra em novas relações de trabalho. Com isso, deparam-se novos graus de exploração, que os colocam ao nível da subsistência. Segundo as regras de tal organização social do trabalho, o próprio homem (des-possuído de meios de produção) torna-se uma mercadoria “tão mais barata quanto mais mercadorias produz”. A des-possessão dos meios de produção força os trabalhadores de Oklahoma a adentrarem às novas formas de relações de venda de sua força de trabalho.

Sendo que um dos pilares que sustentam a subordinação do homem aos imperativos do capital é a existência e manutenção da propriedade privada. Quando os personagens chegam à Califórnia entram em outras relações entre proprietários e não-proprietários. Para Marx, a forma como os homens organizam a propriedade e o processo produtivo influencia todas as outras esferas sociais, como o Estado, direito, religião etc. Tal organização social define como os sujeitos devem se relacionar com a propriedade e seus proprietários, eles devem agir sob determinado sistema de regras.

Porém o fato é que nem todos os trabalhadores aceitam tal prerrogativa passivamente, muitos deles a questionam e a enfrentam. Mas ao contrariar os interesses dos proprietários dos meios de produção, os trabalhadores estão questionando o “calcanhar de Aquiles” do sistema capitalista. O que dificulta o processo de transformação radical da realidade são justamente os objetivos da burguesia, que é favorecida pela ordem das coisas como estão (do capital), e por isso esta classe (que também não é homogênea, mas é dominante) luta, por meio de uma infinidade de instrumentos para “conservar” as coisas como estão. Sem exercer coação/repressão sobre a classe trabalhadora não haveria propriedade privada e nem mais-valia, essa coação/repressão se materializa, principalmente, como forma de objetivação dos interesses dos proprietários dos meios de produção.

Os meios de produção tornaram-se propriedade absoluta de determinadas pessoas, ou grupos, que podem também ser chamados de classe, os meios de produção são protegidos pelo braço armado do Estado, pelo sistema jurídico e pela segurança privada, que devem, entre outros, assegurar que o “direito” à propriedade privada e à compra e venda de força de trabalho permaneça intacto. O imenso poder aglutinado pelos proprietários dos meios de produção confere-lhes o “direito” de impor suas próprias regras aos não proprietários. São os homens detentores das propriedades, por meio das instituições que lhe representam, que definem a forma como os sem-propriedade devem se relacionar com os com-propriedade. Tal lógica gera, além do imenso poder pessoal, a obrigatoriedade da venda da força de trabalho dos que não possuem propriedade. Com isso, o trabalhador deve se submeter ao poder do capitalista e da propriedade privada. Ora, não é esse caso dos proletarizados de Oklahoma?

De acordo com tal lógica, quem não possui meios de produção (que são também meios de reprodução da vida orgânica) é obrigado a vender sua força de trabalho, pelo preço que os donos dos meios de produção determinam (sozinhos ou em grupo). Ora trata-se então de uma intensa relação de poder que limita a liberdade genérica dos que não possuem meios de produzir e reproduzir sua vida. Todo esse sistema colabora para a submissão física (e psíquica) dos que não possuem propriedade aos interesses dos que possuem! Através desta estruturação os donos dos meios de produção podem valer-se de seu extenso poder sobre os homens des-possuídos e sobres seus corpos, impondo-lhes disciplina da produção oferecendo-lhes em troca apenas o que comer. Isso é o que garante aos proprietários a extração de mais-valia dos homens não-proprietários.

Com isso os objetivos da burguesia tornam-se antagônicos ao exercício pleno da liberdade humana, e do exercício de sua potencialidade enquanto seres genéricos. Mas os trabalhadores de tempos em tempos se organizam enquanto a classe e se contrapõem à burguesia em luta intensa. Por isso a burguesia necessita de um grande exercício em busca de desenvolver capacidade de controle dos sem-propriedade. A vigilância é necessária para evitar que as pessoas desenvolvam respostas que não interessam a determinada instituição ou formação social, pois “se pudessem, os trabalhadores fugiriam do trabalho como se foge de uma peste!”. Nesse sentido, a história do desenvolvimento do capitalismo é também marcada por uma trajetória de violência e sangue. No filme há diversas passagens que reafirmam o poder da propriedade frente aos trabalhadores. Ainda no acampamento a beira da estrada, quando um dos trabalhadores duvida do agenciador, a reação é imediata: “É algum criador de caso?”, e este é obrigado a fugir. Tais elementos são importantes para entendermos o porquê da morte de Casey, e também a surra e perseguição pela qual passou Tom Joad.

Qualquer resquício de consciência de classe deve ser apagado, mesmo que isso possa custar vidas. E é tomado de assalto por tal realidade, e o ímpeto de dar resposta a esta realidade que Tom Joad, em meio aos seus questionamentos formulados durante os confrontos com o poder da propriedade privada, percebe a generalidade dos obstáculos impostos pela propriedade privada e a importâncias da organização, resistência e luta contra os proprietários, são lutas e investidas que se dão por toda parte. A partir de tal apreensão da realidade Tom Joad declara:

Onde houver uma luta para que os famintos possam comer, eu estarei lá. Onde houver um policial surrando um sujeito, eu estarei lá. Estarei onde os homens gritam quando estão enlouquecidos. Estarei onde as crianças riem quando estão com fome e sabem que o jantar está pronto. E quando as pessoas estiverem comendo o que plantaram e vivendo nas casas que construíram. Eu também estarei lá.

“As Vinhas da Ira”, em uma construção impressionante de Jonh Ford, elucida aspectos importantes da trajetória de desenvolvimento do capitalismo, também por isso, o filme traz elementos que transcende o período histórico no qual foi produzido, tratando de elementos constitutivos da sociedade de classes, como consciência de classe, superexploração da força de trabalho, e violência característica histórica da lógica burguesa.


Bibliografia

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MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. Editora Boitempo: São Paulo, 2004.

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Monografia defendida em 12/12/2007. UNESP: Campus de Marília

 

Alessandro de Moura,
é graduando em Ciências Sociais na UNESP
e bolsista PIBIC-CNPq.
(2007)