“Matrix” de Warchowski Brothers

(1999)

 

Ação de Quem Para Quem?
- Os Simulacros e Suas Implicações na Discursividade de Matrix

de Thien Spinelli Ferraz

 

1. Possíveis faces da narrativa

Os filmes dos irmãos Andy e Larry Wachowski que compõe a trilogia de Matrix (EUA, 1999) Matrix Reloaded (2001) e Matrix Revolution (2003)), são tidos por muitas perspectivas analíticas como o grande exemplo das conquistas da técnica cinematográfica contemporânea. Além de uma elaborada utilização destas técnicas digitais na construção de efeitos especiais interessantes, acreditamos que os filmes podem conter indicações de uma apreensão crítica do mundo sócio-histórico moderno, que nos dias de hoje se mostra ainda mais transformado pelo exacerbamento da técnica em detrimento de tudo aquilo que, até então, poderia vir a ser considerado humano, ético e moral.

O enredo nos apresenta um trabalhador desenvolvido em nossa modernidade tecnocrática, Thomas Anderson, um jovem analista de computadores e sistemas de informação que atua como hacker ou cracker – alguém que detém o conhecimento da linguagem informática e opera com seus códigos quer para finalidades morais consideradas positivas ou negativas. Ocorre que começam a surgir mensagens enigmáticas (como telefonemas misteriosos, alusões a coelhos brancos e frases em seu computador) que em certo momento culminam com o aparecimento de duas pessoas (Morpheus e Trinity) que o incitam a mergulhar por completo em uma outra dimensão da realidade: a Matrix.

Para tal experimentação é necessário o poder da escolha quanto a ingestão de uma das duas pílulas que Morpheus lhe ofereçe: entre a vermelha e a azul sua decisão é pela segunda, a partir de onde tem início sua total imersão na complexa fluidez deste outro universo. A tarefa legada ao jovem Neo (apelido utilizado por Anderson na internet) é a de salvar o mundo real – por meio da Matrix, que é também uma de suas faces criadas virtualmente – de um levante de dominação e destruição iniciado pelos ‘vírus cibernéticos’ liderados pelo Agente Smith. Para concretizar seu destino e sobreviver a este universo simulado, Neo tem o apoio de outros conhecedores desta linguagem, como seu mentor Morpheus, o operador de sua entrada na Matrix, Tank, e sua companheira de batalhas Trinity.

A existência no interior da Matrix é regulada por meio de uma “central informatizada” localizada em um espécie de nave entre as duas facetas do real, a Nabucodonosor. Todo conhecimento utilizado na Matrix é adquirido com a implementação de programas (softwars) que fornecem a seus agentes, em um grau muito mais elevado, as qualidades pertinentes à diversas atividades humanas. O espaço concreto das ações destes indivíduos no interior da Matrix se dá com a conexão de sensores em suas cabeças e corpos que lhes permitem certa autonomia acional nesta outra dimensão, desde que para isto não haja o corte do vínculo informacional mantido com a Nabucodonosor.

Diante do épico dever de salvar a totalidade das dimensões da realidade, Neo e seu grupo tem um nítido principio moral da preservação do Bem (associado à humanidade) contra a insurreição do Mal (associado aos ‘vírus’ da Matrix). Para a realização deste objetivo, os humanos selecionados para operar a Matrix são aqueles que melhor intensificaram suas capacidades de conhecimento e dominação da tecnologia. Sendo que o alto grau de aperfeiçoamento das máquinas vem a refletir as irracionalidades humanas em relação à Natureza, fazendo com que a compulsão pelo controle sobre as incertezas de nosso mundo e existência, acabe por se mostrar disposta à aplicação do mesmo golpe contra seus criadores.

Nesta perspectiva, a face nociva dos instrumentos técnicos da sociedade são representadas nas “máquinas rebeldes” como a negação imanente (autonomizada) às características destas criações sociais. O que significa dizer que a luta ciberespacial e a missão salvadora legada a Neo, funcionam como um meio de, compartilhando de mesmas codificações (já que o confronto se processa no ‘interior’ da Matrix), fazer com que os indivíduos resgatem uma positividade ética subjacente às tecnologias de atuação sobre a realidade

2. Veracidades do falso : os simulacros em Matrix

Parece-nos que a questão central da qual o filme parte suas argumentações, dá-se em relação às transformações das condições referenciais necessárias ao discernimento individual quanto às propriedades daquilo que somos induzidos a afirmar como sendo a ‘realidade’ (um corpo, um lugar, uma atividade, uma história etc.) do mundo sensível que percebemos e compreendemos. Isto porque em uma sociedade onde o consumo vem cada vez mais saturado de mensagens simbólicas transmitidas por imagens, os processos de reconhecimento desta realidade não integralmente “ficcional”, são confundidos pela identificação com aquilo que é um produto do “simulacro” – uma simulação que reconstrói artificialmente as características do que convencionamos assumir como “real”.

A noção de simulacro também é discutida na crítica cultural contemporânea como sendo um processo de exacerbada artificialização das características que reconhecemos como reais em discursos culturais de superficialidade crítica ética e estética, como nos aponta o filósofo americano Fredric Jameson (2002). Ele constrói suas reflexões sobre a estética cultural do pós-modernismo com base em outros processos identificados como pertinentes a um novo modo de disposição de forças sócio-culturais no interior do capitalismo global. Neste texto, optamos por elucidar as contribuições críticas de Jameson acerca da estética contemporânea dando maior atenção às suas reflexões sobre o conceito e implicação social dos simulacros.

Ao discutir a questão dos simulacros, Jameson retoma as argumentações trabalhadas anteriormente pelo filósofo françês Jean Baudrillard (1998), sobre os mecanismos de sustentação e validação da ‘hiper-realidade’ construída pelos simulacros sociais em nossa contemporaneidade. Para este os simulacros seriam processos de manipulação sígnica dos eventos do mundo social no sentido de uma artificialização consciente dos significados anteriormente atribuídos a eles. É este simulacro – uma cópia sem original – o que o mundo virtual da Matrix parece constantemente querer simbolizar.

Baudrillard aponta que a maioria das simulações nos dias de hoje foram convertidas para simulacros que não mais representam uma entidade real, mas sim formas significantes que de modo auto referencial definem sua própria realidade, a ‘hiper-realidade’. O que vemos não é mais uma imagem, mas algo mais real que o seu original, algo que não tem mais nenhuma relevância para sua contraparte real, assim que tenha sido simulado.

Os sentidos de falsidade e irrealidade produzidos pelo simulacro, encontram a validação de suas existências pela dominância de quaisquer outros balisamentos referenciais no discernimento sobre o que não pertença à ordem de seus “jogos de simulação”. No filme, vemos este dilema da relação humana com a “hiper-realidade” da Matrix expresso em inúmeras falas de personagens que questionam a veracidade da realidade e de suas significações no imenso ‘deserto do real’ (Morpheus) que ela é.

A aceitação do falso, de uma representação que não possui um original mas condiciona efetivamente nossas ações no mundo, certamente deve ser questionada com profundidade, como comenta Jameson, sem que para isto, não ocorra a própria extrapolação da análise em não admitir a convencionalidade de relações de uma “realidade” que orienta nossos questionamentos morais, religiosos, políticos e estéticos por meio da linguagem: a própria cultura. Este é um problema que a crítica cultural pode vir a sugerir quando propõe enfoques radicais em suas reflexões, por vezes desvalorizando aspectos que talvez influenciaram o objeto do discurso crítico: a amplitude da análise deve procurar reconhecer que o que se “deixa de fora” da observação tem igual valor ao que dela se “apreende”.
Neste sentido, considerando especialmente as contribuições da análise de Baudrillard, procuramos perceber as formas pelas quais o filme responde a problemáticas éticas de nossa realidade que, em última instância, é ou foi um um ponto comum necessário à criação da Matrix. Isto porque o filme nos apresenta um ‘lugar de segurança’ em meio ao caos de significados simulados que a realidade da Matrix produz. A Nabucodonosor é onde os indivíduos estão, ao fim das contas, em uma terceira dimensão, entre a do real e a da Matrix, já que todos precisam manter seu elo vital na conexão com a ‘nave’ – portanto existindo, e não agindo em uma nulidade niilista absoluta. Exceto Neo, que irá se mostrar o poderoso ‘predestinado’ a salvar o mundo das forças rebeldes que partem da Matrix.

Em razão deste fato de haver um vínculo necessário e comum a todos que lutam na Matrix, e de Neo ser o “super-homem” capaz de transcender as limitações dos universos que habita, compreendemos que a Matrix em sua totalidade narrativa não pode ser considerada um simulacro. Pois, na medida em que há a coexistência de várias dimensões da realidade que somente podem ser superadas pela mística de um iluminado, os simulacros nao podem ser transgredidos, ficando os Homens que sobraram no planeta dependentes da manipulação de conhecimento por parte dos “guerreiros cibernéticos” da Matrix.

Podemos até enxergar a Matrix como uma dimensão onde os simulacros são “irreversíveis”, não dependendo mais da vontade humana (de onde supostamente partiriam as ações individuais) para sua existência. O poder da criação sobre o mundo estaria agora reformulado, dependendo não mais da inteligência e energia humanas, mas sim da aleatoridade de transformações de um tempo-espaço vinculado à máquinas orientadas por seus próprios jogos internos de simulação.

Ainda sim, no interior de sua discursividade cinematográfica, consideramos que Matrix busca legitimar uma outra perspectiva sobre os simulacros e sua relação com a realidade. Temos o desenvolvimento da narrativa dialogando entre estas três dimensões acionais que procuram se efetivar tanto pelo prisma da afinidade/continuidade, como pelo da negação/desconstrução das caracteristicas dos elementos que as estruturam. Ou seja, a Matrix não é uma dimensão dissociada da realidade, um conglomerado de significados construídos artificialmente como o mais perfeito simulacro porém falso, ilusório; mas sim uma perspectiva fragmentária da ‘realidade’ que (por meio do conhecimento técnico) faz com que os indivíduos dialoguem simultaneamente com valores de seu próprio universo simbólico-virtual de origem – a sociedade que inicialmente produziu as condições materiais para sua existência.

3. Em busca de correspondências éticas e estéticas

Discutindo as relações entre o conceito de simulacro e a discursividade de Matrix, validamos a necessidade de interpretarmos a elaboração sígnea contida nos filmes enquanto um meio de representação de inúmeras críticas às cosmovisões padronizadamente preservadas pelas sociedades capitalistas contemporâneas. Assim, ao procurarmos uma compreensão da dimensão estética do primeiro filme, vemos que os mecanismos narrativos utilizados por sua discursividade mantém uma relação indissociável com suas temáticas, posto que estas, sofrendo uma tradução por aqueles, buscam ratificar cinematograficamente (com profundidades, movimentos, enquadramentos, planos, efeitos de luzes, cores, palavras e sons) o sentido de realidade atribuído às imagens enxergadas na tela.

Com efeito, acreditamos haver uma inovação na articulação ética / estética elaborada pelo filme na medida em que, com o sustento de técnicas digitais na modelagem das imagens, o enredo nos é projetado em uma dinâmica de enunciação sígnea extremamente rápida que, pela verossimilhança mantida com os elementos abordados por sua lógica interna, nos oferecem uma possibilidade de identificação com os referenciais de seu discurso. Tal filme não poderia ser realizado sem a utilização destas técnicas já que suas temáticas (éticas) não manteriam uma correspondência com suas representações (estéticas), impossibilitando a identificação dos espectadores com a narrativa proposta.

Embora a trilogia que estruture o discurso feito por Matrix, seja densa e aberta às mais díspares interpretações, entendemos que é possível traçar um eixo temático central pelo qual a narrativa constrói suas enunciações. Assim, com base na discussão mantida com alguns conceitos utilizados pela crítica cultural considerada pós-moderna, compreendemos que o primeiro filme – ainda que envolvido pela expectativa de seus efeitos especiais – nos aponta diversas perspectivas sobre as transformações sociais engendradas em nossa contemporaneidade.

Ao passo em que, de nossa parte, fica a pergunta se é mesmo necessário um imenso investimento financeiro, um espantoso lucro com bilheteria e direitos de imagem e a derivação em jogos, souvenirs e ‘modismos’ para se transmitir críticas que pretendam não soar como distração passageira. Vindo por sua vez acompanhada da preocupação com a tendência de um futuro (presente?) onde a reconfiguração das valorações assumidas pelos sujeitos serão advindas de alterações no ritmo de apreensão dos fatos de uma sociedade tecnocrática, informacional e disposta a prosseguir sua (i)reversibilidade das características da realidade através da incessável produção de efêmeros simulacros.


Referências Bibliográficas

• BAUDRILLARD, J. Simulacros e simulação. São Paulo: Ed. Relógio D’agua:1991.
• JAMESON, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2000.

Referências Filmográficas

Matrix (EUA, 1999) – Andy & Larry Wachowski.
Matrix Reloaded (EUA, 2001) – Idem.
Matrix Revolution (EUA, 2003) – Idem.

Thien Spinelli Ferraz
é graduando em Ciências Sociais na UNESP
(2005)