|
“Toda
Nudez Será Castigada”,
de Arnaldo Jabor
(1973)
Eixo
temático
As
sociedades de modernização hipertardia no século
XX tendem a ser precoces em sua explicitação de
formas degradadas de sócio-reprodutibilidade do capital.
São sociedades burguesas que não conseguiram romper
com o lastro do tempo passado, com tradições e valores
pré-capitalistas (é como se os mortos governassem
os vivos, como diria Auguste Comte, pai da sociologia e ideólogos
genial da modernidade burguesa). Nas sociedades capitalistas hipertardias,
tal dimensão de regressividade é atávica,
permeando, inclusive, a própria modernização
inconclusa. Na verdade, o tempo passado constitui o tempo presente
e o tempo futuro. Estamos diante de uma construção
do tempo social que imprime sua marca nas experiências de
subjetividades complexas, determinando valores, expectativas sociais
e escolhas ético-morais. A reprodução social
ocorre através da construção da percepção
da temporalidade - tempo passado, tempo presente e tempo futuro.
Tais modos de temporalidades são condicionados pelas formas
de objetivação sócio-histórico das
relações sociais capitalistas. É através
delas que ocorre o processo de subjetivação social.
No caso de sociedades capitalistas hipertardias, as contradições
do capital em suas formas exacerbadas, se transfiguram em tragédias
quase-heróicas.
Temas-chaves:
capitalismo hipertardio e tempo social; família, reprodução
social e crise do capital; mulher e sociedade; valores e estranhamento
social.
Filmes
relacionados: “O Casamento”, de Arnaldo Jabor;
: “Beleza América”, de Sam Mendes; “Festa
em Família”, de Thomas Vintenberg; “Tempestade
de Gelo”, de Ang Lee.
|
Análise
do Filme
Baseada
na peça homônima de Nelson Rodrigues, o filme Toda
Nudez Será Castigada, dirigido (e com roteiro adaptado)
por Arnaldo Jabor, é um drama de família. É uma
crítica mordaz da subcultura da família de “classe
média” no Brasil. O humor é meramente um recurso
estilístico para expor as degradações e taras de
uma sociabilidade barroca e hipócrita, típica de um capitalismo
hipertardio de extração colonial-prussiana. Esse tipo
de objetivação do capitalismo no Brasil criou uma sociabilidade
perversa (e pervertida) em suas várias instâncias sócio-reprodutivas.
O realismo desbragado de Nelson Rodrigues é sintoma dessa sociedade
capitalista inconclusa em sua modernização tardia. É
uma incompletude que atinge não apenas as estruturas de produção
do capital, mas suas instâncias de reprodução social.
Atinge não apenas as instituições políticas
do Estado e da sociedade civil, com uma democracia representativa gelatinosa;
mas a subjetividade corroída, invertida e problemática
de homens e mulheres da “classe média”.
Na
verdade, é através do drama de “classe média”
que Rodrigues quer pensar o Brasil. A “classe média”
sempre oscilou entre uma burguesia decrépita e um proletariado
amorfo à sombra de um Estado populista. E é através
das comédias de costume dessa classe média que Rodrigues
tenta refletir a tragédia brasileira. O drama de humor caustico
de Nelson Rodrigues reflete a subjetividade de uma modernização
inconclusa, onde a instância sócio-reprodutiva da família
pequeno-burguesa já se constitui em crise estrutural, totalmente
incapaz de representar uma sociedade clivada de contradições
atávicas pela inconclusão da questão democrática
e da questão nacional.
Em “Toda Nudez Será Castigada”, a família
é apenas uma referência esgarçada, e seus valores
morais são mero adereços superficiais. Não existe
uma família nuclear típica de uma sociedade burguesa com
seus valores-fetiches. É da “classe média”
que provém o imaginário da família burguesa. Mas
o que Nelson Rodrigues procura devassar é a incapacidade da “classe
média” brasileira em prover tal ideal de família
e torna-los valores-fetiches de uma sociabilidade moderna plena. Sua
narrativa expressa a total incapacidade da “classe média”
em ser o lócus valorativo de uma instância sócio-reprodutiva
fundamental: a família. É o descrédito absoluto
na capacidade da reprodução social da modernidade capitalista
no País.
Nelson Rodrigues é o grande arauto do fracasso da nossa modernização
capitalista hipertardia. Ao adaptar para o cinema a peça teatral
de Nelson Rodrigues, em 1973 (o ano-marco da “crise do milagre
brasileiro”), Jabor prenuncia a tragédia brasileira que
se desenvolveria nos trinta anos seguintes. Em “Toda Nudez Será
Castigada”, a morte da esposa de Herculano e mãe dominadora
do jovem Serginho cria um colapso existencial no seio de uma família
de “classe média”. A mãe não aparece
no filme, mas é citada como memória presente (o filho
Serginho nutre uma obsessão exagerada pela mãe morta,
exigindo do pai que ele não mantenha nenhuma relação
sexual até a morte).
É a alegoria da presença aterradora do passado morto que
pesa sobre os vivos que Nelson Rodrigues procura salientar nesse drama
do rico viúvo Herculano. O passado é um fardo miserável
para ele. Mesmo Geni, a prostituta pela qual ele irá se apaixonar,
quando se suicida, deixa uma fita gravada, dizendo: "Herculano,
quem te fala é uma morta. Eu morri. Me matei". Novamente,
Herculano está imerso entre mortos que lhe dominam. O que Rodrigues
sugere é uma alegoria da tragédia das sociedades burguesas
hipertardias, onde o arcaico convive com o novo. Deste modo, a memória
da falecida mãe oprime tanto o pai, quanto o filho.
O filme começa com uma situação-limite: Herculano,
um viúvo que pauta sua vida por rígidos códigos
familiares e religiosos, não suporta mais o vazio existencial
de um núcleo familiar esgarçado pela morte da mulher.
Totalmente imerso em sua profunda depressão, continua decidido
a manter-se fiel à mulher falecida. As tias, temendo que ele
cometa suicídio, suplicam ao outro sobrinho, irmão de
Herculano, Patrício (representado por Paulo César Pereio),
que procure alguém para preencher o vazio existencial na vida
de Herculano. Patricio, desempregado, dependente de Herculano, decide
apresentar a ele uma prostituta, Geni (Darlene Glória). Para
Patricio, o sexo é a solução para seu irmão,
semi-virgem. É Patrício, o malandro, que introduz os elementos
diruptivos da estrutura narrativa do filme (Primeiro, Geni, e depois,
de modo indireto, o ladrão boliviano – o interessante é
que os dois personagens são de origem popular).
O irmão de Herculano é a típica figura do malandro
carioca, que vive às custas do irmão. Ao procurar uma
amante para Herculano ele age por interesse próprio, pois se
Herculano cometer suicídio ele perde seu sustento. Na peça
teatral de Nelson Rodrigues, Patrício tem uma maior presença
como um personagem mediador de elementos diruptivos da trama narrativa
(o que não ocorre no roteiro adaptado de Arnaldo Jabor). Por
exemplo, na peça original, é Patrício que cria
duas situações decisivas para o destino do personagem
Serginho (é ele que leva o filho de Herculano para ver o pai
com Geni) e para o destino da personagem Geni (é Patrício
que diz a Geni que viu Serginho fugindo num avião com o ladrão
boliviano). A ultima situação não aparece no filme.
É o surgimento de Geni que irá transtornar o viúvo
Herculano e faze-lo romper, mesmo com dilaceramentos internos, com a
memória angustiada do passado.
Na verdade, o personagem Herculano é cindido por dilemas antitéticos
que Nelson Rodrigues nos apresenta de modo exagerado e que Jabor conseguiu
traduzir no cinema através do desempenho magistral de Darlene
Glória e Paulo Porto. Herculano é um personagem esquizóide,
que oscila entre uma fidelidade doentia à sua mulher falecida,
considerada por ele uma santa, que ele não xingaria nem em pensamento,
e uma paixão sexual por Geni (durante a relação
sexual com ela, totalmente inebriado, Herculano grita que a falecida
era uma chata).
O filme é uma dança de extremos ético-morais: Castidade
absoluta ou devassidão sexual. Não existe meio-termo na
narrativa de Rodrigues. O exagero é um recurso estilístico
de Nelson Rodrigues para apreender o drama trágico de uma sociabilidade
capitalista inconclusa em seus valores modernos. Mas pode representar
também a incapacidade que a “classe média”
decadentista encontra para efetuar um tertium datur entre uma burguesia
colonial incapaz de realizar a modernização plena e obrigada
a conviver com o latifúndio e o proletariado gelatinoso, incapaz
de consciência de classe e dependente do Estado populista.
Deste modo, Herculano oscila entre os valores barrocos de um catolicismo
arcaico e a devassidão sensualista, absolutamente lúbrica,
sem limites, representado por Geni e pelo bordel. Para resolver o impasse,
Patrício, irmão de Herculano, sugere que Geni aproveite
a paixão delirante de Herculano para exigir casamento. Só
casando Herculano poderia possuir Geni (o casamento aparece como um
valor inestimável do imaginário burguês: casando-se,
Geni perderia, inclusive, o estigma de “puta”. Como afirmou
uma das tias de Herculano ao ver Geni no altar com Herculano, “ela
é virgem”). Mas para se casar, Herculano precisa fazer
o filho Serginho aceitar o casamento.
Herculano, empresário bem-sucedido, para quem dinheiro não
é problema, consegue romper com a memória da falecida
e encontra em Geni, uma prostituta, a realização da sua
felicidade sexual. Por outro lado, Geni encontra nele a realização
de uma segurança material que nunca teve (a bela Geni tem sua
obsessão – como todos os personagens de Rodrigues: a certeza
de que sua morte viria de um câncer nos seios. Nem imagina que
seu verdadeiro câncer é o pathos da “classe média”,
representado por Herculano e Serginho). Serginho, o filho que vive da
memória da mãe morta, não aceita que o pai tenha
outras mulheres. Ao ver o pai com Geni, Serginho, totalmente transtornado,
se dirige a um barzinho, bebe todas e provoca uma briga (a figura do
“povo” aparecem no bar como totalmente hostil à elite
branca dominante). Serginho é recolhido ao xadrex, o “depósito
de presos”, como diz o delegado, e lá é estuprado
por um ladrão boliviano (o segundo personagem diruptivo da narrativa).
Um detalhe: o personagem do delegado, representado por Hugo Carvana,
aparece também num ato de infidelidade conjugal, conversando
com a amante ao telefone na delegacia, totalmente obcecado por sexo.
Na trama narrativa de Rodrigues, todos são infiéis e incestuosos
até provem o contrário. O ato de estupro de Serginho pelo
ladrão boliviano provoca uma nova inflexão na estrutura
de um personagem central. O transtornado é Serginho que agora
passa a aceitar o casamento do pai com Geni. Mas seus motivos são
perversos: sem o pai saber, Serginho seduz Geni e passa a envolve-la
e ser amante dela. É a forma que Serginho utiliza para “vingar”
a infidelidade do pai: tornar-se amante da madrasta, da sua nova mãe
(a sugestão incestuosa é explicita). O incesto como vingança.
Mais tarde, Geni, apaixonada por Serginho, se transtorna e comete suicídio
quando assiste Serginho fugindo de avião com o ladrão
boliviano.
O que observamos é que a estrutura narrativa é marcada
por inflexões drásticas nos personagens de “classe
média”, onde o agente diruptivo são personagens
do “povo” (Herculano conhece Geni e instaura-se uma nova
situação; Serginho é estuprado pelo ladrão
boliviano e surge uma outra situação nova). A inflexão
repõe infidelidades fictícias ou reais (a infidelidade
de Herculano, que é meramente fictícia; e a de Geni, que
é real), além de sugerir um complexo de relações
incestuosas (a relação de Serginho e Geni sugere uma relação
do filho com a mãe). O final (o suicídio da prostituta)
poderia ser considerado moralista. Mas é o sintoma de uma tragédia,
de uma situação de absurdo inaceitável. Talvez
a paixão diruptiva de Geni por Serginho e a sua traição
com o ladrão boliviano é que tenha sido o motivo de seu
suicido (Geni é fascinada pela jovialidade de Serginho: representação
de um amor pelo filho?). É mais a dor de uma perda do que o absurdo
da situação moral (a relação de Serginho
com um ladrão pederasta). Mas a dor moral se confunde com a dor
passional. Herculano talvez não tenha tanta dignidade existencial
para cometer suicídio. Mas a meretriz, mulher do povo, a prostituta,
é levada a tal gesto trágico. É ela, a representação
do “povo”, que se sacrifica diante do altar de uma sociabilidade
degradada.
A representação do “povo” em “Toda Nudez
Será Castigada” é de uma massa amorfa, indiferente
ao drama da “classe media” transtornada pelas suas taras
barrocas. O “povo” está no bordel, em busca de satisfação
sexual. e inclusive poética, com velhos solitários buscando
as putas; e na via pública com seus rostos anônimos e espectadores
da euforia de Geni (é numa esquina de grande movimentação
de pedestres que Geni pede Herculano em casamento); ou no boteco, onde
Serginho, transtornado por ter visto Herculano com Geni, agride uma
figura popular (que expressava seu desprezo pela elite branca do país);
no “depósito de presos” ou cela de uma delegacia,
onde Serginho é estuprado por um ladrão boliviano sendo
assistido pelos demais presos brasileiros, que cantam “Bandeira
Branca” (o fato de Serginho ter sido estuprado por um boliviano
talvez seja a representação da incapacidade do povo “estuprar”
sua própria “classe média” – a passividade
do povo é expresse até nisso).
Um outro drama familiar de “classe média”, produzido
nos EUA, em 1999, Beleza Americana possui, como seu mote promocional,
a expressão “look closer” (olhe bem de perto). “Toda
Nudez Será Castigada” como drama de uma sociabilidade estranhada
e pervertida, possui também seu mote narrativo quando Geni grita
com Herculano, o pater famílias estranhado: “Você
pensa que sabe tudo, mas não sabe nada Herculano”, brada
Geni. Novamente é a personagem feminina acusando o macho dominador,
decadente, pela sua cegueira visceral (é curioso que, de certo
modo, é o que diz Nicole Kidman como Alice, para Tom Cruise como
William Harford, em De Olhos bem Fechados, de Stanley Kubrick).
Herculano é cego para seus gestos de infidelidade de Geni com
o Serginho e cego para com a perversão sexual de Serginho com
o ladrão boliviano. Enfim, é cego para a dissolução
da família como núcleo orgânico (uma dissolução
pressuposta, mas ainda não realizada).
Mesmo casando-se e constituindo o núcleo orgânico estável
(a família e o casamento como elemento conservador), a instabilidade
interna, de traições, infidelidades e perversões,
estava latente. É a crise orgânica latente que implode
o universo de “classe média”, incapaz de se recompor
diante de uma sociabilidade devassada. O sacrifico de Geni e a loucura
de Herculano transmitem a tragédia brasileira. Realça
o ambiente barroco, decadente onde transitam os personagens. Figuras
greco-romanas se amontoam sob poeira na mansão de Herculano.
São ambientes mal-cuidados, retratando que o drama de “classe
média” é uma drama decadentista, como parece prenunciar
o Brasil em 1973.
O filme anuncia o decadentismo brasileiro e por isso “Toda Nudez
Será Castigada” é mais atual do que nunca. A musica
de Astor Piazolla dá um tom de tango portenho a um drama brasileiro.
Mais tarde, em 1975, Jabor iria filmar “O Casamento”, outra
peça de Nélson Rodrigues, onde transmite a verdade que
se esconde sob a aparente felicidade burguesa: injustiças, perversões
sexuais, adultério, crimes e até incesto. Aqui o fetiche
é diluído por si e em si. Tudo é contado de uma
maneira tempestuosa, por vezes chocante, misturando lágrimas
e gargalhadas, ópera com comédia, paixão com loucura.
Em “Toda Nudez Será Castigada”, pelo contrário,
não existe o fetiche e quando ele existe é diluído
em sórdida ironia. Na verdade, existe a exposição
crua e direta de uma sociabilidade familiar decrépita.
Giovanni Alves (2003)
|
|