Ou Tudo Ou Nada,
(The Full Monty)
de Peter Cattaneo
(1997)

 

Eixo Temático

O desenvolvimento da mundialização do capital e do capitalismo global, a partir da década de 1980, implicou numa nova divisão internacional do trabalho, com impacto significativos em alguns setores industriais nos países capitalistas do Primeiro Mundo, como, por exemplo, Espanha e Reino Unido. Ocorreu um agudo processo de desindustrialização e de reconversão produtiva que atingiu o mundo do trabalho, contribuindo para o aumento significativo do desemprego em massa e do desemprego de longa duração e da precarização do trabalho. Surgiram formas agudas de estranhamento da força de trabalho em virtude da sua desvalorização como mercadoria. Um grande contingente de ex-operários foram obrigados a buscar inserções precárias no mercado de trabalho no setor de serviços em expansão. Enfim, eles foram vítimas da globalização do capital e das mutações do capitalismo global, marcado pela financeirização exarcebada e pela constituição da sociedade em rede. Nessa nova etapa de desenvolvimento do sistema munbdial do capital se engendra uma nova dinâmica social caracterizada pelo sócio-metabolismo da barbarie, isto é, pela aguda dessocialização de amplos contingentes da sociedade do trabalho estranhado.

Temas-chaves: trabalho assalariado, reestruturação produtiva; desemprego, precarização do trabalho, capitalismo global.

Filmes relacionados: “Segunda-Feira Ao Sol", de Fernando Léon de Aranoa; "Pão e Rosas", de Ken Loach;"O Adversário", de Nicole Garcia; "A Agenda", de Laurent Cantet.

Análise do Filme

Seis operários desempregados, que vivem em Sheffield (Inglaterra), outrora centro industrial do aço na Inglaterra, decidem montar, apenas por uma noite, um show de striptease para mulheres. São inspirados pelos Chippendale’s, grupo de dançarinos ingleses. Entretanto, decidem ir além – irão ficar totalmente pelados (tradução da expressão inglesa “the full monty”). Na verdade, o que os motiva é arrecadar um bocado de dinheiro. A partir deste mote narrativo, The Full Monty expõe, em tom de comédia, com uma envolvente trilha musical, a constituição do grupo, seus dramas pessoais, medos e ansiedades ligados ao novo desafio de se desnudar por uma noite para um público de mulheres. A partir de The Full Monty pode-se discutir a crise do emprego industrial, em virtude da reestruturação produtiva da indústria inglesa da era neoliberal e suas implicações na subjetividade operária.

O drama do desemprego implode identidades pessoais, de gênero e de classe, constituídas no período de desenvolvimento do capitalismo industrial. O capital em sua sanha de reestruturação produtiva, deslocando e tornando obsoletos homens e territórios de produção, expõe dramas existenciais singulares. É o que The Full Monty tenta traduzir através de um mote narrativo curioso e intrinsecamente metafórico: desempregados montando um show de striptease, buscando se desnudar para um público de mulheres curiosas.

Na verdade, os desempregados ao buscarem se despir em público, apenas expõem a sua condição de nudez social, “sem lenço, nem documento”, como diz a canção, sem perspectivas de vida e de emprego. Os personagens centrais em The Full Monty – expressão inglesa que significa “os que estão totalmente pelados”, estão “pelados” em duplo sentido – tanto no sentido de dançarinos stripteaser, quanto no sentido de homens desnudados de si e de sua condição de classe que vive do trabalho.

1. Homens desacomodados

Em seu magistral ensaio intitulado “Tudo que é Sólido se Desmancha no Ar”, Marshall Bermann abre um tópico intitulado “Nudez: o Homem Desacomodado”. Na verdade, The Full Monty expressa aquilo de que trata Bermann: o “desmantelamento” do mundo social pelo capital em movimento; um capitalismo que transformou as relações das pessoas umas com as outras e consigo mesmas.
O foco analítico de Bermann é o Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels, de 1848. Nele, “a burguesia” é o sujeito (são as suas atividades econômicas que provocam as grandes mudanças), e as mulheres e os homens modernos de todas as classes são os objetos, pois todos são transformados.

Mas, um outro detalhe, observado por Bermann, é que “a oposição básica estabelecida por Marx [n’O Manifesto Comunista] é entre aquilo que está aberto ou nu e o que está oculto, velado, coberto.” Está inscrito, deste modo, no discurso de Marx um novo simbolismo tipicamente moderno (e trágico), ou seja, “as roupas se transformam num emblema do modo de vida antigo e ilusório; a nudez passa a representar a verdade recém-descoberta e vivenciada; e o ato de despir as roupas transforma-se num ato de libertação espiritual, de tornar-se real.” E Bermann observa: “Para Marx, as roupas são arrancadas, os véus são extraídos à força, o processo de desnudamento é violento e brutal; e, no entanto, sabe-se lá como, o movimento trágico da história moderna deveria culminar num final feliz.”

Entretanto, não ocorre propriamente em The Full Monty um final feliz, tendo em vista que o vazio de perspectiva de vida permanece para Gus e Dave, embora eles tenham realizado seus intentos originais (eles decidem montar, apenas por uma noite, um show de striptease para mulheres). O que se sugere – e não podemos deixar de salientar – é que a “dialética da nudez” (ou do striptease) em The Full Monty ocorre, não em tempos modernos, mas em tempos pós-modernos. Na verdade, o que está posto é menos a dimensão da classe social e de seu movimento insurgente e mais os dramas (e saídas) individuais.


O desalento do desemprego

Na modernidade clássica, o “desnudamento” ou a condição de “homem desacomodado” (expressão tirada da peça teatral Rei Lear de William Shakespeare), possuía uma dimensão trágica - e, portanto, catártica - no sentido social. Ou seja, a aflição social diante da tempestade torrencial e aterradora que era o movimento do capitalismo tenderia a ser traduzido no movimento de “negação da negação” do proletariado organizado. Havia um ideal coletivo, expresso na utopia do socialismo clássico. Observa Bermann: “A esperança de Marx é que, quando forem ‘forçados a encarar [...] as reais condições de suas vidas e suas relações com os outros homens”, os homens desacomodados da classe trabalhadora se unam para combater o frio que os faz sofrer. Sua união gerará a energia coletiva necessária para abastecer uma nova vida comunal.”

Entretanto, nos tempos pós-modernos, a grande narrativa, inscrita n’O Manifesto Comunista tende a perder seu sentido histórico. A partir da década de 1970, a classe operária tende a estar imersa na experiência de derrota política e de ofensiva do capital na produção (eis, portanto, os significados do neoliberalismo e do complexo de reestruturação produtiva). Nessas condições histórico-concretas, os indivíduos de classe, homens e mulheres estão imersos em seus particularismos existenciais.

Deste modo, em The Full Monty, não se coloca a dimensão da classe para si, mas apenas a da classe em si, imersas em sua tragédia (ou comédia) social. Afinal, quem são Gus, Dave, Guy e Lomper? Não são mais operários metalúrgicos, mas meros homens desacomodados, sem perspectiva de vida. E a expressão “homens desacomodados” possui duplo significado: trata não apenas de homens e mulheres modernos, objetos da lógica do capital, mas homens, no sentido de gênero, que são obrigados a re-significar sua identidade masculina.


Homens desacomodados

Em The Full Monty se destaca no plano narrativo, certo tipo de individualismo incondicionado comum à cinematografia de Hollywood. Entretanto, tal detalhe estilístico não é mero apelo ideológico. Talvez, o individualismo candente em sua trama narrativa, expresse a verdadeira crise das instituições defensivas do trabalho em plena década de 1990 na Grã-Bretanha – crise dos sindicatos e crise dos partidos trabalhistas e socialistas. De Thatcher a Tony Blair, passando pelo débâcle da experiência socialista no Leste Europeu e na União Soviética, não sobrou muita coisa do ideal coletivista. Na verdade, a arte realista não pode transgredir o real, mas apenas explicitá-lo em suas aterradoras contradições. É o que sugere The Full Monty – apenas expõe o drama de homens desacomodados na época do capitalismo global. O final do filme é incerto e vacilante, tão precário e volátil quanto a vida na sociedade burguesa em tempos neoliberais.

2. Cidade Nua

The Full Monty abre um complexo de temas particulares, ligados não apenas à objetividade do mundo do trabalho, mas à subjetividades de homens, mulheres e casais atingidos pelo novo (e precário) mundo do trabalho. A temática central é o drama social do desemprego, numa determinada circunstância histórica - o desemprego estrutural, provocado pela política neoliberal emergente no capitalismo global, que deslocalizou em muitos paises capitalistas avançados, clusters industriais da Primeira Revolução Industrial. Em torno deste eixo temático se desvela a tragédia (e comedia) da individualidade estranhada, desacomodada, de homens desnudados, seja em sua identidade profissional, seja em sua identidade de gênero.

Mas, ao lado de Gaz, Dave, Gerald, Lomper, Horse e Guy, existe uma outra personagem principal de The Full Monty: a cidade de Sheffield. Em vários momentos do filme, é perceptível planos abertos do cenário urbano ainda marcado pelo passado industrial, dos conjuntos habitacionais de cariz fordista e das imensas plantas industrias. Aliás, logo no inicio do filme, temos um pequeno vídeo promocional de Sheffield na era de ouro do industrialismo inglês.


Tempos do Fordismo

A exposição da cidade sugere que o espaço urbano compõe, tal como o corpo e mente, a subjetividade da força de trabalho e do trabalho vivo. A cidadã é parte da classe, tal como sua territorialidade sócio-espacial. É curioso que Friedrich Engels em seu livro clássico, “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”, tenha dedicado um capítulo a tratar da cidade. Além disso, a precarização da classe é, em certa medida, a precarização do espaco público, do território urbano (o que comprovamos nas últimas décadas, com a degradação do especo urbano nas grandes metrópoles).

Como salientamos, logo na abertura de The Full Monty, é apresentado Sheffield como a cidade do aço, em torno do qual floresce consumo e lazer. São os tempos áureos do fordismo-keynesianismo. O vídeo expõe o passado glorioso de um padrão de desenvolvimento industrial baseado no emprego por toda a vida que marcou a perspectiva de vida de muitas gerações de operários e empregados.

Ora, a partir da crise capitalista de meados da década de 1970 e da nova divisão internacional do trabalho, das políticas neoliberais de Margaret Thatcher e John Major, e da reestruturação produtiva na indústria do aço, implode tal padrão de desenvolvimento industrial. A deslocalização industrial atinge Sheffield no decorrer da década de 1980 (o filme se passa na primeira metade da década de 1990, ápice da crise social de Sheffield, às vésperas da eleição do trabalhista Tony Blair). Sheffield perde sua industria do aço que migra para outras paragens em busca de melhores custos de produção. É a lógica do capital global que atingiu uma série de clusters industriais históricos na velha Inglaterra, paises capitalista primordial, berço do industrialismo ocidental.


Cidade Nua

Através de seus planos abertos, Cattaneo também promove o striptease de Sheffield, que nos aparece, em algumas tomadas, com sua topografia ondulada e verdejante. O verde se contrasta com o cinzento das instalações desativadas. Não são poucas as tomadas com placas de Sold (vende-se), expressando o bombardeio neoliberal que atingiu Sheffield.

Na verdade, estamos diante de perdedores da sociedade neoliberal que se constitui na Inglaterra de Thatcher e que prossegue inclusive sob o governo neotrabalhista de Blair. Tal nova configuração social do mundo do trabalho do trabalho possui rebatimentos na paisagem urbanística, através destas áreas industriais desativadas, de homens e mulheres perambulando, circulando em busca de emprego, “caçando” bicos, freqüentando espaços públicos precários. É o que preendemos no cenário urbano-social de Sheffield.

3. Crise da Família e Crise de Si Mesmo

O desemprego é uma forma aguda de desefetivação pessoal. É o traço candente de dessocialização na sociedade do trabalho estranhado. A partir desta situação-limite do trabalho vivo, implode-se os vários laços sociais precários do trabalhados consigo mesmo e com os outros. É o que apreendemos em The Full Monty.

O personagem principal é Gaz, operário desempregados, despossuido não apenas de emprego, mas de sua família – ele é separado. É a síntese suprema da despossessão pessoal. Gaz possui um filho pré-adolescente, que mora com sua ex-mulher. Ele busca manter laços com o filho. Ou seja, busca se afirmar no papel de pai, tanto que sua idéia de montar o show de stripteaser decorre da necessidade que tem de fazer algum dinheiro para não perder a guarda do filho. É o drama pessoal singular de Gaz que constitui o mote narrativo do filme. Tal como na era industrial, Gaz é movido pela necessidade de dinheiro, agora para continuar preservando o único laço pessoal que o liga ao passado e a si mesmo.

A família é um importante nexo sócio-reprodutivo do processo civilizatório. Na verdade, a crise da família é um traço estrutural da crise de sócio-metabolismo do capital. Expressa a crise de uma sociabilidade primordial, devassada pela lógica da mercadoria e pelas formas de sociabilidade estranhada que devassam as relações de casal. É por isso que, em última instância, o que The Full Monty expõe, além da crise do emprego, é a crise de sociabilidade – onde a família e a relação de casal – é seu eixo privilegiado.

Por exemplo, uma das canções da trilha sonora do filme se intitula We are the family, do grupo musical Sister Sledge. Ela traduz em sua letra singela, a importância da família, inclusive no sentido amplo, de comunidade humano-genérica, para o progresso pessoal, ou seja, é através das relações familiares que podemos ter fé em nós mesmos e nas coisas que fazemos. Como diz a canção: “Have faith in you and the things you do/You won't go wrong/This is our family Jewel”).

Na verdade. o mundo do capital tende a dissolver as comunidades tradicionais, onde o nexo familiar possui uma função sócio-estrutural. O que vigora hoje é o mercado e o fetichismo da mercadoria (eis um dos traços destacados por Jurgen Habermas como sendo a colonização do mundo da vida pelo mundo sistêmico). O apelo à família na sociedade burguesa tende a possuir, deste modo, um sentido problemático, em si e para si, ocultando, de certo modo, a impossibilidade de seu pleno desenvolvimento.

Por outro lado, o sentido de família, na etapa tardia de desenvolvimento da civilização do capital, só é plenamente legítimo se assumir uma dimensão ampla, de comunidade humano-genérica, sob pena de se reduzir a núcleos de particularismos estranhados. Entretanto, a idéia de comunidade humano-genérica só é capaz de se desenvolver e se consolidar, por outro lado, numa ordem social cujos critérios e objetivos sejam humanamente satisfatórios, opostos à perseguição cega da auto-expansão do capital.


Crise de si mesmo

Um outro exemplo de desestruturação pessoal que atinge o nexo familiar – e nesse caso, a relação de casal - é Dave, outro operário desempregado que vive uma crise conjugal, diante do vazio de desejo, que traduz, no plano inconsciente, um deslocamento intimo de seu papel de provedor. Dave está desempregado, mas sua mulher Jean trabalha no supermercado. Tal situação objetiva – sua desocupação e incapacidade de cumprir o papel de provedor que a sociedade burguesa lhe atribui, mescla-se com complexos inconscientes que atingem sua auto-estima (Dave não tem fé em si mesmo e nas coisas que faz – como diz a canção). Sua relação com seu corpo é problemática, pois ele se considera gordo e fora de forma. De fato, seu corpo expõe sua subjetividade convulsionada por uma implicação social estranhada. Nele, em Dave, o corpo fala.

Portanto, um dos temas candentes em The Full Monty é a negação de um traço típico da modernidade fordista-keynesiana do capital – os homens como provedores da família. Em The Full Monty, as mulheres trabalham, os homens não. Elas se impõem, como agentes precários do novo mundo pós-industrial, deslocando a identidade masculina, do macho provedor da era fordista. E, como já salientamos, além desta determinação particular, existe uma singularidade no drama pessoal de Dave: ele possui uma auto-imagem negativa, que iria se manifestar quando é envolvido na tarefa de pertencer ao grupo de stripteaser. Ou seja, sua relação com o seu corpo – e portanto, consigo mesmo e com a própria mulher, Jean - é problemática. Eis outro tema candente de The Full Monty: a relação dos personagens com seu corpo, como sendo parte intrínseca de sua própria subjetividade pessoal. Na verdade, o corpo é parte dela.

Além de Gaz e Dave, a convulsão familiar ou da relação de casal atinge Gerald, outro trabalhador industrial desempregado, ex-gerente que oculta seu drama pessoal – o desemprego – da própria mulher. Mais adiante, ao tomar conhecimento da mentira, a mulher o expulsa de casa. O drama familiar de Gerald expõe o tipo de relação de casal que tende a permear a sociedade burguesa. No casal pequeno-burguês, Gerald é um típico gerente, persona do capital, que exerce poder de mando sobre os demais operários industriais - tal tipo de relação de casal é muito mais fetichizado.


Falta de comunicação

A pequena-burguesia tende a ser incorporar com mais intensidade os valores fetichizados da ordem do capital. Assim, a relação de Gerald com a mulher tende a ser mediada mais pelas coisas do que pelo afeto verdadeiro. Tanto que, na situação de ruptura provocada pelo desemprego, faltou a ação comunicativa. É claro que Gerald pode não ter tido coragem para contar à mulher que perdeu o emprego. Mas sua falta de coragem oculta um tipo de relação conjugal mediada por valores-fetiches (por exemplo, o primado do macho-provedor, capaz de suprir com mercadorias a relação conjugal). Gerald tem medo de perder, no lar, seu status de gênero que domina. Na verdade, o fetichismo da mercadoria tende a precarizar os nexos comunicativos dos agentes sociais. É o que explica a dificuldade de Gerald – personagem típico deste drama pequeno-burguês – em relatar a sua mulher o flagelo do desemprego.

É interessante que, o movimento do capital, por um lado, tende a desmanchar tudo o que é sólido. Eis um traço do processo de modernização. Por outro lado, o sócio-metabolismo do capital tende a nega/obstruir um dos principais referentes constitutivos da subjetividade do trabalho vivo – ou seja, a capacidade de comunicação/expressão e, portanto, de linguagem da tragédia humana. Tal aguda contradição que dilacera o sujeito, homens e mulheres implicados em relações sócio-afetivas - abre um campo problemático de alta intensidade nas relações pessoais.

Jean-Paul Sartre destacava que o importante é saber o que vamos fazer com aquilo que o capital está fazendo de nós. E diremos mais: o importante também é saber como vamos dizer aquilo que o capital está fazendo de nós. O problema da linguagem e da comunicação, ou do relato claro e transparente da tragédia humana na civilização do capital, é um dos problemas prementes do nosso tempo. Deste modo, o que percebemos em The Full Monty, são homens incapacitados (ou castrados, no sentido freudiano), buscando traduzir em palavras ou gestos corporais, sua tragédia humano-social. Ou seja, existe uma síncope lingüística em The Full Monty: diante da impossibilidade da palavra, do discurso lógico-racional, busca-se expressar a condição humana através da arte, no caso, um show de stripteaser (que, como já salientamos, possui um claro sentido metafórico).

É curioso que outra canção da trilha sonora, Land of 1000 Dances, de Wilson Pickett, traduza, por exemplo, tal ânsia de comunicação, isto é, tal busca alucinada de dizer algo. Talvez a linguagem possível para traduzir o furor angustiante da modernidade do capital, naquelas determinadas condições histórico-culturais, tem sido o rock’and roll (a balada de Pickett nos diz, com insistência, em seu refrão: I need somebody to help me say it one time” e reitera: “Aah help me/Aah help me/Aah help me/Aah help me).

Gaz, Dave e Gerald freqüentam o Centro de Emprego, local criado pelo governo inglês para abrigar desempregados. É um espaço criado pela assistência social. É neste local que ocorre um diálogo típico que expõe o drama social candente. É nele que se expõe os conflitos pessoais e intra-clases (Gerald parece não se “misturar” com os demais, apesar de que, após se integrar ao grupo, por interesses próprios, “fazer mais dinheiro”, se aproxima deles como pessoas humanas).

Gaz e Dave salvam Lompe de cometer suicídio. A partir daí cria-se um laço de amizade. É a solidariedade possível no universo social de The Full Monty. Ele passa a participar do grupo de stripteaser. Lompe é um jovem solteiro, que cuida da mãe doente, instrumentista musical, sem muitas perspectivas de emprego. Ele toca na banda de musica da fábrica, usina de aço onde trabalhavam Gaz e Dave e que ainda parece estar na ativa. Como dizem eles: a única coisa que funciona. Mas Lomper vive um crise existencial aguda, crise de si próprio, tal como os demais, pois tal emprego precário e seus dramas íntimos o conduzem a cometer, de forma desastrada, suicídio. Mais adiante, ele iria se revelar homossexual.


4. Corpo em Transe e Corrosão da Personalidade

Horse é personagem negro, desempregado, ex-operário, sem perspectiva que se inclui no grupo e cujo drama é buscar confirmar o que sua alcunha de horse parece sugerir. Ele teme frustrar o público, parecendo ser o que não é.

Apesar de estarem nus pelo desemprego, passam a ter outros medos e ansiedades decorrentes do desnudamento físico. Uma parte do drama pessoal de cada um é o medo de como aparecer nu diante do público de mulheres. Possui um sentido metafísico, pois seria expor suas fragilidades para o outro sexo. É um rompimento com um padrão de gênero fordista.

Outro exemplo, já salientado, é a relação de Dave com o seu corpo – e, portanto, consigo mesmo e com a própria mulher, Jean - é problemática. Eis outro tema candente de The Full Monty: a relação dos personagens com seu corpo, como sendo parte intrínseca de sua própria subjetividade pessoal. Na verdade, o corpo é parte da subjetividade do trabalho vivo.


Corpo-mercadoria

Na sociedade da mercadoria, onde a força de trabalho é mercadoria, o corpo, como dimensão ineliminável do trabalho vivo como força de trabalho, tende a aparecer, deste modo, como mercadoria. O corpo – e não a personalidade – do homem e da mulher é que tendem a serem ex-postos, de imediato, no mundo-mercadoria.

No mundo do capitalismo-stripteaser o que vale é a aparência do corpo-mercadoria. Ao decidirem montar o show de strip-tease, os homens desempregados incorporam uma condição de exposição própria das mulheres, sempre tratadas como objeto de desejo e de fantasia. Em The Full Monty, este é um sintoma da precarização da identidade masculina. Por exemplo, num diálogo na casa de Gerald, preparando-se para o show de strip-tease, Gaz, Lomper, Horse, e Guy, temem frustrar o público de mulheres. Na verdade, eles estão inseguros com seus corpos. Dizem: “Só espero que sejam condescendentes conosco”. E observam: “Na sexta-feira, 400 mulheres vão estar falando: “Ele é muito gordo. Muito velho...”. Enfim, vivem um drama tipicamente feminino.

Dave observa: “Eu não disse nada sobre sua personalidade. Ela provavelmente é muito legal. Elas não vão notar nada sobre a sua personalidade.” No capitalismo global, a lógica mercantil – e a lei do valor – tendem a equalizar, mais do que nunca, a condição de gênero no mundo das mercadorias. Homens e mulheres se encontram como meras imagens na imensa coleção de mercadorias do mundo burguês. Ao serem obrigados a serem empreendedores de serviços, tornam-se vendedores de mercadorias e de si mesmos. É o que se exige na “sociedade do trabalho imaterial” – todos devem tornar-se produtores de si mesmo, buscando cultivar o corpo como aparência de si. Na verdade, o fetichismo da mercadoria in-corpora-se – torna-se corpo, deslocando/corroendo a personalidade, que se desvaloriza. “Pro inferno com sua personalidade!” – exclama Dave.

5. Precário Mundo do Trabalho

O desemprego é uma forma espúria de organização do tempo de vida no modo de produção capitalista. Embora pareçam ter todo tempo do mundo, desempregados não possuem nenhum tempo de vida. Estão imersos num tipo de tempo estranhado, tempo despossuido, tempo vazio, que os atinge como sofrimento psíquico. Sua identidade social é dilacerada, pois os desempregados ainda pertencem a uma sociedade do emprego capitalista, do trabalho estranhado.

Eis a suprema contradição que os atinge: existem como personas do capital mas são rejeitados pela sociedade do capital. Muitas vezes, a culpa tende a se incidir sobre a vítima de desemprego. A atitude do personagem Gerald é sintomática. A própria ideologia da empregabilidade possui, em si, tal mecanismo de culpabilização da vitima: culpa-se a qualificação profissional do trabalhador pela sua desocupação.

Um detalhe importante em The Full Monty é que os personagens principais, no caso, Gus e Dave, ex-operários metalúrgicos, se recusam a ter empregos precários, oferecidos pelas suas mulheres. Representam, de certo modo, uma rejeição à precarização advinda de um estrato operário mais qualificado, agora desempregado. Pelas observações de Dave, por exemplo, ele parece ser um operário-soldador metalúrgico altamente qualificado. Aceitar um emprego precário, sem conteúdo, sem vinculo com atividade profissional, sem perspectiva de carreira, é outro elemento de sofrimento psíquico (em The Full Monty é possível identificar não apenas o desemprego como fonte de sofrimento psíquico, mas a perspectiva de emprego precário).

Mas cabe salientar que esta é uma reação típica de um estrato geracional, de transição, tal como Carlitos em “Tempos Modernos”. Dave e Gus pertencem ao mundo fordista com todo seu legado de experiências de vida e de carreira. Eles se sentem estranhos no mundo pós-fordista, da sociedade de servi;cós, do precário mundo do trabalho – é o que o filme parece sugerir. Por isso, são personagens trágicos. Inclusive, The Full Monty parece ser The Modern Times do capitalismo neoliberal – é claro, sem Charles Chaplin e a mensagem de esperança na cena final.

No final, Gerald consegue emprego, por ser mais qualificado. Parece ser uma mensagem com tino ideológico. Afinal, Gerald representou o personagem mais qualificado, ciente de buscar empregabilidade e de não lamentar seu destino de sucata, além de ser aquele capaz de conduzir, apesar de desempregado, Gerald parecia ser o gerente dos demais ex-operários. Mesmo Gus tendo a idéia do empreendimento, coube a Gerald organizar a troupe de dançarinos-strippers. Talvez sugira que, mesmo entre desempregados, a clivagem de qualificação (e de competência) se perpetua. O que se exige, deste modo, a busca de empregabilidade através do desenvolvimento de novas competências.



Empregabilidade

O prolongamento das disposições estruturais do capital mesmo em situações de desemprego é expresso em outros detalhes do filme. Para constituir a equipe de strippers de The Full Monty, Gaz, Dave, Lomper e Geral, fazem entrevistas com desempregados. Tal como gerentes de empresa, eles entrevistam desempregados. Tentam montar seu empreendimento. É a partir daí que Horse e Guy passam a compor o time de personagens centrais de The Full Monty.

©Giovanni Alves (2005)

(ATENÇÃO: Esta análise de filme é parte do Projeto de Extensão Tela Crítica 2005)