“O Tango e o Assassino” de Robert Duvall

(1981)

 


Crime e Punição

No filme O Tango e o Assassino, o autor do roteiro Robert Duvall, também diretor e ator principal, foge dos estereótipos do filme de "gangster" e nos apresenta o assassino de aluguel da de¬linquência contemporânea. O personagem principal é um cidadão comum, morador de uma comunidade suburbana de cidade grande, no caso, Nova York, onde mora com simplicidade e tem fortes laços sociais. Fraterno e alegre, convive de modo camarada com todos, inclusive com o policial do bairro, tratando-se um ao outro pelo primeiro nome. Sem estar casado, pois a vida pregressa não lhe permitira, tem uma família tardia e é apaixonado pela filha adotiva de dez anos. Nem rico nem miserável, sua atividade parece não ser objeto de curiosidade de conhecidos e vizinhos, embora presumida pelos laços antigos que mantém com um membro ativo da máfia, dono de um bar e salão de danças frequentado por homens, mulheres e crianças do bairro. Como todo homem simples, tem seus gostos: o seu é a dança de salão. Enfim, um homem socialmente incluído.

Mais da metade da história de O Tango e o Assassino se passa em Buenos Aires para onde Edward, o personagem de Duvall, vai com a missão de matar um velho general aposentado que servira à ditadura militar e à repressão argentina. Fica claro que a encomenda da morte fora feita a um dos braços internacionais da Máfia americana, mas não fica claro quais organizações estão por traz da encomenda, aparecendo "flash" que sugerem o envolvimento de serviços secretos do governo (ou governos?), cuja ordem era "apagar" não só o general, mas todos os elos da operação, logo que ela findasse, entre eles, o interlocutor mafioso local e o próprio assassino. Uma queima literal de arquivos, que não se completa de todo, pois o último sobrevive, graças à sua competência técnica profissional.

A "operação" que deveria ser executada em três dias, precisou de quinze, porque o general escalado para morrer sofrera, literalmente, uma queda do cavalo que montava em fazenda de sua propriedade. As circunstâncias — sempre elas! - fizeram com que o personagem de Duvall, amante da dança de salão, a contragosto, tivesse mais tempo para assenhorear-se melhor das condições materiais de sua missão, antecipar-se às armadilhas e encontrar uma nova paixão, o tango. O que seria um contratempo para o programa familiar do assassino, que era voltar a tempo de estar presente no aniversário da filha, acabou tendo dupla vantagem: a de conhecer o tango de salão e o de salvar a própria vida.

Ao final, ele retorna para o seu país, sua comunidade, seus amigos e sua família, com um presente para a filha amada: um par de botas argentinas, não militar, mas de equitação. Uma parábola? Certamente e sobre muitas coisas.

 



Edward, o assassino, de origem anglo-saxônica, é um quadro da "Cosa Nostra", o braço mais presente no território americano da Máfia que hoje, mais que antes, se envolve em grandes e pequenos empreendimentos lícitos e ilícitos. No filme, fica mais ou menos explícito seu envolvimento em pequenos negócios, como hotéis, bares, salões de dança, de ginástica, de cultura física e de beleza, ete, onde circulam os personagens do filme, tanto cm Nova York, como em Buenos Aires.

A internacionalização das atividades criminosas e a participação de órgãos do Estado são mostradas na articulação de um crime, cuja teia é tecida nos dois continentes e cobre os dois países em foco. As organi¬zações mandantes têm o cuidado em não ferir suscetibilidades nacio¬nais, ainda que às custas da impunidade de múltiplos assassinatos.

A tese é clara: afetos, desafetos, paixão e compaixão são de foro íntimo, privado, e não devem prevalecer sobre os negócios, mesmo que esses impliquem em assassínios premeditados; o domínio é das políticas de interesses materiais das organizações, empresas e do Estado. Aí, qualquer que seja a vítima e o autor, o crime, ainda que envolva violência, perde o caráter intersubjetivo e de vindita e ganha impessoalidade; é uma encomenda a ser levada a cabo por quem tem capacidade técnica para satisfazé-la; significa custos para os demandantes e risco de vida para os demandados, sejam intermediários ou autores diretos.

Edward não é um perverso. Não tem prazer em matar. O que faz é de ofício e ele se orgulha de exercê-lo bem. É um matador diferenciado, racional, mas não um homem frio, muito menos um marginalizado. Ao contrário, é um homem inserido socialmente na comunidade e tem uma família estável; é um instrumento ímpar da organização à qual pertence, por ser altamente profissional e confiável, "dos melhores", como diz seu empreiteiro mafioso, muito útil para os negócios ilícitos que envolvam execuções e que hoje, mais que antes, são comuns e têm como mentores grupos familiares, empresas, corporações e o Estado contemporâneo que, com pouco ou nenhum escrúpulo, manipulam mandantes, intermediários e executores de crimes de vários matizes.

 

 



O filme é um discurso sobre a atual criminalidade. Ainda clandestina, ela tende a deixar o subterrâneo e passar à luz do sol, diluindo-se no cotidiano da vida das pessoas comuns. Não é um discurso cínico, mas cético, sobre o presente e futuro da sociedade global. Afinal, o simpático personagem de Duvall, que gosta dos amigos, da família e de tango, é um assassino de profissão.

O tango, música e dança a dois, que percorre todo o tempo latino do filme, parece redimir o personagem de Duvall e dar-lhe feição humana, mas nunca a de herói ou justiceiro, papel que ele recusa a si e aos outros. Ele é apenas um homem que tem uma missão profissional a cumprir, sem raiva nem compaixão, tal qual faziam o carrasco dos soberanos e senhores da Idade Média e o operador da guilhotina dos governos da revolução de 1789, assim como os soldados dos pelotões de fuzilamento e os agentes penitenciários do Estado Moderno, que acionam a chave da cadeira elétrica ou injetam drogas letais. Em qualquer dessas épocas e circunstâncias, o Poder se dá ao direito de matar; e quem mata são pessoas comuns, que o faz por profissão e dever. Com quem estava o poder na Idade Média? Com quem passou a estar após a revolução industrial e burguesa que instaurou o Estado Moderno? Com quem está hoje?

Edward não entende muito dessas coisas e não tem interesse em conhecê-las; é apenas um matador profissional que age oculto. Participara de outros episódios parecidos em países da América Latina, envolvendo órgãos de segurança e Máfia. Pensara que a nova empreitada era de ordem familiar, um mero acerto de contas. Não era só isso. O que era e quase lhe encerra a vida e a carreira, ficou sem saber.

Apesar de precisar matar mais pessoas que imaginara, voltou satisfeito pelo dever cumprido e revigorado pelo tango que, melodramaticamente, resume o encontro de um país consigo mesmo. Como diz a simpática e falante senhora argentina: "Tango é tudo: é amor, desejo, ternura e ódio; quero morrer dançando tango".

 



Em O Tango e o Assassino, os quatro assassinatos cometidos, todos a sangue frio, três dos quais perpetrados por Edward, ficaram impunes, como tantos outros que ele praticara. Afinal, a quem interessa punir um simples carrasco? Mas qual a explicação dos seus atos clandestinos a par de uma vida normal na sua comunidade? Qual o sentido das execuções no varejo e no atacado da criminalidade contemporânea enquanto fenómeno social?

J. Maillard (em “Crimes e Leis”) magistrado francês, diz que o crime deixou a marginalidade, onde fora colocado nos séculos precedentes e está se integrando à sociedade; ainda na ilegalidade, o grande crime não é visível, mas sua banalização leva a supor que está em vias de institucionalização. Como ainda é ilegal e pouco aparente, o que é crime tornou-se imprevisível e alheio à penalidade tradicional, não se identificando com nada, nem com um ato, nem com uma vontade, nem com um comportamento, nem com uma categoria social. Ou seja, a criminalidade contemporânea maior é cercada de anomias. A delinquência preponderante nos dias de hoje, segundo o autor, não como fato isolado, mas como fenómeno social, carece de elementos objetivos, pois sua causalidade é exterior ao ato reconhecível.

O filme de Duvall é didático: os quatro assassinatos, crimes explícitos e sujeitos à condenação; têm elementos objetivos, causais e imediatos, como são as balas e as vítimas. Os espectadores sabem dessas autorias, porque o filme mostra que três foram cometidos por Edward, a mando da Máfia, e um quarto, pela polícia da Argentina, após tortura. A teia causal permanece, porém, oculta. O que fica bastante evidente é o desembaraço e a impunidade com que agem as organizações criminosas dentro do aparelho do Estado e da sociedade globalizada.

 

 



Diz Maillard: "Enquanto o crime (grande crime) se torna invisível e a criminalidade sutil, o criminoso (o grande criminoso) passa da marginalidade à racionalidade" (...). O criminoso envolvido em atividades ilícitas, tornou-se instrumento desta racionalidade oculta e protegida. Cada vez mais, ele pertence à sociedade comum, pela qual a grande criminalidade mobiliza, energicamente, conhecimen¬tos e meios técnicos avançados e recursos financeiros e jurídicos somente disponíveis por grandes organizações envolvidas.

Dando sequência ao seu raciocínio, esse autor assinala que a Criminologia se revela incapaz de discernir o criminoso contemporâneo porque continua presa à concepção antiga de que o crime identifica seu autor. Hoje, porém, o autor não tem como motivação o crime em si, mas o seu resultado. Como fenómeno social, o crime despe-se de emoção, de ser ato de um impulso imediato, de vingança, desforra ou necessidade da pessoa, para ser ato da razão.

O homem racional que a sociedade moderna concebia como figura oposta ao delinquente é, justamente, o delinquente de hoje, como os mandantes dos assassinatos de O Tango e o Assassino, que Edward simboliza pela perfeição patética com que os executa, sem raiva, paixão ou compaixão.

Maillard, um estudioso da criminalidade na França, defende a tese de que, à criminalidade anterior, está se sobrepondo uma ou¬tra que esgarça o tecido social e preenche seus interstícios, se apos¬sando das instituições formais e informais da administração privada e, agora, da administração pública. Diferente da criminalidade antiga, posta à margem da sociedade "normal", a atual transfigurou-se e está transfigurando todo o corpo social e se normaliza, tangida pela globalização e pela supremacia dos princípios do mercado.

Ele admite que a criminalidade, ao ser tirada do submundo e colocada no mundo "normal", ainda é uma realidade pouco conhecida, mesmo na França, que tem uma tradição de registro oficial de crimes desde 1825, cujas fontes são os arquivos policiais e os processos na justiça criminal. Mas esta é a criminalidade aparente, que está longe de ser a real que, por diferentes motivos, não chega ao conhecimento do Estado. Os crimes contra o fisco, as fraudes comerciais e bancárias, os cheques sem fundo, as inobservâncias das leis e normas de proteção ao trabalho e ao meio ambiente, o contrabando, etc, dificilmente chegam à polícia ou à Justiça.

Tomando como base o ano de 1950 e findando em 1992, Maillard mostra, em gráfico, a evolução da taxa de criminalidade (número de crimes por mil habitantes) por furtos, atentados à propriedade e à pessoa. Os atentados à pessoa aparecem com taxa muito baixa e praticamente estável por todo o período, enquanto as taxas de furto e principalmente dos atentados à propriedade subiram mais que todas, sobretudo depois de 1985.

Apesar da França ter uma população estável, o número de crimes neste país saltou de 575 mil em 1950 para 3 milhões e 875 mil em 1992. Esses são dados da criminalidade aparente. A oculta e a não revelada permanecem desconhecidas. Apesar da sub-notificação e da imprecisão, para as quais o autor chama atenção, vale destacar nessas estatísticas a queda dos crimes e delitos contra a pessoa (homicídios e atos de violência e abusos sexuais) que passa de 10% para 4%, enquanto o número de crimes contra a propriedade explode, passando de 187 mil (roubos e receptações) para 2 mi¬lhões e 600 mil (1992). Somente o roubo de automóveis cresceu no período 148 vezes.

Ele aponta para o aparecimento na França e em outros países europeus e fora da Europa, a partir dos anos 1970, de novas formas de delitos ligados ao progresso tecnológico, como as fraudes dos mei¬os de pagamento, clonagem e falsificação de cartões, pirataria informatizada para desviar depósitos bancários, manipulações nas bolsas de valores e financeiras, falsificações de marcas, espionagem industrial, pirataria e contrabando aéreos, terrestres e por mar, tráficos de seres humanos e de órgãos, prostituição internacionalizada, trabalho clandestino e, sobretudo, o tráfico de drogas lícitas e ilícitas, em particular da cocaína, heroína e maconha, que tem por trás organi¬zações poderosas legais e clandestinas, entre elas as Máfias. E comenta:

"O assassínio cometido por uma organização mafwsa é sempre um assassínio e, se o direito nacional (como é o caso em França) não previu a incriminação específica dos crimes mafiosos, o instrumento estatístico não conhecerá sequer sua existência".

Ou seja, o assassinato mafioso cai na vala dos homicídios comuns. Ele acrescenta que uma das razões da obscuridade dos delitos, principalmente os de ordem económica, é o interesse das vítimas em mante-los ocultos, sejam elas pessoas físicas ou jurídicas. Muitas não os revelam para poder transacionar com seus mentores e fazer arranjos privados. Assim, acontece com os interesses envolvendo montantes formidáveis do grande capital e do capital financeiro, com seus paraísos fiscais e sigilos bancários, visando a "lavagem" ou "branqueamento" do dinheiro ilícito provenien¬te de negócios escusos, roubos, desvio de fundos públicos, tráfico de influência e de drogas.



Justificando a defesa que faz do fim do programa antiãrogas dos EUA, Milton Freidmau eira estudo recente da Universida¬de de Harvard, segundo o qual os EUA economizariam 14 bilhões de dólares por ano se a maconha fosse legalizada. Desse montante, quase oito bilhões são destinados ao policiamento e seis a impostos (FSP, 26.06.05). Os negócios ilegais da Máfia americana (a Cosa Nostra), com tráfico de. drogas, empréstímos, furtos, proxetismo e jogo clandestino teriam atingido 51 bilhões de dólares em 1986, segundo o Instituto americano Whanon. A economia subterrânea do conjunto de tráficos criminosos corresponderia a 10% dos PIB dos países do globo.

Segundo Maillard, esses sistemas mafiosos preenchem uma função de mediação entre o poder político e um grupo social seleto e minoritário, que têm em comum serem produtos de uma sociedade que se segmentou, à qual servem para, precisamente, dissimular ou superar esta fragmentação. Traduz a incapacidade do Estado con¬temporâneo de organizar a existência e necessidades das populações ou, simplesmente, faz por ignorá-las; incapacidade e indiferença que funcionam como se o Estado delegasse funções suas às organizações criminosas que assim ganham legitimidade pelos serviços e assistência social que prestam às comunidades e, também, aos grupos que emergem para servi-las.

Tratar-se-ia de um processo que corre paralelo à reestruturaçâo produtiva e do trabalho dos últimos quarenta anos e vem transformando as relações sociais, económicas, políticas e geo-estratégicas, a ponto de caber a afirmação que a economia legal e a ilegal são hoje indissociáveis. Se esta afirmação for verdadeira, será difícil compreender o mundo atual se a economia do crime e a criminalidade forem desconsideradas. Uma criminalidade irreprimível, tanto quanto o é o mercado do crime, imbricados que estão na vida civil comum e no mercado legal.

Hoje, somente a delinquência de rua ou doméstica, delinquência menor, praticada pelos pobres, é reprimida. São os furtos de supermercados e lojas, furtos para uso de automóveis, furtos de coisas de dentro dos automóveis, assaltos no trânsito, arrombamentos, se¬questros relâmpagos para saque em caixas eletrônicos, consumo, tráfico e venda de drogas em "pontos". Uma delinquência, como se percebe, pequena, instável, quase solitária, periférica e de alto risco. Seus autores, invariavelmente jovens e pobres, acabam na cadeia ou no necrotério.

Não é o caso de um segundo tipo de delinquência mais organizada, protegida, coletivizada, praticada em um meio social mais fechado, privativo aos próprios membros do gru¬po, que leva ao enriquecimento de alguns por tráfico de influência e de drogas e por outras atividades ilícitas. Uma delinquência de baixo risco, de transição, típica da classe média.

O terceiro tipo é a delinquência financeira, a chamada delinquência dos "colarinhos brancos" que é mais organizada, seleta e de maior vulto. Entre seus au¬tores estão donos e diretores de empresas, administradores públicos e políticos corruptos instalados de forma a cometê-la com impunidade.

A tipologia dos crimes e dos criminosos de Maillard corresponde ao nível social dos seus agentes: os delinquentes pobres, da classe média e da alta burguesia financeira, empresarial e seus representantes no aparelho do Estado: os políticos e administradores públicos corruptos.

O que mais preocupa Maillard não é a diversidade dos crimes e sua expansão, mas a amplitude e a verticalidade, antes inexistentes, das atividades criminosas na sociedade, que o Estado pouco sabe e, menos ainda, faz, provocando um clima de insegurança, sensação de impunidade e crise do Judiciário. Ele explicita suas preocupações com números: Na França, em 1975, o judiciário condenou 58% de autores de crimes. Em 1992, apenas 33%. E indaga: se o número de condenações caiu, por que a superlotação dos presídios na França e nos demais países da União Europeia? E responde: porque, em que pese a adoção, há um bom tempo, da punição sem reclusão, o Judiciário está encarcerando mais e mais encarcera, uma vez que o número de delitos mantém seu ímpeto de crescimento, principalmen¬te nos últimos anos da década de 80 e na década seguinte.

Maillard interpreta a explosão da demanda do Judiciário e a superlotação dos presídios, como um fenómeno global determinado pela falência do paradigma da punição utilitária, que tem por base o contrato social. Um contrato social significa a existência de um corpo de leis que estabelece o que o indivíduo pode ou não pode fazer na sociedade, leis às quais todos estariam igualmente sujeitos. Pune-se o desobediente porque ele fere o contrato e prejudica os outros. Esta punição se dá segundo a gravidade do delito, presumindo-se a utilidade da pena para corrigir o infrator em beneficio da sociedade. O infrator tem consciência do que fez e sabe ter que assumir as consequências da infração cometida. O delito é, portanto, previsível pela lei e também para quem o pratica. Assim, segundo a doutrina utilitarista, para o indivíduo, existem as leis e normas do Direito Civil, para o cidadão, as leis e normas do Direito Público, para o criminoso, as leis e normas do Direito Penal.

Tais princípios de filosofia do Direito, prevalentes a partir de meados do século XVIII, foram consolidados no curso da revolução burguesa, atravessando seus ciclos de desenvolvimento, crises, as mudanças da sociedade e consolidação do Estado Moderno. A Justiça de antes, pautada no sagrado e no poder do soberano, cedeu lugar à Justiça regrada pelos homens. Com isto, o crime humanizou-se, deixou de ser um mal indistinto, julgado ao acaso, para ser considerado um procedimento individual incorreto, contrário à solidariedade que constitui o objeto do contrato social. E aí que o Direito Penal adquire a função de preservar o bem público, através da graduação da pena. É a partir desses conceitos, inspirados em Cesare Beccaria, entre outros filósofos, que nasce a moderna Criminologia.

Esta Criminologia a qual nos referimos, procura compreender o fenómeno criminoso e agir sobre ele de modo profilático, considerando-o um fenómeno anormal, portanto, extrínseco e à margem da sociedade normal, como são, também, o vício e a pobreza. A sociedade liberal, burguesa e capitalista não se resigna com o crime: toma-o como fenómeno real, mas anormal. Procura contê-lo e reduzi-lo, marginalizando seus autores possíveis, no caso os pobres, e seus autores notórios, os criminosos. Aos primeiros, restringe os passos, colocando-os em cortiços, subúrbios e favelas; aos últimos, coloca em cadeias e presídios.

Crime e criminoso, em si, não são objetos de reflexão filosófica ou política, porque não são, senão, a face negativa que faz lembrar que o homem não chegou à perfeição. Serão, apenas, objetos de práticas repressivas e filantrópicas destinadas a reabsorvê-los para esbater, diminuir a distância entre a realidade da sociedade e a imagem que ela faz de si.
XXII. Por ser o crime um objeto marginal à sociedade, a Crimi¬nologia, como disciplina científica, ficou como e onde nasceu, na subalternidade, levando o crime, o criminoso e a criminalidade a adquirir um estatuto irrelevante, o que permitiu à sociedade burguesa e ao Estado Moderno burguês isolar o fenómeno social da criminalidade para depois reprimi-la, economizando os meios para conhecê-la e controlá-la.

No século XVIII e XIX, isolar o crime era a profilaxia possível e desejada pela sociedade e pelo Estado liberal. No século XX, na sociedade e Estado de bem-estar social, a ação não foi apenas profilática, no sentido de isolar para controlar, mas, também, terápêutica, cuidando do criminoso, tentando recuperá-lo, através da pena e da educação para o convívio social e o mundo da produção.

Nas duas épocas, o conceito da excentricidade do crime e o princípio utilitarista da pena permaneceram. No fundo, o objeto continuou o mesmo: enquadrar o fenómeno criminoso em um modo de gestão. E como vício, crime e pobreza constituem uma trilogia, cujas raízes se entrelaçam, o esforço se fez no sentido de domesticar a classe pobre e incluí-la como força de trabalho industrial ativa ou de reserva.

O Direito Penal do Estado burguês teve um papel importante no controle da força de trabalho, ao criminalizar o não trabalho, instituindo uma legislação que passou a regrar o processo mi¬gratório do campo para a cidade e a circulação e permanência do pobre dentro da cidade. Instituída no século XVIII, a cartei¬ra de trabalho é a expressão material desse controle, funcionando até os dias atuais como um passaporte interno. Quem não tiver carteira de trabalho, ou a tiver sem a assinatura de um empregador, é considerado vadio e sujeito à prisão. A partir de então (Maillard, op. Cit.) nasceu toda a concepção repressiva ao não empregado, ao desempregado, ao mendigo e morador de rua, alimentando a violência do Estado contra os pobres com base no Código Penal, principalmente nos países da periferia do sistema capitalista, marcados pela desigualdade de renda e de direitos.

No caso da criminalidade tradicional, quase invariavelmente praticada pelos pobres que, nos países periféricos, constituem a imensa maioria da população, a prisão e a filantropia têm os mesmos objetivos: de dar um sentido à marginalidade, absorvendo-a, de sorte a fazê-la mao-de-obra penal útil ou mão-de-obra rentável. O errante de ontem, sujeito à prisão, hoje passou à condição de assistido e educando que circula entre os balcões de emprego oferecidos pelo Estado e por organizações sociais. Apesar dos textos antigos dos códigos penais proscreverem o errante, o Direito Penal desinteressou-se por ele, não de direito, mas de fato, porque no século XX a errância foi descriminalizada face à nova política criminal para com o pobre.

A responsabilidade pela errância e pelo desemprego não é mais do indivíduo e sim coletiva, da sociedade e do Estado capitalista. A sociedade passou a ser devedora de direitos, admitindo como constituintes da realidade os desajustamentos, doenças e perturbações psíquicas e de comportamento, assim como as carências de nutrição e educação. Se o criminoso tem culpa ao perpetrar um crime, não se pode culpá-lo pela pobreza em que vive, situação que pode índuzi-lo a praticá-lo. A punição muda de rosto e desliza do cárcere para o modelo educativo, cujo objetivo não mais é isolar o criminoso, mas redimi-lo para que possa produzir.

Mas, ainda assim, a penalidade manteve sua coerência graças à re¬presentação que mantém do crime, do criminoso e da criminalidade, que dá sentido ao conjunto das práticas penais para os crimes visíveis e previsíveis praticados pelo pobre.
Este modelo punitivo positivo foi inspirado pela noção da existência de doís campos em conflito: o da vontade coletiva pactuada e o da vontade individual; do que é certo e permitido fazer, inspirado na solidariedade e o que é errado e proibido por ser fruto da vontade própria que, conscientemente, quer se sobrepor à lei.

Mas, há aqui uma série de contradições internas sobre o crime cometido pelo pobre (sempre ele!): presume-se que ele é consciente do que faz e prevê a possível punição e, mesmo assim o pratica. Nesse caso, a punição não servirá para que tome consciência sobre o que fez; sabe que existe um contrato social e o princípio da solidariedade que o inspirou, mas se sente excluído por ter nascido pobre e permanecido pobre. Cabe-lhe a responsabilidade pelo que faz ao contrariá-los e arca com uma possível punição; todavia foi a pobreza que o levou a delinqiiir.

Contudo, para o pensamento liberal, a pobreza é um problema, não um fato social. A sociedade burguesa sabe ser devedora dos pobres, mas não lhe reconhece direitos de cobrar-lhe a dívida. A dívida é filosófica e não jurídica, ou seja, do ponto de vista da justiça burguesa, a pobreza não serve de desculpa para o crime, embora possa ser arrolada como atenuante. "Ao bom pobre — o órfão, o velho, a mulher desamparada, o aleijado — a sociedade deve caridade, ao homem dotado de força jlsica não deve nada" (Maillard). O que cabe à sociedade liberal é o dever de assistir os pobres, através da caridade ou filantropia.

Por inspirarem-se nesses postulados e na concepção de que pobreza, vício e crime mantêm-se entrelaçados é que as práticas antigas de repressão e as práticas misericordiosas atuais caminham jun¬tas nos países de capitalismo periférico.
Como se vê, os direitos de igualdade preconizados pela revolução burguesa nunca se aplicou, senão aos que ganharam um lugar na sociedade liberal. O Direito burguês, especialmente o Penal, foi instituído para estabelecer a linha demarcatória entre os portadores e os não portadores de direitos, antecipadamente vistos como delinquentes, ainda que não tenham praticado, nenhuma delinquência.

O que muda entre a sociedade liberal do século XVIIT e XIX para a sociedade de bem estar social do século XX não é, porém, o estatuto jurídico do indivíduo pobre, mas seu estatuto social. Ele passou a ser sujeito de direitos, ao menos, de ser assistido como cidadão de segunda, e de poder ser levado em conta como atenuantes em seu favor os atributos individuais negativos que porta, que dificultam sua inserção social e sua ascensão a cidadão de primeira classe.

(Texto extraido do livro "O Juiz sem Toga", de Herval Pina Ribeiro, sob permissão do autor).

Herval Pina Ribeiro, médico e especialista em saúde do trabalhador, é professor da UFSP
(2007)