“Blade Runner” de Ridley Scott

(1986)

Artificialidade Consciente?
- Uma Aproximação às Identidades Reificadas em Blade Runner


por Thien Spinelli Ferraz

 

 


1. E o futuro reage ao presente

A idéia central do filme já nos é perturbante. Sugerindo uma situação de desconfiança e temor frente aos desenvolvimentos técnicos das formas de atuação humana na realidade, ocorre que em uma hipotética sociedade futurista a Humanidade desenvolve andróides (seres híbridos, meio humanos / meio máquinas, tidos como replicantes), e passa a produzí-los industrialmente, tendo agora de sofrer as conseqüências de uma espécie de tomada de “consciência social” e posterior revolta destes seres. Sendo que, ainda sob o receio deste acontecimento, é decretada uma caçada policial – feita pelos blade runners – a quatro replicantes “desajustados”, que há algum tempo vêm complicando a quase inexistente segurança do local.

O ambiente onde a narrativa se desenvolve nos mostra uma condição de nítidas contraditoriedades sociais. A maior parte dos humanos – que claro, possuam os recursos necessários – passa a viver em outros planetas colonizados pelo Homem, deixando a superfície terrestre para aqueles “excluídos” (em grande parte de descendência oriental) que não detem o poder para esta mudança e têem de conviver com os renegados andróides – já que aqueles tidos como úteis convivem em outros planetas servindo como mão de obra escrava para os seres humanos.

Neste espaço físico e social caótico e de clara escassez de normas sociais, o policial aposentado Deckard é praticamente intimado por seu antigo superior a executar a tarefa de encontrar e matar estes quatro replicantes considerados nocivos à “comunidade”. Ficando bem exposto para ele que esta tarefa tem de ser feita com rapidez, pois os replicantes são programados para viver quatro anos em média, para assim não haver a possibilidade de constituirem uma superpopulação e, quem sabe, dominarem os humanos. Isto é, um tempo supostamente suficiente para que eles não voltem demasiada preocupação sobre suas origens e a natureza de seus relacionamentos sociais com os humanos.

No decorrer de sua caçada, Deckard encontra Rachel, a “secretária” do homem que descobriu e organizou a maneira de composição destes seres. Vemos ser ela um modelo mais sofisticado de replicante, que é melhor desenvolvido para os sentimentos, como confiança, apreço, medo e, ficando sugerido pela narrativa, a paixão e o amor. Isto porque parece que a jovem começa a assumir reflexões quanto a sua “particularidade” existencial e identidade pessoal quando, matando um de seus pares para salvar o policial, ela começa a demonstrar no mínimo, alguma forma de apreço por ele. Entretanto, este processo de afirmação identitária ocorre de modo conflitante com Rachel, que estranhando o sentido do seu “existir”, tem de acreditar em referenciais valorativos que lhes foram mecanimente introduzidos como “softwares” nas etapas de sua construção.



Paralelamente ao desenvolvimento da caçada do blade runner sucedem as movimentações dos dois andróides restantes, que motivados pela recusa de uma vida cronometricamente limitada, decidem descobrir onde fica seu criador e o que será feito para que ocorra a mudança deste fatalidade. Principalmente no caso do líder dos perseguidos, Roy, estes objetivos de liberdade e autonomia nos demonstram uma insistência consciente para que sejam criados mecanismos que lhes forneçam aspectos mais humanos à existência, já que isto talvez lhes permitiria captar e compreender o mundo não somente como consituído por “coisas” exteriores e inertes em sua essencialidade, mas sim enquanto um conjunto de relações (sociais) entre seres (individuais) que sentem, pensam e agem em uma realidade compartilhada.

Próximo ao fim de sua caçada pela possibilidade de ampliação da própria vida, Roy tem uma longa discussão com o homem que descobriu a fórmula final de sua composição, E. Tyrell, acabando por lhe arrancar furiosamente um dos olhos e depois matá-lo. Enquanto isto, Deckard está esperando sua presa para o confronto fatal entre os dois no prédio onde morava Sebastian, um dos técnicos na construção dos replicantes que optou por uma vida solitária como “artesão” criador de seus próprios brinquedos. Após muito lutarem – com visível superioridade do andróide – Deckard e Roy chegam ao topo do prédio e, em meio a uma fina garoa (que parece ser constante durante o filme), causam um choque de perspectivas quando o replicante, sabendo estar em tempo de morrer logo em seguida, tem a intrigante piedade de salvar a vida do policial que com ele manteve somente relações conflitantes.


2. Dilemas identitários de uma outra ética social

Acreditamos que de certa forma a narrativa pode ser lida como tratando de duas caçadas fundamentais: a que visa aniquilar os andróides e a que anseia ampliar seus momentos de vida. Problematizando então as razões que sustentam ambas as vontades, vemos que na primeira inexiste o discernimento integral quanto ao caráter de tal ação, de modo que há somente a subserviência aos ordenamentos vindos de um poder superior, o Estado, que não é propriamente humano, mas uma representação coletiva, convencionalizada na forma de uma instituição social capaz de interferir diretamente sobre a organização e estabilidade da vida dos indivíduos – ainda que estes não compartilhem efetivamente da formulação de suas determinações.

Por outro lado, na segunda caçada está elaborada uma crítica à racionalização técnica que os Homens transferem à dimensão da vida destes seres híbridos. Mas que soa até mesmo como uma proposta utópica, na medida em que, visando a conquista de uma autonomia existencial para os replicantes, procura sugerir que estes possam devolver para os Homens tudo aquilo que com eles foi feito – e, neste sentido, explicitar ainda mais o fato do Homem não ter sido capaz de “criar” vidas, mas sim de as reproduzir e “simular” por meio da produção de seres artificiais.

Ainda em relação à primeira caçada, podemos entender a sugestão de que o envolvimento de Deckard com Rachel, seja ele de qualquer natureza, é um elemento que o aproxima de uma visão destes seres como dotados de verdadeiras características e qualidades humanas. Sendo isto representado após ele ter sua vida salva pela jovem e passar a considerar a possibilidade da existência de reais vontades, sentimentos, paixões e até “juízos morais” nos até então autômatos e calculistas replicantes. Contudo, mesmo nos parecendo que o policial adquiri este julgamento mais flexível em relação aos andróides, vemos que ele preserva seus valores pragmáticos e, não tendo destruído nenhum deles, decide por intensificar sua busca a dois dos quatro seres restantes.

Embora compreendamos a segunda busca como sendo a negação das limitações vivenciais existentes, seguida da tentativa de transformação desta realidade – no caso se efetivando através da utilização da violência como melhor instrumento – , enxergamos também, expresso no fracasso da primeira caçada feita pelos humanos atrás da resolução do fruto de suas próprias ações, o sentido prejudicial que a luta dos replicantes carrega quando pensada como uma efêmera ganância pelo acúmulo de tempo hábil onde as múltiplas informações anexadas às suas “memórias híbridas” possam ser experimentadas e, talvez, constituídas e compreendidas como conhecimentos.

Um exemplo que podemos salientar em relação à descoberta de formas alternativas de relacionamento com estas problemáticas figuradas na narrativa, é o do personagem Sebastian. Homem diretamente próximo ao idealizador, concretizador e fabricante dos replicantes, E. Tyrell (dono da única empresa que os produz, a Tyrell Corporation), Sebastian é uma espécie de engenheiro, projetor da constituição “fisiológica” dos seres híbridos que, possuindo pitorescos hábitos, decidiu viver em um enorme prédio abandonado ao conforto de suas imaginações materializadas em brinquedos que ele procurou construir artesanalmente, como distração e companhia para seus momentos solitários. Podemos até mesmo dizer que possuindo um certo aspecto lúdico, Sebastian nos remete à figura de Gepeto e ao seu fascínio pela criação e ímpeto pela fantástica materialização de uma representação de vida que possa efetivamente “existir”.

O fato de Sebastian agir sozinho na construção dos brinquedos não qualifica uma negação do significado mercantil deste processo, supostamente refletida na opção pela composição de originais bonecos pouco humanizados. Mas pelo contrário, vemos que a recusa desta lógica exploratória é parcial, já que ela se encontra manifesta em sua escolha pela criação de uma “arte egoísta”, que em um sentido psicanalítico, pode ser vista como feita para equilibrar suas frustações com as relações sociais que experimenta cotidianamente. E dizemos parcial e fragmentária, porque ao mesmo tempo em que esta ação é crítica e propositora de um outro significado para o conhecimento, ela falsea artificial e individualistamente a superação dos estranhamentos dos indivíduos frente às naturezas e significados de suas relações.

Com efeito, ao interpretarmos as características que estruturam os dois modos de operação das caçadas, podemos entendê-las como impregnadas pela lógica da reificação consolidada entre as relações socioculturais (no suposto pretérito narrativo) da modernidade. Isto devido ao fato de ambas pressuporem ser realidade, seu movimento e os seres que dela compartilham, um agregado de objetos mortos, de coisas que devem ser finitamente consumidas e utilizadas instrumentalmente como meios para a obtenção de quaisquer objetivos idealizados.

Assim, compreendemos a finalização da trama fundamental como mais um argumento da totalidade discursiva do filme, perceptivelmente crítica de temáticas que envolvem a efemeridade dos valores e práticas das sociabilidades modernas. Instigando-nos, consequentemente, a múltiplas reflexões quanto às possíveis significações sugeridas na preservação da existência do blade runner por sua própia caça: Seria uma compreensão da “alteridade” por parte do replicante? Ou uma repentina e contraditória afirmação de “piedade”? Ou, ainda, a percepção de Roy de que o tamanho caos, desequilíbrio e discórida desenvolvidos pelos humanos, não era merecedor de tanto confronto e da propagação deste ciclo de exclusões e mortes?

Enfim, vemos portanto, que questões sobre o sentido de uma existência limitada, de uma liberdade por natureza cerceada, de práticas subversivas diante da automação, da superação da incompreensão diante da própria ação e da imersão em relações sociais instrumentalmente reificadas, são indicadas por inúmeros elementos que estruturam significação ao filme Blade Runner, fomentando-nos com isto, à diversas reflexões sobre sua validade atual e sobre as possíveis formas de atuação humana em um futuro (ficticío?) que cada vez mais questiona seu presente .


Thien Spinelli Ferraz
é graduando em Ciências Sociais na UNESP
(2005)