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“Quanto
vale ou é por quilo?” de Sérgio Bianchi
(2005)
Seguindo
a linha de "Cronicamente Inviável" (2000), Sérgio
Bianchi desenvolve em "Quanto vale ou é por quilo?"
uma crítica ácida e contundente, que traz à tona
elementos cruciais da sociedade brasileira, revelando princípios
e contradições implícitos nas mais diversas práticas
cotidianas. Desta vez o grande alvo são as organizações
do “terceiro setor”.
Através de uma analogia com a sociedade escravista do século
XVIII, fundamentada no conto "Pai contra Mãe", de
Machado de Assis, e em documentos do Arquivo Nacional, Bianchi questiona
os valores, apresentados nos clichês do marketing social, buscando
revelar a lógica essencialmente mercadológica da atuação
de entidades assistencialistas que, a partir da bandeira da solidariedade
e da responsabilidade social, constituem um modismo extremamente funcional
ao circuito de acumulação capitalista.
Esse tema é abordado na obra através da atuação
da Stiner Empreendimentos Assistenciais, dirigida por Marco Aurélio
(Hérson Capri) e Ricardo Pedrosa (Caco Ciocler). Trata-se de
uma empresa especializada em investimentos sociais que, entre outros,
desenvolve um projeto de “Inclusão Digital” em
regiões periféricas. No decorrer da trama fica evidente
que concorrência na captação de recursos impõe
às organizações assistenciais uma prática
cada vez mais pragmática que, longe de se contrapor, reforça
os princípios excludentes do mercado. No cenário construído
por Bianchi, o desdobramento da atuação da Stiner é
a formação de um esquema de super-faturamento na compra
de computadores que atenderiam determinada comunidade carente. Neste
momento, destaca-se Arminda, que decide denunciar os desvios de verbas
públicas da empresa.
No conto "Pai contra Mãe", de Machado de Assis, uma
escrava grávida fugitiva é capturada pelo capitão
do mato Candinho, que recebe uma recompensa que o possibilita criar
seu filho com “dignidade e liberdade”. Já na adaptação
realizada por Bianchi, Candinho é um jovem recém-casado
– cuja mulher está grávida – que, devido
ao fato de estar desempregado, se coloca na condição
de matador de aluguel. Entre as suas tarefas está uma colocada
por Ricardo Pedrosa: matar Arminda, que começa a ameaçar
com suas denúncias. A partir desta situação são
apresentadas duas possibilidades de desfecho. Na primeira, Candinho
mata Arminda e recebe a recompensa para criar seu filho com “dignidade
e liberdade”, assim como no conto de Machado de Assis. Na segunda,
Arminda convence Candinho a conseguir dinheiro de outra forma: se
voltando contra os próprios líderes da Stiner e fazendo
justiça contra os “ladrões de dinheiro público”.
A análise de "Quanto vale ou é por quilo?"
pode parecer, à primeira vista, algo em grande medida desnecessário,
já que se trata de um filme bastante direto e claro com relação
aos seus propósitos. Porém, a partir da crítica
ferrenha apresentada pelo roteiro do filme, pode-se abstrair elementos
subjacentes ao “terceiro setor”, que vão muito
além dos elementos explicitados na trama.
Apesar de não fazer referência a esta problemática,
o filme possibilita o questionamento do próprio termo “terceiro
setor”. Como identificar como um setor à parte um conjunto
de organizações que não tem autonomia alguma
em relação ao mercado e ao Estado, pois funcionam dentro
dos limites do primeiro e dependem essencialmente de financiamentos
do segundo?
Além disso, a crítica aos projetos sociais desenvolvidos
por ONGs e empresas socialmente responsáveis pode ir muito
além da afirmação da possibilidade de existência
de corrupção no seu interior. A eficácia quase
nula de um projeto de “inclusão digital” em favelas
sem condições básicas de infra-estrutura revela
limites cruciais das organizações do “terceiro
setor”. Ações focalizadas, direcionadas a “clientelas”
específicas, possuem efeito bastante restrito em uma sociedade
de desigualdades tão profundas como a nossa. Além disso,
constituem fatores de grande funcionalidade à desresponsabilização
do Estado frente à questão social, em tempos de ascensão
do neoliberalismo. Gradativamente, a noção de indivíduo
portador de direitos universais dá lugar à idéia
de cliente receptor/consumidor de serviços sociais, plenamente
de acordo com os moldes e imperativos do mercado. Nesse sentido, a
analogia, estabelecida por Bianchi, com o período da escravidão
tem o objetivo de mostrar que valores como dignidade, solidariedade
e justiça social podem variar e ser facilmente apropriados
em função do lucro.
Por
isso, pode-se dizer que, apesar do risco de cair em anacronismos ao
comparar épocas tão distintas, a proposta de Bianchi
tem a positividade de estimular e instigar a reflexão acerca
de um fenômeno tratado comumente de forma exaltativa e acrítica
em nossa sociedade, como é o caso do “terceiro setor”.
Ao que parece, Bianchi busca, através de situações
extremas, chocar e constranger o expectador, mostrando contextos em
que a solidariedade vira moeda de troca, esvaziando-se e se transformando
em engrenagem de reprodução dos interesses dominantes.
Marcilio
Rodrigues Lucas
Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal
de Uberlândia
Estudante de História da Universidade Federal de Uberlândia
(8º período)
(2006)
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