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“Estrada
para Perdição”
(Road to Perdition),
de Sam Mendes
(2002)
Eixo
temático
A sociedade burguesa nos EUA possui algumas dimensões histórico-concretas
particulares. A principal é que, desde primórdios
do século XX, a sociabilidade do capital vigente assumiu
nela sua forma explicita e mais desenvolvida. Nesta sociedade
histórica encontranos o campo pleno de desenvolvimento
da lógica mercantil, de suas positividades e negatividades
ampliadas. O que se constitui no século XIX como os Estados
Unidos da América se revelou, desde seus primórdios
como a Nação do Capital, do sistema social lastreado
no dinheiro, poder e ideologia da possesividade e vendabilidade
universal. Por isso, explicitam-se traços precoces de estranhamento
(e fetichismo) social e de sociabilidade degradada, baseada em
afetos destrutivos e de morte. A figura do gangster e do crime
organizado, seja em sua forma familiar, seja como grande corporação
capitalista, aparece como a síntese deste desenvolvimento
da Nação do Capital. Indústria e Guerra,
Negócios e Criminalidade se imbricam no capitalismo desenvolvido
dos EUA. Por outro lado, tal civilização do capital
tende a criar enquanto possibilidade concreta, um campo ampliado
de desenvolvimento da personalidade humano-genérica. É
tal contradição candente entre individualidade humano-genérica
e afetos de morte, baseados em relações de poder
e do dinheiro, que irá tornar-se explicito na estrutura
de sociabilidade na sociedae burguesa dos EUA.
Temas-chave:
sociabilidade, fetichismo e estranhamento; violência e crime
organizado; família e crise do capital. Imagem e fetichismo
social.
Filmes relacionados: “O Poderoso Chefão”, de
Ford Copolla; “Os Bons Companheiros”, de Martin Scorsese;
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Análise
do Filme
“Estrada
para Perdição” de Sam Mendes não é
apenas um filme de gangster, mas é um painel íntimo da
sociabilidade burguesa nos EUA. O diretor Mendes se destaca, em seu
segundo filme, como um analista perspicaz da sociedade norte-americana.
Depois de “Beleza América”, de 1999, Mendes nos brinda
com um pequeno retrato dos Estados Unidos da América em 1931,
época da grande depressão. Os EUA já surge após
a I Guerra Mundial (1914-1918), como uma grande potência industrial-financeira
do mundo capitalista. Mas o que percebemos é que a sociedade
burguesa nos Estados Unidos da América já nasce decrépita
e degradada. Tal como em “Beleza Americana”, a narrativa
de “Estrada para a Perdição” sugere um clima
de necrofilia, de fascinação (e medo) pela morte. Talvez
seja o próprio espírito da civilização do
capital nos EUA, construída em cima de sangue, suor e lágrimas
(do extermínio das populações indígenas
à anexação colonialista de territórios no
Sul). Na verdade, o american dream é uma odisséia
de destruição criativa do capital, onde a morte tem sido
a companheira constante, tal como ocorre na vida de gângsteres.Todo
filme é impregnado de um clima de morte e vingança. E
de fascínio mórbido pela imagem da morte (o personagem
Harlem Maguire, interpretado por Jude Law, como iremos ver, é
paradigmático).
A
comparação com o outro filme de Mendes, “Beleza
Americana” é flagrante: o personagem central, o gangster
Michael Sullivan, interpretado por Tom Hanks, tal como Lester Burham
(interpretado por Kevin Spacey) em “Beleza Americana”, é
assassinado num momento catártico, numa casa de praia, logo após
ter cumprido seu objetivo: vingar-se do assassino de sua mulher e filho.
Quando a trama narrativa do filme parecia nos conduzia para um happy
end, o que acontece é o acerto final do fotográfo-matador
de aluguel, Harlem Maguirre, com o gangster, Michael Sullivan.
Como
salientamos, o fotográfo Harlem Maguirre é, em si, um
personagem curioso. É um dos personagens fascinantes da trama
filmica de Sam Mendes. É um gangster como outro qualquer, mas
que possui uma fascinação mórbida: tirar fotos
dos seus cadáveres. Ora, ao misturar imagem e morte, Mendes,
mais uma vez, traduz um traço essencial da sociabilidade burguesa
nos EUA: a fascinação midiática pela morte, uma
fascinação bastante compatível com as necessidades
da ordem imperialista do capital. Ainda tomando “Beleza Americana”
como referência básica, o personagem do fotografo pode
ser considerado uma mescla de coronel Fitts com seu filho Rick Fitts.
O
gangster Michael Sullivan, descendente de irlandeses, é fiel
ao Chefão John Rooney, um velho gangter de Chicago, representado
por Paul Newman, até o dia em que Connor Rooney, o filho do chefão,
assassina sua mulher e filho (de Sullivan). Apenas o filho mais velho,
Michael Sullivan Jr., sobrevive. A partir daí, vingar-se da morte
de sua família, torna-se uma obsessão para Michael Sullivan.
Seu objeto de vingança é o filho do Chefão, Connor,
e apenas ele (Michael não busca destruir o império
criminoso do velho Rooney, mas apenas obriga-lo a entregar seu filho
para ser justiçado). Connor
Rooney é um personagem medíocre, decadente, com uma expressão
sempre irônica, mas cruel, que trapaceia o pai. A relação
entre pai e filho é uma simbiose de morte. O pai sabe
que o filho lhe trapaceia, desviando dinheiro para sua conta-corrente.
Mas nada faz, demonstrando que, apesar de todo poder, nada pode contra
seu sangue degradado. Essa incapacidade de lidar com a insensatez do
filho e o afeto que possui por Michael Sullivan, que considera como
um filho, tende a representar os sintomas da decadência imperial.
Os dilemas
de John Rooney são os dilemas da velha América corporativa.
Mendes continua mais uma vez, refletindo sobre a crise da família
americana, pois o ideal de família, tão bem retratado
por Francis Ford Coppola na trilogia “O Poderoso Chefão”,
aqui é transfigurado na crise da “família”
do Capo John Rooney, principalmente em sua relação neurótica
com o filho Connor e que irá conduzir a família –
inclusive sua organização criminosa - à ruína.
Uma outra família é arruinada pelo ímpeto de Connor
Rooney, a de Michael Sullivan. Ora, Connor é o alter ego
destruidor de John Rooney. Por isso, o pai nada pode contra ele. É
Connor quem deverá precipitar o declínio e a morte da
“família” do Chefão.
A desestruturação
da família é um tema constante na estruturas
narrativas do cinema americano. E Mendes utiliza um drama de gangster
de 1931 para refletir a crise da sociabilidade burguesa dos nossos dias.
É possível apreender alguns detalhes curiosos e bastante
significativos na trama narrativa de Road to Perdition (Mendes,
tal como Kubrick e os grandes cineastas, não desprezam os detalhes
da narrativa para traduzir elementos significativos da totalidade concreta).
Por exemplo: é quase completa a ausência de policiais no
filme (o único que aparece é morto pelo fotografo Harlem
Maguirre à beira da estrada). É como se a ausência
do Estado policial apenas torna-se mais claro a natureza do drama familiar,
pois o filme é, antes de mais nada, como “Beleza Americana”,
um drama familiar. É interessante ainda a presença do
casal de fazendeiros, quase como a representar a nostalgia de uma vida
rural bucólica, distante do ambiente de morte da cidade industrial.
Metrópole
e trabalho operário é outro detalhe a ser destacado.
Logo no início do filme aparece uma massa de operários
se dirigindo ao trabalho, com um jornaleiro anunciando a manchete de
morte de um operário por acidente de trabalho. Mais adiante,
mais uma vez, o tema da manipulação da classe operária
aparece, com o Chefão John Rooney fazendo referencia aos sindicatos
– o velho gangster não quer interferir neles pois acredita
que já interfere demais na vida dos operários fora da
fábrica (Rooney talvez represente um velho estilo decadente de
gangster).
O capo
Rooney representa, de certo modo, a protoforma da elite dominante do
capitalismo americano. Por outro lado, Michael Sullivan, seu fiel serviçal,
poderia representar a “classe média” que vive à
sua sombra, até que se vê envolvida numa trama estranhada
(é possível um paralelo com a narrativa de “De olhos
bem fechados”, de Stanley Kubrick, na relação que
o Dr. Harford tem com a elite financeira).
É
para a fazenda que o filho de Michael Sullivan retorna, ao final do
filme, sugerindo que o filho deverá ter um destino diferente
daquele do pai (o curioso é que o nome do filho é Michael
Sullivan Jr., o que sugere uma continuidade da figura do pai). Como
estamos em 1931, nada impede de imaginarmos que o pequeno fazendeiro
possa ser despejado pelos barões das finanças, como ocorreu
nos EUA dos anos 30 (que o diga o drama familiar de “Vinhas da
Ira”, de John Ford). Mas nesse caso, os gangsteres serão
outros e provavelmente o filho de Michael irá verificar que apenas
as armas da vingança não lhe servirão.
Outro
elemento significativo no filme é a casa da tia Sara, à
beira do mar, o local onde Michael Sullivan foi assassinado
por Harlem Maguirre, olhando para o mar, pela janela de vidro (mais
uma vez, o paralelo com “Beleza America” - Lester Burham,
representado por Kevin Spacey, é assassinado pelo Coronel Fitts,
ao olhar a foto da família, na cozinha de sua casa). O mar representa
esperança, mas também a incerteza. E o cenário
da esperança, como sugere o filme, é a pequena fazenda.
O personagem
da criança (ou pré-adolescente), Michael Sulllivam Jr.,
o narrador da história, é bastante interessante, pois
ele, em todo filme, com exceção das cenas em que dirige
o automóvel para o pai, durante os assaltos aos bancos, é
meramente um espectador da barbárie e da odisséia de morte.
Acompanha os assassinatos totalmente estupefato; primeiro, ao descobrir
a ocupação do pai e depois, ao encontrar a mãe
e o irmão, assassinados por Connor. Ao mesmo tempo, a criança
demonstra seu fascínio pela leitura de histórias policiais
(na escola diz não gostar de Matemática e sim de histórias
bíblicas). É ele que irá guardar a memória
do pai e do seu trágico destino, dele e da sua família.
Outro
elemento do filme é a ausência de personagens femininos
no filme (as únicas mulheres no filme exercem papel secundário,
como a esposa de Michael Sullivan, Tia Sara ou a mulher do fazendeiro).
Nos outros momentos em que aparecem mulheres, elas são objetos
sexuais de gangsteres, as figuras masculinas que dominam o filme. São
mulheres sufocadas pelo drama do poder, morte e vingança.
Mulheres e crianças apenas acompanham o drama dos adultos homens.
Road to Perdition é um drama familiar sem mulheres.
Talvez a ausência das mulheres seja mais um elemento da crise
da família burguesa. Em “Beleza Americana”,
mesmo a personagem feminina central, Carolyn Burham, mulher do Lester,
é quase um tipo masculino, ligada às factualidades do
mundo burguês. Ela exerce na narrativa um papel ativo e de imposição
quase masculina. Em Road to Perdition, o drama é masculino,
de declínio do poder do homem branco, dominador, expresso nas
figuras dos gangsteres.
Dizemos
que o Estado como policia está ausente também
do filme. Mas percebemos que o Estado assistencialista já aparece,
de modo tímido, quando Michael Sullivan, em Chicago, enquanto
vai conversar com um outro capo, deixa o filho numa repartição
pública de atendimento a desempregados. É uma área
imensa, lotada de proletários desempregados, mais uma expressão
da depressão da economia americana em 1931. O ambiente social
e econômico é de crise do mundo do trabalho, pois a disseminação
da criminalidade é um aspecto da crise de sociabilidade do trabalho,
como já observava Engels no livro A Situação
da Classe Trabalhadora na Inglaterra (de 1842). Sam Mendes teve
sensibilidade de captar tais breves momentos da situação
operária no interior de um drama da elite do poder americano.
Tanto o Chefão John Rooney, quanto Michael Sullivan, representavam,
naquela época, elementos do poder de classe dominante, em sua
expressão degradada (é visível a presença
de banqueiros como receptadores do dinheiro sujo dos gângsteres).
No final do filme, o assassinato do Chefão Rooney por Michael
sugere um ato catártico do próprio Michael. Numa
noite de chuva, tal como em “Beleza Americana”, Michael
consegue prestar contas consigo mesmo, pois naquele momento assassinou
o Pai na figura do Chefão Rooney, um Pai omisso, indiferente
à dor do “filho”. É claramente uma sugestão
freudiana. A seguir, Michael Sullivan assassina, Connor (seu “irmão”
impetuoso).
É
claro que Road to Perdition é um filme histórico,
de volta ao passado de crise, para refletir sobre a crise
do presente, uma crise estrutural do capital (desde a
década de 1970), cujas determinações de crise orgânica
já vislumbrávamos nos anos 20 e 30 do século passado.
O deslocamento temporal possui uma função heurística
na trama narrativa. Na depressão dos anos 1930, com a onipresença
de gângsteres, Mendes está refletindo, até de forma
exagerada, o drama da crise do mundo burguês nos EUA. Talvez,
hoje, os gângsteres sejam outros, menos visíveis e mais
poderosos. Mas a situação de crise orgânica do capital,
inclusive como representação do poder hegemônico
da figura masculina continua.
É
claro que o capo John Rooney será substituído
por outro Chefão, é o que sugere Mendes. O que quer dizer
que, em 1931, o declínio do Chefão Rooney seria apenas
o declínio de um certo tipo de gangsterismo. Na verdade, o gangsterismo
em suas múltiplas formas sócio-históricas, sempre
caracterizou a sociedade norte-americana (em sua trilogia “O Poderoso
Chefão”, Coppola já mostrava essa evolução
geracional dos estilos de gângsteres nos EUA – de Marlon
Brando a Al Pacino). Talvez a fixação em dramas de
gangsters seja a forma do cinema americano apreender um traço
da sociabilidade de poder nos EUA. As elites sempre tiveram um caráter
gangsterista, que é expressão de uma forma hiperdesenvolvida
de mercantilização das relações sociais.
Portanto, Mendes segue a linhagem fílmica dos grandes Copolla
ou Scorsese (Os Bons Companheiros), como verdadeiros analistas
sociais do espírito do mundo burguês na América,
cineastas da crise de autoconsciência da sociedade americana.
Giovanni Alves (2003)
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