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“Notre
Musique ” de Jean-Luc Godard
(2004)
Cada
filme de Godard parece ser uma resposta a todos aqueles que acreditam
que o cinema acabou. Metalinguagem e política são o
assunto de seu mais recente filme, que pode ser definido como mais
um de seus pensamentos em forma de cinema. Isto porque Godard utiliza
toda a força desconstrutiva do pensamento para tratar de um
assunto mais do que nunca candente em nossas vidas: a guerra. O diretor
parece ironizar sua própria posição: tal como
Homero, Godard, assim como nós, espectadores, não sabe
do que está falando. No entanto, com a distinção
feita por Godard entre texto e imagem, talvez essa condição
não se aplique aos bons cineastas. É porque tem a condição
de espectador que o cineasta pode pensar sobre os acontecimentos,
por meio de seu cinema. E Godard o faz a partir da perspectiva dos
derrotados. Ousa fazer um manifesto político sem precisar da
forma do documentário. Utiliza o pensamento para desconstruir
as certezas colocadas pelos textos que atualmente substituem as imagens.
Esta forma de ver o espectador, explicitada neste filme, e a força
desconstrutiva do pensamento, implícita nos filmes de Godard,
nos remetem a uma autora citada neste filme: Hannah Arendt.
O filme se divide em três partes – Inferno, Purgatório
e Paraíso. Na primeira parte, imagens de guerras, sendo
perfeitamente identificáveis a Segunda Guerra Mundial e Sarajevo.
Entre as imagens, alguém se ajoelha e, parafraseando a oração
do pai nosso: perdoai as nossas ofensas como perdoamos de qualquer
maneira. A questão do perdão nos remete, não
sei se intencionalmente, a Arendt. Para ela, o perdão é
uma das formas de desfazer a ação política, tornando
a imprevisibilidade que marca a ação menos assustadora.
Aqui no filme, no entanto, o perdão parece ser visto de uma
forma um pouco mais dura: é a vítima que pede perdão
a Deus, na mesma medida em que perdoa de qualquer maneira, numa imagem
chocante, e introduzindo a necessária humanidade à seqüência
de quadros sobre a guerra.
É em Sarajevo que acontece o Encontro Europeu de Literatura,
que é o cenário da segunda e mais longa parte do filme:
o Purgatório. A primeira questão é colocada:
por que as revoluções não são feitas por
homens mais humanos? E Godard, com um acompanhante respondem: homens
mais humanos fazem bibliotecas e cemitérios. Matar um homem
e defender uma idéia não é defender uma idéia,
é matar um homem. Nesta parte o foco recai sobre Olga, jornalista
francesa e judia de origem russa, que trabalha em TelAviv. Se Olga
é a personagem principal, seu enredo se enlaça nas questões
sobre o conflito Israel/Palestina.
O primeiro entrevistado pela jornalista é o embaixador da França
em Sarajevo que, ao ser perguntado se os escritores sabem do que estão
falando, responde que o Homero não o sabia, era cego e entediado.
Os homens que agem não têm tempo de relatar o que estão
fazendo, e os observadores não sabem do que estão falando.
Com esta visão de que os homens que agem não podem relatar
suas ações, a referência a H. Arendt, como já
dito, é inevitável. Para ela, o juízo do espectador
é que torna os feitos daqueles que agem dignos de glória.
No entanto, mais uma vez, Hannah Arendt confia mais no espectador
do que a personagem filmada por Godard. Para ela, o espectador, por
ser imparcial, ou seja, não estar envolvido subjetivamente
nos acontecimentos, é capaz de olhar os fatos históricos
em suas diversas facetas e, na sua história, contar as coisas
como aconteceram, com todo o seu significado. O escritor de que fala
o embaixador, no entanto, não sabe do que está falando.
Como o ator não o pode fazer, resta a impossibilidade do relato
histórico. E então temos a referência explícita
a Hannah Arendt, com o embaixador recomendando à jornalista
que leia os seus textos dos anos 50. A foto de Arendt, que era 12
sinagogas, diz o embaixador citando Gerhard Scholem, está ao
lado da de Kafka em sua sala. Bela companhia a desse autor tantas
vezes citado pela teórica judia alemã.
Entre o diálogo com o embaixador e o próximo entrevistado,
índios falando inglês se dirigem a um escritor, provavelmente
americano, e sugerem que dialoguem ali, naquela situação
em que índios e americanos são estrangeiros no mesmo
país: um encontro à beira do abismo.
O próximo entrevistado é um poeta palestino que diz
falar em nome dos ausentes e defender uma história contada
a partir do ponto de vista dos vencidos. Olga intervém e diz
que ele fala como um judeu. Segundo a fala do poeta, há mais
inspiração e riqueza humana na derrota do que na vitória.
Mas a despeito disto, os palestinos têm sorte e azar de terem
os judeus como inimigos. Palestinos foram derrotados pelos judeus,
mas só atraem os olhares do mundo porque foram os judeus que
os derrotaram. É com os judeus que o mundo se importa, e não
com os palestinos.
E então é Godard que ocupa o centro do filme, fazendo
sua conferência sobre texto e imagem, que é assistida
por Olga. O cineasta começa: a linguagem divide arbitrariamente
os objetos da realidade. Imaginação x visão.
A imaginação diz: feche os olhos. A visão diz:
olhe lá. Contrapõe quadro e contraquadro de um filme
de Howard Hawks. Homem e mulher têm a mesma expressão
e a mesma posição. Godard explica: o diretor não
diferenciava homem e mulher. Em 1948, Israel foi em direção
à terra prometida – quadro – ficção;
Palestina foi em direção ao afogamento – contraquadro
– documentário. Em 1932 o campo do texto já havia
coberto o campo da visão (texto-imaginação e
visão-imagem-realidade). O imaginário é o campo
da certeza; o real o da incerteza. O princípio do cinema é
ir até a luz e dirigi-la para a nossa noite – notre musique.
A jornalista que examina os quadros lê: “Esta noite estarei
no paraíso”. Este é o manifesto de Godard pela
imagem e pelo cinema. Ele próprio utiliza de texto, mas nada
supera as imagens de sua contraposição de quadro e contraquadro.
Godard busca a visão, a imagem, o real, a incerteza.
A jornalista prossegue e conversa com seu tio sobre suicídio,
vida e morte. O Encontro termina. Os participantes saem de Sarajevo,
e Godard, que havia recebido uma fita de Olga, recebe a notícia
de que ela, num cinema, dizia que estava com explosivos no corpo e
convidava os israelenses presentes a permanecer com ela. Todos a abandonaram
e a polícia, após matá-la, descobriu que ela
trazia consigo somente livros.
No paraíso, Olga caminha numa floresta com riachos, cercada
de arame. Jovens brincam com uma bola imaginária, alguém
lê um livro chamado “Sem esperança de retorno”.
Nos limites cercados, marinheiros com armas escutam a canção
“as ruas do paraíso serão guardadas pelos fuzileiros
dos Estados Unidos da América”.
Tudo isto que foi apontado no filme Nossa Música até
aqui e as demais referências que são feitas ao longo
do filme, mas que não foram aqui indicadas, poderiam ser vistos
como partes de um manifesto político explícito: questionamento
das guerras, uma posição pró-palestina e anti-estadunidense.
No entanto, como sempre nos filmes de Godard, trata-se de mais do
que isso. É também um manifesto cinematográfico,
em que o cinema é afirmado como meio para comunicação
de um pensamento. E neste caso a adequação é
perfeita. Mais uma vez utilizarei aqui uma comparação
com Hannah Arendt. Desta vez para tornar claro por que este filme
– e considero também todos os outros seus de forma semelhante
– pode ser considerado o pensamento em forma de cinema.
O embaixador recomendou a Olga a leitura dos textos de Arendt de 1950.
Mas vou utilizar aqui um texto de 1971: “Pensamento e Considerações
Morais”. Para Arendt “o pensamento tem inevitavelmente
um efeito destrutivo sobre todos os critérios estabelecidos,
valores e medidas estabelecidos para o bem e para o mal, enfim, sobre
todos os costumes e regras de conduta com que lidamos em moral e em
ética” e “o pensamento não cria valores,
não irá descobrir, de uma vez por todas, o que é
o ‘bem’, e não confirma as regras aceitas de conduta,
mas antes dissolve-as”. Ou, se quisermos falar em termos de
busca de sentido, mais adequados quando tratamos de linguagem: “a
palavra casa é algo como um pensamento congelado que o pensar
deve degelar, tirar o gelo, por assim dizer, sempre que deseja descobrir
seu sentido original”.
Pois em Godard seu cinema-pensamento tem o mesmo efeito corrosivo,
ou, para utilizar um termo mais adequado, desconstrutivo. O diretor,
neste e em todos os seus filmes parece sempre buscar desnudar algo
que é objeto de senso comum - guerra, amor, desprezo, vida
intelectual – para relocalizar o seu sentido. Mas a desconstrução
de Arendt e de Godard operam com instrumentos distintos.
Para a autora alemã “o pensamento sempre lida com objetos
ausentes, afastados da percepção direta dos sentidos.
Um objeto de pensamento é sempre uma re-presentação,
isto é, alguma coisa ou alguém que na verdade está
ausente, presente somente ao espírito que, por meio da imaginação,
consegue torná-lo presente na forma de uma imagem”. Como
se vê, o pensamento, que se situa temporalmente na linha existente
entre passado e futuro, faz presentes objetos ausentes, por meio da
imaginação, e os desconstitui. Para o cineasta francês,
no entanto, a imaginação tem a ver com a ficção,
e a imagem não é fruto da imaginação,
campo da ficção e da certeza, mas do real, com todas
suas incertezas. O cinema é capaz de desconstituir o real porque
lida com imagens e, através do recurso da montagem, pode explicitar,
pela desconstituição, o sentido do real.
Na contraposição feita por Godard entre imagem e texto
parece ser isso que ele pretende dizer. E aqui cabe reconhecer que
este comentário feito aqui e qualquer outro que venha a ser
feito não passam de ornamento às imagens de Godard,
que são insubstituíveis. Pois o texto, ainda que de
alto nível, no máximo chega a ser “o fino invólucro
de nossos pensamentos”, como pretendia Virginia Woolf. O cinema
pode ser o próprio pensamento. E Godard sabe muito bem disso.
Maria
Aparecida Azevedo Abreu,
é doutoranda em Ciência Política na USP,
autora do livro "Hannah Arendt e os limites do novo"
(2005)
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