"Segunda-Feira Ao Sol", de Fernando Aranoa

(2002)

 

Segundas ao Sol

 

Tomando por base a experiência do cinema tentarei apresentar neste artigo um traço da sociedade de trabalho no mundo do século XXI. A utilização da ferramenta cinematográfica se justifica pela sua amplitude de idéias em potencial, capaz de fazer aflorar nossos sentimentos mais básicos através de suas representações antropomorfizadas. Tratarei o cinema aqui como resultado de um encadeamento lógico de sons e imagens em movimento. Para Walter Benjamin, no cinema a expressão artística se caracteriza pela perfectibilidade, pois na produção cinematográfica um indivíduo é capaz de orientar uma montagem perfeitamente adaptável ao que se deseja expressar e perfeitamente adaptável aos objetivos de sua produção (BENJAMIN, 1985).

Muito interessante é observar que podemos, em cada um dos personagens do filme “Segunda-feira Ao Sol”, identificar uma tendência do mundo do trabalho atual. Essa, no entanto, será a tarefa a ser realizada neste artigo, apresentar os personagens tentando aproxima-los de algumas tendências observadas pelos pesquisadores acerca da situação do trabalho no capitalismo desta virada de século.

Todavia, antes de falar dos personagens, considero importante sabermos um pouco sobre o diretor Fernando Aranoa e suas expectativas ao rodar esse longa metragem. Durante a fase de documentação para o filme Aranoa realizou algumas investigações na cidade onde o filme seria produzido e descobriu que as pessoas

“ não falam de emprego nem de formas de ganhar a vida, falam de trabalho com letras maiúsculas. Homens falando assim, sobre algo tão valioso para eles por ser a única coisa que possuem, foi a mais completa descoberta para o filme, e, de certa forma, para mim também. Trabalho, depois de tudo, seria o que seus filhos precisariam encontrar, não uma posição específica, mas o conceito de trabalho.” (Aranoa, Fernando Leon.<www.loslunesalsol.com/index.htm>).

No seguinte comentário tecido sobre o filme perceba que apesar dele falar de sua obra, podemos considerar que fala de algo bem mais amplo, como a própria vida dos indivíduos na sociedade capitalista contemporânea.

"Caminham diariamente na busca por trabalhos eventuais, linhas de emprego e salas de espera. Conhecem os formulários do medo, porque os relêem todos os dias. Sabem do tempo e de suas diferentes velocidades, do constrangimento e do decoro, sabem da desesperança, da dor e do silêncio, conhecem o valor da alegria e sabem desfrutá-la, bem escasso, raio de sol no inverno. Eles gostariam de parar os relógios por um momento e fazer um inventário das dúvidas, dos erros. Eles gostariam de voltar ao ponto onde tomaram o caminho errado, para começar denovo sabendo o que sabem agora. Todos os dias eles falam sobre mudanças no amanhã, no dia seguinte, no próximo mês"
(Aranoa, Fernando Leon.<www.loslunesalsol.com/index.htm>).

Quando questionado sobre o que fora passado de realidade para que os personagens incorporassem e interpretassem, ele respondeu que tentou passar “diálogos concretos (no filme), quando algum personagem já não fala de seu trabalho, mas sim do trabalho de seus filhos. Isso eu ouvi pela primeira vez na fase de documentação." (Aranoa, Fernando Leon.<www.loslunesalsol.com/index.htm>).

É interessante perceber como o processo de documentação e preparação para o filme foi de grande importância. Nesse momento o diretor começou a realizar a profundidade da questão que gostaria de abordar, aprendendo muita coisa ao entrar em contato direto com os trabalhadores. O empirismo lhe trouxe, como se percebe nesses trechos e na entrevista toda, um novo despertar.

Segunda-feira ao Sol, como sugere o próprio nome, é um filme que começa e termina sob o sol de uma segunda-feira. Esse título se justifica por ser uma forma como os trabalhadores se identificam enquanto desempregados na Europa. Los Lunes al Sol é um filme que se passa na cidade litorânea portuária de Vigo, ao norte da Espanha, onde mora Santa e seu grupo de amigos desempregados de um estalaleiro nas docas. O grupo de amigos que compõem o núcleo central do filme fez parte do corpo de funcionários de uma indústria naval chamada Astilleros.

A narração tem início quando todos já não fazem mais parte da indústria naval onde trabalhavam, e, tão pouco, têm algo aparentemente estável para se empregarem, como parecia ser o estaleiro. Então, seguindo as desventuras de Santa, eles se reúnem periodicamente no bar de Rico para uma bebida e para compartilharem suas angústias e incertezas. O que se mostra são sete amigos com sete destinos distintos, que nem mesmo eles sabem quais são. Sem uma narrativa que conduza o espectador a um final mais ou menos esperado, o filme nos leva a refletir sobre vários finais, imaginando o desfecho de cada um dos amigos.

 

Santa

Começarei por Santa, personagem interpretado por Javier Bardem, talvez o ator mais conhecido do público a trabalhar neste filme. Bardem, segundo o próprio diretor, fora escolhido por suas anteriores atuações em outros filmes que demonstravam sua enorme capacidade de transformação e inserção no contexto criado. Santa é um personagem de bastante força e convicção, não por acaso ele representa a união e as esperanças do grupo.

Considero Santa o personagem principal porque no decorrer da história tudo ocorre ao seu redor. Poderíamos dizer que ele tem uma aura diferenciada, mas não por isso sofra menos que os demais. Todos se encontram em uma situação muito complicada de falta de emprego e precarização, mas ele é nitidamente o que melhor resiste a isto, com histórias e situações cômicas que fazem do filme, ao meu ver, uma comédia triste. Para definir Santa em algumas palavras eu diria que é a representação de alguém na faixa dos 40 anos, muito contagiante, orgulhoso, sonhador, alegre e desempregado, que, ao que parece, vive de algumas economias da vida e de seu seguro desemprego, pago pelo Estado. Ele surge, como disse o próprio Bardem, como esperança de sobrevivência para si e para o grupo em um momento de crise de identidade individual e coletiva, relacionada diretamente às suas dispensas do trabalho. Ele representa o esforço de se evitar a fragmentação da classe trabalhadora, que a essa altura já é uma realidade.

Amador

Acima de Santa aparece alguém muito respeitado por ele, Amador, que vive, dentro do grupo de amigos, a pior situação, pois além do problema do desemprego que afeta a todos, fora abandonado pela esposa. Ele vive sozinho em um apartamento caindo aos pedaços, sem as menores condições de uso. É o mais velho de todos, talvez o que beba mais e que tenha menores esperanças na sua vida futura. Digo que está acima de Santa pelo enorme respeito demonstrado por parte deste. Ao que parece se conheceram no estaleiro, tendo sido Amador, até mesmo pela idade, aparenta algo por volta dos 60 anos, como um tutor dele lá dentro.

Muito reservado ele não fala de sua vida pessoal e sua trajetória acaba sendo sempre a mesma, de casa para o bar e do bar para casa. Digo que ele vive a pior situação entre os amigos por não enxergar nele sinais de esperança. Suponho que, pela idade e pelo que nos é mostrado ao longo do filme, ele seja o que mais tempo trabalhou no estaleiro, o que significa um sério problema de readaptação a algo novo, e também um maior choque no momento da dispensa. Ele também vive um sério problema com o alcoolismo. Enfim, seu caminho é um alerta a todos do grupo, que inconscientemente ainda tendem para o mesmo fim.

Lino

Também acima de Santa, pelo menos no que se refere à idade, Lino se encaixa no grupo como o segundo mais velho. Homem bastante angustiado e com um profundo sentimento de insegurança, ele raramente esboça um sorriso. Trato a questão da idade por ser bastante influente na vida de trabalho das pessoas. Os únicos adultos jovens que aparecem no filme são aqueles que se encontram nas filas das agências de emprego, e por sinal são aqueles que têm as maiores chances de conseguir algum.

Pai de família, Lino mora com a mulher e dois filhos. Percebe-se facilmente que suas preocupações são todas fruto de sua condição de desempregado, o que o deixa relativamente a parte do convívio familiar, apesar de morarem sob o mesmo teto. Suas aflições são fruto da incerteza que o cerca por todos os lados. Ameaçado de não conseguir mais emprego ele encara com dificuldade sua nova realidade, tanto que até quase o final do filme ele permanece nas filas por emprego sonhando com uma ocupação, até que desiste das entrevistas. Lino sente a responsabilidade pesar, até porque tem um filho e uma filha que são ainda bastante jovens, o que o deixa obcecado pela idéia de ocupar um posto de trabalho independentemente do lugar ou da atividade a ser exercida. Ele sofre com a impossibilidade de trabalhar, como o vinha fazendo de forma rotineira e aparentemente estável. É a representação típica do antigo trabalhador fordista clássico, agora desempregado. Sente que algo, maior do que ele, o obstrui na busca por trabalho.

Jose

O que mais se aproxima da realidade do abandono, já observada em Amador, é Jose, que teme em ser deixado pela esposa. Ele é mais um desempregado do estaleiro, na faixa dos seus 40 anos, é casado e não possui filhos. Sua realidade é cruel por se colocar em uma posição inferior frente a sua mulher, que possui um emprego, mesmo que temporário. Depressivo e inseguro ele tenta se manter em uma posição de controle no relacionamento, o que acaba sendo inútil. Digo que ele se aproxima de Amador por este ter sido deixado pela esposa, o que chega a ser a idéia de Ana, sua esposa. Jose se sente massacrado pela sociedade que impiedosamente impõe novas regras de convívio e relacionamento pessoal, marcadas, em última instância, pela lógica destrutiva do capital. Ele sente duramente sua nova realidade de ser o sujeito não ativo do casal. Com enormes dificuldades ele tenta aos poucos entender o que se passa, recorrendo à bebida e a atitudes impensadas, como visitar sua mulher durante seu expediente de trabalho na fábrica de enlatados. Em determinados momentos acho Jose um pouco acomodado com a sua situação, apesar de toda indignação com as mudanças no relacionamento social. Vejo o casal Jose e Ana como um contraponto ao casal Lino e sua esposa no que se refere ao estilo de vida, enquanto o primeiro representaria a incerteza da contemporaneidade, o segundo nos remeteria aos antigos relacionamentos tradicionais, onde o homem era a fonte de renda estável e a mulher a dona de casa.

Serguei

Serguei, apesar de fazer parte do grupo de amigos, aparece mais como um coadjuvante na história. Digo isso por perceber que há um certo isolamento por parte do grupo em relação a ele. Interessante de se pensar pois ele é também mais um atingido diretamente por esse sistema excludente, todavia seus companheiros parecem não perceber isso, criando uma barreira entre eles, legítimos espanhóis, e a figura do imigrante russo. É toda uma dinâmica de vida e de relacionamentos que é socialmente criada e que também precisa ser identificada para que ocorram mudanças. Quero dizer que a forma como Serguei é tratado é reflexo do estilo de vida do grupo. Assim como só conseguirão sair de suas posições de desempregados com o despertar de uma nova consciência, só se relacionarão melhor com o imigrante com novos despertares.
Serguei acompanha as discussões no bar e conta alguns casos, mas, ao que parece, não era empregado do estaleiro como os outros. Sua figura ilustra bem o imigrante estrangeiro que, também afetado pela onda de desemprego, se encontra perdido na busca por algo a fazer. Suas tentativas não são bem sucedidas e sem ter ao menos uma pátria a recorrer por direitos e auxílio fica à deriva dos acontecimentos. Com características de um lunático ele conta histórias de seu passado na extinta União Soviética, onde, segundo ele, fora astronauta. Com Serguei se fecha o grupo de amigos desempregados que freqüentam o bar e conduzem a trama. Restam ainda na composição do elenco mais dois amigos, Rico, o dono do bar, e Reina, que se mantém em um subemprego.

Reina

Personagem interpretado por Enrique Villén, Reina determina a fragmentação do grupo, aparecendo como o único entre os amigos a ser ainda um assalariado. Os demais estão desempregados e quando trabalham fazem bicos na rua. Também demitido do estaleiro como os outros ele, mesmo que contra sua vontade, se submente a um subemprego para, no seu entendimento, manter sua dignidade e poder andar de cabeça erguida pelas ruas, coisa que aparentemente seria impossível para ele se continuasse desempregado. Digo que sua nova ocupação é um subemprego não pela função exercida especificamente, e sim pela falta de estabilidade e de boa remuneração, que são características que se deixam transparecer no filme. Percebo a nova ocupação de Reina como algo conquistado por algum tipo de favor, sendo este um emprego nem um pouco estável. Todavia é algo a se fazer, é uma forma de emprego, o que o torna superior aos desempregados. O simples fato de ir ao trabalho o deixa menos angustiado que os demais, independente da atividade que exerce. E ele se agarra com todas as forças a essa oportunidade, se auto valorizando como técnico de segurança, que me parece mais uma forma de identificação pessoal do que representação mesma da atividade que ele realiza. Também oriundo do mesmo passado de seus amigos agora desempregados, Reina, de certa forma, compartilha da maneira de pensar do grupo. Ele também discorda de como as coisas acontecem e de como a sociedade e o mundo massacram as pessoas pelo ritmo alucinante dos novos tempos. Todavia ele se vê incapaz de lutar contra isso e opta por fazer parte do jogo e ser massacrado também, desde que isso lhe confira o status de trabalhador. Com isso ele gradativamente se afasta do grupo. O que antes parecia ser natural no mundo das cidades, o trabalho assalariado, se tornou motivo de ferrenha concorrência.

 

Rico

Apesar de ser o dono do estabelecimento onde os amigos se encontram para beber e conversar, Rico também trabalhou com os amigos no estaleiro. A diferença marcante é que ele não foi demitido assim como os outros, e sim aceitou uma proposta para sair em vista de tudo que vinha acontecendo lá dentro. A demissão era iminente, todavia muitos, principalmente Santa, lutavam contra ela. Por outro lado, alguns aceitavam propostas para sair e enfraqueciam a luta. Dentre eles Rico, que monta seu bar com o dinheiro oferecido em troca da demissão voluntária. Rico leva uma vida humilde e seu estabelecimento não é muito movimentado. Não há sinais de morar com muitos familiares, apenas sua filha Nata, uma jovem de 15 anos. Ele também sofre com a realidade dos desempregados, só não sendo um pelo comércio que tenta levar adiante.

Mulher de Lino

Essa personagem em particular não aparece muito no desenrolar da trama. Suas rápidas aparições, sempre em casa, acabam sendo demonstrativas de um grupo de mulheres que decresceu bastante nas últimas décadas, as donas de casa. A esposa de Lino, nos breves momentos em que aparece, está sempre em casa cuidando da família e dos afazeres domésticos. Sua posição é representativa de uma ocupação de bastante tradição, porém não mais tão comum de se encontrar. Ela aparece como um contraponto às mais jovens que se viram por aí atrás de emprego, até mesmo por ser a mais velha entre elas. Talvez venha daí também toda insegurança e incerteza de Lino, que se vê na obrigação de conseguir emprego para sustentar sua família e exercer sua função de provedor do sustento da casa.

Percebemos que não há um diálogo muito aberto entre eles, Lino por um lado não consegue se abrir e discutir em casa sobre sua incapacidade de encontrar emprego, o que até certo ponto é compreensível em vista de sua idade e passado. E sua mulher, por outro lado, também não me parece muito afetada pelos novos tempos, buscando mais a tranqüilidade do lar e o amparo do marido.

Ana

Interpretada pela atriz Nieve de Medina, Ana aparece na história como a esposa de Jose, que é mais um dos desempregados. Eu diria que sua aparição no filme, além de ser mais duradoura, é emblemática do trabalho abstrato feminino avançando. Ana é uma das inúmeras mulheres empregadas em uma fábrica de enlatar atum. Ela mora em um apartamento com Jose e não tem filhos, mas não por vontade própria, e sim pela falta de condições de criar uma criança, ocasionada, segundo ela, sempre pela falta do trabalho. Apesar de ser assalariada, sua permanência no emprego não está garantida, e por isso busca novos recursos em instituições financeiras.

Ana aparenta ser bastante lutadora, fazendo o possível para se manter na condição de subempregada, apesar de dores constantes geradas pelas más condições de trabalho. Todavia percebo que sua força vai sendo minada aos poucos pela imobilidade do marido, que permanece na condição de desempregado sem esboçar muitas reações no sentido de provocar mudanças nesse quadro. Como disse anteriormente, vejo Jose, o marido de Ana, um pouco acomodado em sua situação de desempregado, provavelmente bancada pelo estado de bem estar social espanhol, em muito já deteriorado. Isso pelo fato dele não aparecer correndo por emprego, o que é agravado pelo fato de serem eles um casal ainda jovem. Ana aparece como sua única esperança.

Ângela

Essa personagem também não aparece muito no filme, apenas em duas ocasiões, flertando com Santa. Ainda bastante jovem ela também faz o que pode para ganhar a vida. Provavelmente aos seus 25 anos ela aparece temporariamente subempregada em um supermercado. Com um filho pequeno ela representa a total incerteza também vivida pelos jovens, sem perspectivas de trabalho e à espera de que algo realmente transformador aconteça em sua vida. Ela se encaixaria na enorme parcela de jovens a procura de trabalho.

Nata

Natalia, filha de Rico, aparece como personagem mais jovem dentre todos, com apenas 15 anos. Essa juventude acaba se transformando em esperança, não só para ela mas para todos. Sempre que entra em cena a situação muda para melhor, alterando positivamente os ânimos. É testemunha de tudo que ocorre no filme.


Referências Bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política.São Paulo : Brasiliense, 1985.

CIG. Confederación Intersindical Galega. Contém informações institucionais, técnicas, notícias,
projetos, publicações e serviços. Disponível em: <http://www.galizacig.com/> Acesso: out/2005.

ILO. International Labour Organization. Contém informações institucionais, técnicas, notícias,
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OECD. Organisation for Economic Co-operation and Development. Contém informações
institucionais, técnicas, notícias, projetos, publicações e serviços. Disponível em:
<http://www.oecd.org/> Acesso: set/2005.

<www.loslunesalsol.com/index.htm>

 

 

Túlio Silva Sene
Bacharel em Ciências Sociais pela UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas)

(2006)