“Blade Runner” de Ridley Scott

(1986)

 

A Tragédia Futurista de Blade Runner


por Lilian Victorino Félix de Lima

 

"Imagine que o crescimento da população e a evolução da tecnologia tenham urbanizado todo o globo terrestre – que uma única cidade cubra toda a superfície utilizável da Terra. A perspectiva é um pesadelo. Instantaneamente a pessoa tem a impressão de estar emaranhada em uma fila interminável de casas, fadada à presença contínua e à pressão de outras pessoas. A cidade seria monótona, impessoal e desconcertante. Seria abstrata, sem contato com a natureza; mesmo as coisas produzidas pelo homem não poderiam ser transformadas. O ar seria pesado, a água escura, as ruas por demais concorridas e perigosas. Anúncios e alto-falantes estariam focalizados em todos os transeuntes. Poder-se-ia talvez conseguir intimidade em casa, mas como se poderia plantar, caçar ou explorar? Onde poderia alguém encontrar uma mata virgem ou iniciar uma revolução? Existiria alguma coisa que pudesse desafiar ou excitar o espírito humano? Não seria esse mundo, inteiramente feito pelo homem, terrivelmente estranho ao próprio homem?" (LYNCH, apud BARBOSA, 2002, P.185).

Este fragmento de texto foi escrito por Kevin Lynch em 1970 no artigo “A Urbanização da Humanidade” apresentando sua perspectiva para a cidade do futuro. Doze anos depois parte desta visão sufocante de futuro para a humanidade se apresenta na cidade de Los Angeles (EUA), cenário do filme Blade Runner, o ano é 2019. Embora Blade Runner não signifique uma ruptura na forma de produzir cinema americano ele de certo modo inova ao representar um futuro escuro e sombrio bem diferente de filmes clássicos da ficção científica que mostravam um futuro muito branco, limpo e “civilizado”; como, por exemplo, 2001-Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubric.

Pensando em quais foram as bases para esta sociedade catastrófica; apuramos que este filme foi lançado no auge da era Reagan quando nos EUA havia um sentimento de ambição e otimismo irracionais. Neste contexto também tomava fôlego o discurso ambiental indicando que se as coisas não fossem repensadas certamente nosso futuro não seria nada bom, devido a produção capitalista desenfreada, os altos índices de poluição, a problemática da água, a questão do esgotamento de recursos naturais não renováveis, etc.

Neste mesmo contexto dos anos 1980, a distribuição geopolítica ainda em guerra fria, a corrida armamentista e a possibilidade de um holocausto nuclear foram responsáveis por estas “previsões” sombrias de futuro.


Outro aspecto, agora teórico, aponta que Blade Runner dialoga com as teorias moderna e pós-moderna. O filme aprofunda muitas conseqüências da modernidade, como por exemplo, o abismo entre ricos e pobres, decadência vivida pelas pessoas; o avanço de experiências genéticas que ignoram todas as discussões bioéticas; problemas ambientais diversos (chuva-ácida, poluição sonora, visual, do ar, etc), uma desmedida acumulação material capitalista que se evidencia no excesso de objetos nas casas, lixos nas ruas, tecnologização de tudo do abrir as portas passando pelos carros e os próprios seres humanos.

Há um processo de desindustrialização e decadência pós-industrial que evidenciam a transição do fordismo para a acumulação flexível, esta marcada pela crescente independência dos grandes monopólios com relação aos regulamentos estatais, isto é representado em Blade Runner pela mega-corporação de Eldon Tyrel que ao negociar ações no filme demonstra o predomínio do mercado financeiro em detrimento do mercado produtivo. Observa-se a precarização das relações de trabalho em muitos setores e regiões – predomínio do trabalho asiático e informal, por exemplo, a subcontratação de Chew que fabrica olhos em um pequeno laboratório para a Tyrell, ou do projetista Sebastian.

Muitos teóricos não reconhecem a existência de uma pós-modernidade no sentido de uma produção material que rompa definitivamente com os padrões de produção capitalista; entretanto muitos desses mesmos autores entendem que na esfera cultural há transformações que são consideradas pós-modernistas. Estas transformações nos são apresentadas pela estética do filme com sua mistura de estilos vistos nas roupas dos personagens, no interior e exterior das construções, e até numa sensibilidade pós-moderna vista na corrida esquizofrênica (no sentido lacaniano de rupturas de sentido) do tempo que Jameson apontou como central na vida pós-moderna.

Todos os personagens da trama colecionam fotos que lhes dão a sensação de que tiveram realmente um passado; embora ao mesmo tempo devido a compressão espaço-tempo em que vivem eles podem vivenciar um imenso arcabouço de experiências no presente. Nesta vida curta e rápida a personalidade dos humanos e pós-humanos equivale em muitos aspectos ao tempo e espaço das comunicações globais instantâneas (Harvey, 1999, p.278).

O controle social esta por toda parte, assim que Deckard elimina cada um dos replicantes a polícia aparece quase que instantaneamente como se estivesse assistindo a tudo por alguma das câmeras de filmagem espalhadas por toda cidade.
Considerado uma ácida crítica da sociedade contemporânea Blade Runner convida o público a pensar sobre sua própria condição humana e o induz a temer que seu futuro se transforme nesta distopia revelada pelo filme. É difícil não pensarmos nas transformações que vivenciamos nos últimos anos, promovidas a partir de pesquisas e projetos desenvolvidos nas áreas de robótica, bioengenharia, biotecnologia, eletrônica e sistemas operacionais.


Nesse sentido, nossa proposta de analisar este filme implica num desvendamento da sociedade contemporânea e, sobretudo, coloca em causa o sentido do avanço tecnocientífico no início deste século XXI. Em suma, consideramos que Blade Runner questiona os ideais de modernidade estabelecidos pela vida burguesa que os promoveu como valores chaves da civilização triunfante. Calinescu (1999) aponta alguns desses valores como: a doutrina do progresso, a confiança nas possibilidades beneficiadoras da ciência e tecnologia, a preocupação com o tempo (um tempo mensurável, um tempo que pode ser comprado e vendido e que, por conseguinte, tem, como qualquer outra mercadoria, um equivalente calculável em dinheiro), com o culto da razão e o ideal de liberdade definido dentro do contexto de um humanismo abstrato, mas também a orientação no sentido do pragmatismo e o culto da ação e do sucesso.

Enfim, temos em Blade Runner um exemplo do que o sistema predatório capitalista é capaz de realizar, tanto com pessoas, quanto com o próprio planeta.


Referências Bibliográficas

BARBOSA, Jorge Luiz. As paisagens crepusculares da ficção-científica: a elegia das utopias urbanas do modernismo. Dissertação (Mestrado) - FFLCH-USP, São Paulo, 2002.
BERMAN, M. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 1992.
CALINESCU, Matei. As cinco faces da modernidade. Tradução de Jorge Teles de Menezes. Ed. Vega, 1999.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Editora Loyola, 1992.
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Editora Ática, 2000.


Lilian Victorino Félix de Lima
é graduando em Ciências Sociais na UNESP
(2005)