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“Matrix”
de Warchowski Brothers
(1999)
É
possível sair da Matrix ou o livre-arbítrio
e a liberdade constituem uma ilusão?
por Pollyana Notargiacomo Mustaro
Matrix
(1999), filme de ficção científica cyberpunk
dirigido pelos irmãos Larry e Andy Wachowski, revolucionou
o cinema pós-moderno. A temática e os efeitos especiais
utilizados resultaram em quatro estatuetas do Oscar no ano de 2000
– nas categorias de melhores Efeitos Visuais, Efeitos Sonoros,
Som e Montagem. No futuro, aproximadamente no ano de 2199, a humanidade
tornou-se a fonte de energia elétrica de uma Inteligência
Artificial (IA) denominada Matrix. Esta manteria os seres humanos
confinados em casulos através de uma simulação
neuro-interativa extremamente realista, ou seja, de uma realidade
virtual que substituiria o mundo real. Contudo, algumas pessoas conectadas
a este sistema constantemente questionavam-se: o que é a Matrix?
A busca de resposta para esta pergunta inicia-se no verbete matriz.
O dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001) define
esta palavra de origem latina (matrix) como útero, local onde
algo é criado, fonte, origem. No longa-metragem a definição
apresentada por Morpheus, o líder da resistência humana,
é a seguinte: “A Matrix está em todo o lugar [...].
É o mundo que foi colocado diante dos seus olhos para que você
não visse a verdade [...] que você é um escravo.
[...] O que é a Matrix? Controle”. A junção
destas duas explicações possibilita a caracterização
da Matrix como a representação do sistema sócio-político-econômico-cultural
de regras que regem a vida das pessoas, ou seja, o conjunto de metanarrativas
e dispositivos de autoridade e vigilância utilizados para moldá-las
e torná-las obedientes sem objeções ou questionamentos.
Segundo Kechikian (1993, p. 47), metanarrativas são “discursos
legitimadores do poder e do saber, que ao contrário dos mitos,
não buscam o princípio da sua legitimação
num ‘acto original fundador’, mas constituem-se antes
em projectos escatológicos de realização histórica”.
Elas também se vinculam aos discursos legitimadores e aos jogos
de linguagem baseados em um “contrato explicito ou não
entre os jogadores” (Lyotard, 1989, p. 29). Neste sentido, a
busca pela e para a saída da Matrix envolve a transposição
de obstáculos e superação de dúvidas que
possibilitem a libertação do pensamento. Envolve o processo
de “deslegitimação”, processo marcado pela
perda da credibilidade nas grandes narrativas e pela busca de alternativas
que possibilitem a alteração do cenário determinista.
No princípio da trilogia Matrix, aparentemente se tem a impressão
de que a proposta do roteiro é mostrar estratégias que
possibilitem a quebra do sistema de dominação, que permitam
ao ser humano dissipar as dúvidas para assumir uma postura
crítica diante da tecnologia. Contudo, ao longo do desenrolar
da trama vai se construindo um cenário apocalíptico
onde os humanos, a despeito da luta e empenho, continuam subjugados
pelas máquinas – sem liberdade e sem livre-arbítrio.
Livre-arbítrio, aliás é a palavra-chave para
a compreensão das três obras fílmicas.
Logo no início do primeiro filme é apresentado o grupo
de resistência, formado por hackers de computadores. Os hackers,
que costumeiramente são confundidos na sociedade com os crackers
e vistos como marginais responsáveis por ações
ilegais, são retratados como heróis, como aqueles que
têm a responsabilidade de libertar as pessoas alienadas e dominadas.
Os hackers, segundo Kleespie (2000) são aqueles que realizam
feitos inimagináveis e exploram as fronteiras do ciberespaço.
Em Matrix o grupo de hackers rebeldes somente em parte exerce
essa função. E porque isso ocorre? Por que nesta busca
desenfreada pela libertação das engrenagens do sistema
tecnológico opressor eles não conseguem se desprender
das “pseudoprofecias”.
Estas exercem a função de profecias auto-realizadoras
(self-fulfilling prophecy), conhecidas no âmbito educacional
como “efeito pigmaleão” (Rosenthal; Jacobson, 1968).
O efeito pigmaleão postula que os professores (de forma consciente
ou não) criam expectativas positivas ou negativas em relação
aos estudantes. Posteriormente as profecias auto-realizadoras enunciadas
concretizam-se devido à aceitação e interiorização
(mesmo que involuntária) do estereótipo por parte dos
alunos. Ou seja, se um docente disser “você tem dificuldade
em matemática e não conseguirá realizar a tarefa”
está, indiretamente, induzindo o aprendiz a interiorizar esse
conceito (imagem refletida) e consequentemente ao fracasso da atividade.
A interligação de diversas “pseudoprofecias”
complementares – presentes tanto em micro quanto em macroestruturas
– pode resultar na instituição de uma metanarrativa
profética. Em Matrix, todas as conjecturas futuras apresentadas
pela Oráculo aos hackers da resistência formam um encadeamento
de acontecimentos. Morpheus é aquele que encontrará
o Escolhido. Trinity é aquela que se apaixonará pelo
Escolhido. E Neo? Neo é o suposto salvador da raça humana
que sai somente com uma certeza de sua conversa com a Oráculo:
terá que escolher entre sua própria vida e a de Morpheus.
Este mecanismo de atribuição de unidade utilizado somente
surtiu efeito porque nenhum dos personagens questiona a autoridade
da profetiza. “Profecia e presciência – como podem
elas ser colocadas em teste diante de questões sem resposta?
Considere: o quanto é verdadeira previsão [...] e o
quanto é resultado do trabalho do profeta, moldando o futuro
para se adequar à profecia?” (Herbert, 1987, p. 354).
Neste sentido, Matrix apresenta apenas a concretização
de uma virtualidade: realização de uma possibilidade
já existente (Lévy, 1996). O processo de libertação,
por outro lado, requer uma atualização – a criação
de uma solução diferente para a problemática
– um processo dinâmico que constitui “o nó
de tendências ou de forças que acompanha uma situação,
um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer” (Op. Cit.
p. 16). Mas, para que haja atualização é preciso
que exista a possibilidade de escolha.
A escolha é um elemento de foi deletado da Matrix. Ou seja,
enquanto a trama se desenrola os espectadores compreendem que também
foram manipulados. Nos filmes subseqüentes (Matrix Reloaded
e Matrix Revolutions) as ações empreendidas
culminaram na atualização e no novo estado de estabilidade
do sistema. A suposta “vitória” da Matrix constituiu
de fato um jogo de peças orquestradas. A compreensão
deste fato envolve duas proposições: Neo é um
programa que assumiu a representação de avatar humano;
Zion constitui um segundo nível de simulação
– o simulacro do simulacro.
Para discutir a primeira conjectura pode-se seguir o caminho inverso
e questionar: o que sustentaria a humanidade de Neo? O amor? Defende-se
aqui que ele sendo um programa agente de IA avançado poderia
ter sido programado pelo Arquiteto para acreditar na própria
humanidade e, sem seu próprio conhecimento, colaborar para
a manutenção do sistema e controle dos humanos. Neste
sentido, ele também poderia ser tecnologicamente avançado,
possuindo recursos que possibilitassem sua melhor e mais convincente
interação com os humanos. Essa situação
é análoga à apresentada no filme “O impostor”
(baseado num conto de Phililp K. Dick), onde o ator Gary Sínese
acredita ser humano, mas na verdade é um clone-bomba feito
por alienígenas em guerra com os seres humanos.
Assim sendo, no terceiro filme (Matrix Revolutions) quando
Neo retorna à Fonte, está se conectando para atualizar
o sistema e tornar a Matrix mais eficaz para gerenciar os humanos.
Esta hipótese é sustentada pela conversa com o Arquiteto
em Matrix Reloaded onde este diz a função de
Neo é “retornar à fonte, permitindo uma temporária
disseminação do código que você carrega,
reinserindo o programa principal”, ou seja, conter o crescimento
da instabilidade do sistema.
Na mesma conversa o Arquiteto conta que a Oráculo – programa
intuitivo desenvolvido para analisar a psique humana – concluiu
que 99,9% das pessoas tinham a necessidade de acreditar na possibilidade
de escolha de saída da Matrix para aceitar a existência
virtual. Mas qual seria o destino do restante das pessoas? Seriam
eles os habitantes de Zion? Partindo desta linha de raciocínio,
pode-se conjecturar que o suposto “mundo real” de Zion
constitui uma segunda camada de virtualidade.
Esta funcionaria como uma espécie de firewall (“parede
corta fogo”) e possibilitaria a proteção da Matrix.
Um evento que sustenta esta hipótese é a capacidade
de Neo de manipular as sentinelas no suposto mundo real. Todavia,
quando se atinge a cifra de 1% de pessoas que não aceita a
Matrix, ou seja, quando estas se encontram fora do sistema principal,
é necessário destruir o segundo nível (Zion)
para eliminar as anomalias sistêmicas e criar uma nova versão
para abrigar as pessoas que não suportem a Matrix. No desfecho
da trilogia, contudo, Zion não foi totalmente destruída,
o que poderia significar uma “vitória parcial”
dos humanos ou a constatação de que a humanidade encontra-se
numa época limítrofe pois,
"À medida que os seres humanos se confundem cada vez mais
com a tecnologia e uns com os outros através da tecnologia,
as velhas distinções entre o que é especificamente
humano e o que é especificamente tecnológico tornam-se
mais complexas. Estaremos a viver uma vida no ecrã ou dentro
do ecrã? As novas relações tecnologicamente entretecidas
obrigamos a perguntar até que ponto não nos tornámos
já cyborgs, misturas transgressivas de biologia, tecnologia
e código de computador. A distância tradicional entre
a pessoa e a máquina é cada vez mais difícil
de manter.
[...]
"Aprendemos a aceitar as coisas tal como elas se apresentam na
interface do computador. Estamos a enveredar por uma cultura da simulação
na qual as pessoas sentem cada vez menos pruridos em substituir o
real por representações da realidade" (Turkle,
1997, p. 30-33).
Portanto, mesmo neste sentido o filme é escatológico
e não deixa margem para a saída da Matrix. Isso ocorre
devido à efetividade da utilização de profecias
auto-realizadoras e da utilização deste segundo nível
de simulação neuro-interativa para controle. A trilogia,
por apresentar o “simulacro do simulacro” não esclarece
a real forma como os humanos foram escravizados, nem quais as características
deste tipo de escravidão ou mesmo de que maneira a humanidade
é utilizada pela IA. Afinal de contas, na Matrix tudo é
uma ilusão: a liberdade é uma ilusão, o livre-arbítrio
é uma ilusão.
Do ponto de vista da sociedade contemporânea, por outro lado,
conclui-se que uma opção possível é a
criação do que Hakim Bey (2001, p. 17) denomina de TAZ
– Zona Autônoma Temporária: “uma espécie
de rebelião que não confronta o Estado diretamente,
uma operação de guerrilha que libera uma área
(de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para
se re-fazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa
esmagá-la”. Através da instituição
de zonas autônomas temporárias, que escapam da “cartografia
de controle”, pode-se colaborar para a construção
de um futuro que vislumbre outros horizontes e onde as pessoas possam
continuar a se questionar sobre os papéis das regras e ideologias
existentes – “Free your mind”.
Referências bibliográficas
BEY,
Hakim. TAZ: Zona Autônoma Temporária. São Paulo:
Conrad Editora do Brasil, 2001. (Coleção Baderna)
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001.
HERBERT, Frank. Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
KLEESPIE, Steven L. The Role of ‘White Hat’ Hackers in
Information Security. MOTM 4411 Securing Electronic Commerce, 2000.
Disponível em: <http://www.wbglinks.net/pages/reads/whitehat.html>.
Acesso em: 10 mar. 2002.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna.
2. ed. Trad. José Navarro. Lisboa: Gradiva, 1989. (Colecção
Trajectos)
Rosenthal, Robert. & Jacobson, Lenore. Pygmalion in the classroom.
New York: Holt, Rinehart & Winston, 1968.
TURKLE, Sherry. A vida no Ecrã: a Identidade da Era da Internet.
Lisboa: Relógio D’Água, 1997.
Pollyana
Notargiacomo Mustaro
é professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie
(2005)
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