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"Segunda-Feira
Ao Sol", de Fernando Aranoa
(2002)
O
Sol como garantia
Discutir
o filme "Segunda-Feira ao Sol" é um trabalho de fôlego.
Isso porquê o filme não se apresenta apenas como mais
uma forma de entretenimento. Não é daqueles tipos de
filme que assistimos e depois ficamos tranqüilos. Não.
"Segunda-Feira ao Sol" é um filme que incomoda. Para
quem consegue pensar ao mesmo tempo em que assiste a um filme, "Segunda-Feira
ao Sol" deixa marcas e questionamentos para um olhar diferenciado
sobre da sociedade.
O filme é uma metáfora da sociedade globalizada, uma
sociedade que internacionaliza além da pobreza, o desemprego
e a falta de perspectiva. Em busca de aumentar a economia, de transparecer
progresso, esse novo mundo globalizado deixa os filhos à própria
margem do trabalho e da perspectiva de uma vida justa.
É um filme sobre a crise do trabalho.
O mundo do trabalho na Espanha nos é apresentado em sua realidade
mais crua: o desemprego. Parece ser contraditório pensar que
o mundo do trabalho é mostrado através do desemprego,
afinal, se o mundo é do trabalho, como falar em desemprego.
Justamente aí que se encontra a idéia do mundo globalizado;
falar de desemprego num mundo que se diz do trabalho.
É dessa forma que o diretor Fernando Leon De Aranoa nos introduz
em um mundo de “fantasia” onde o que faz sentido é
a mescla do que temos na realidade com a criatividade de uma mente
como a de Aranoa, que cria personagens quase reais desse mundo desterritorializado,
dando uma bela obra cinematográfica, ganhadora de vários
prêmios.
Há muitos aspectos interessantes de se observar no filme, os
quais não daremos conta em suas diversas propostas, mas tentaremos
ao menos explicitar os que mais nos atraíram a atenção
no filme.
A história começa na Estação de Ria, ao
norte da Espanha, onde várias pessoas embarcam em busca de
um novo dia, com a esperança de emprego e trabalho. O mar é
a busca constante de uma nova realidade. Entre o seu infinito azul
e as ondas que arrebentam no barco, estão pessoas desempregadas
em busca de oportunidades que não aparecem. Assim como o mar,
as oportunidades parecem ser imensas, mas também distantes
e profundas.
O mar se torna uma personagem do filme tanto quanto os atores, ao
compor o cenário no qual muitas vezes as conversas sobre um
mundo melhor e trabalho, se desenrolam e se mitificam, num divagar
que lembra as ondas e sua imensidão de possibilidades.
Para darmos conta dessa tarefa de análise crítica, é
necessário que situemos o filme para entender como a reflexão
do mesmo pode trazer uma nova visão dos problemas sociais,
políticos e econômicos que pairam (sempre presentes)
na humanidade. Seja na Espanha, no Brasil ou mesmo na Austrália.
TRAMA
Estação
de Ria, norte da Espanha, oito e meia da manhã. Muitas pessoas
partem em busca de trabalho no ferryboat Lady Espana. Entre ele está
Santa (Javier Bardem), que conduz a história do filme.
Santa é um desempregado do estaleiro Aurora que não
se rende à falta de perspectiva, muito pelo contrário,
consegue tirar do desemprego e da situação em que está
uma espécie mistura fina entre humor e ironia.
Foi um dos homens que lutaram para que o estaleiro não fechasse
suas portas, por isso ainda se revolta com a alienação
em que vivem seus amigos, que se conformam em não ter emprego
e a ceder seu trabalho a pessoas de outras nações por
salários mais do que injustos de tão baixos.
Além de Santa, outras personagens fazem parte da história
de maneira complexa e questionadora. As personagens passam a maior
parte do tempo no bar de Rico (Joaquín Climent) em discussões
sobre o mundo do trabalho e sobre a realidade do desemprego e da falta
de perspectiva, fato que acaba incomodando não apenas as personagens
que fazem parte da história, mas também o telespectador
mais atento que acompanha a falta de esperança em que se encontram
os mesmos.
Aliás, o bar do Rico é uma outra metáfora do
filme que podemos analisar com cuidado e curiosidade. Freqüentam
o bar apenas as próprias personagens, não há
atores figurantes nem outras pessoas que compõe o universo
do bar. O nome do bar é Bar Naval, numa alegoria ao desemprego
que sofrem os trabalhadores navais, que são as próprias
personagens.
Nesse bar acontecem também grandes metáforas e grandes
discussões. Por exemplo, Amador (Celso Bugallo) que vive em
constante crise por ter sido abando pela mulher e por ter perdido
o emprego, interroga as personagens acerca de dois fatos. O primeiro
é: não questionar se acreditamos em Deus, mas se Deus
acredita nos homens.
Dessa idéia podemos avançar para a própria consideração
de que desempregados parecem ter sido também abandonados por
Deus, pois estão a mercê e à deriva da própria
sorte e da vida, como ficam os barcos no mar. Os mesmos barcos que
construíam quando trabalhavam no estaleiro Aurora. O nome do
estaleiro também é uma metáfora à necessidade
de dias melhores no cotidiano dessas personagens.
Amador também discute a questão da luz do banheiro do
bar. Parece estranho entrarmos nesse detalhe, mas a luz do banheiro
possui um temporizador, que fica acesa um tempo e depois desliga sozinha.
Amador não se conforma com a idéia de que tem coisas
sobre as quais não há controle. Ele queria a todo custo
apagar a luz do banheiro do bar, mas seria impossível.
Temos aí mais uma outra metáfora; não há
como ter controle sobre os fatos que acontecem em nossas vidas, entre
os quais o desemprego, o abandono da mulher, e tantos outros. Amador
era uma espécie de “filósofo” de mesa de
bar. Bebia em quantidade excessiva e não admitia de maneira
alguma que seus companheiros criticassem ou participassem de sua vida.
Mas bebia o mesmo tanto que questionava a realidade em que estava
inserido e suas problemáticas em torno do mundo do trabalho.
Assim, a crise da identidade se faz presente. As personagens ao encontrarem-se
desempregadas, buscam em outros espaços, que não o local
de trabalho, encontrarem consigo mesmas, numa crise que ultrapassa
a fronteira do real, porque nem eles mesmos se dão conta de
que estão buscando algo em que pudessem de apegar.
Nestor Garcia Canclini (1995, p. 139) nos afirma que “a identidade
é uma construção que se narra. Estabelecem-se
acontecimentos fundadores, quase sempre relacionados à apropriação
de um território por um povo ou à independência
obtida através de enfrentamento estrangeiro”.
Percebe-se que nesta afirmação está descrito
todo o caminho feito pelos desempregados do estaleiro; ao enfrentarem
a venda do Aurora aos estrangeiros e ao se encontrarem derrotados,
uma crise da identidade se faz presente em seu cotidiano. Há
um conflito interno pelo qual passam os milhares de desempregados,
em busca de novas perspectivas.
Ou seja, qual identidade está se formando ao longo do processo
de construção da história dessas personagens
que estão desempregadas? Em que aspectos políticas públicas
e Estado estão assegurando a formação da identidade
de uma nação? O que existe é um processo de desconstrução
da identidade. Esse processo passa até mesmo pela idéia
de cidadania não assegurada a ex-trabalhdores, que acontece
tanto do filme quanto na realidade.
Sobre isso, Canclini (1995, p. 148), nos apresenta uma idéia
bastante lúcida que reflete as dificuldades pelas quais passam
as personagens do filme e as próprias personagens da vida real,
“[...] o problema não parece ser o risco de que a globalização
as arrase, mas entender como as identidades étnicas, regionais
e nacionais se reconstroem em processos de hibridização
intercultural. [...] a reflexão atual sobre a identidade e
a cidadania precisa situar-se com relação a vários
suportes culturais [...]”.
A identidade das personagens parece ser destruída pouco a pouco
e busca em torno da idéia de “emprego e trabalho”
o suporte no qual se configure posteriormente o desenvolvimento cultural
e social de um povo, de uma sociedade. Ao se tornarem “desempregados”
do estaleiro, as personagens passam a ver-se diante de uma realidade
que as confunde, pois elas estão desempregadas, mas a mão
de obra mais barata, “globalizada” está trabalhando.
Ou seja, que valor essas pessoas têm para o Estado? Que valor
elas possuem para a sociedade em que estão inseridas?
Há uma cena clássica do filme na qual podemos nos apoiar
para exemplificar como o nacional está presente no interior
das pessoas e supera tanto as desavenças culturais e as barreiras
de diferenciação étnica e cultural.
Em um jogo de futebol, as personagens se reúnem em busca de
algo que as identifique. Entre uma jogada e outra, há a explosão
retardatária de um gol feito pelo time que todas torcem.
Eles estão no terraço do local de trabalho de Reina
(Enrique Villén), o único empregado da turma. Reina
trabalha como vigia em uma construção à noite.
Contudo, apesar de haver desempregados e empregados, espanhóis
e russos, no momento do jogo de futebol, todos são iguais,
independente da condição em que estão.
No terraço em que estão, uma parte da construção
não permite acompanhar o gol, consentindo apenas a visão
de uma parte do campo de futebol, o que não os impede de vibrar
quando o gol do time pelo qual torcem é feito.
Temos aí presente a idéia de construção
de uma identidade que poderia se perder ao longo do processo de desemprego
pelo qual passam as personagens. Há um conceito de transformação
da realidade, ou melhor, de superação da mesma, já
que enquanto torcem pelo time, todos são iguais, desempregados
e empregados.
As mulheres também estão presentes no filme a todo o
momento e são elas um dos eixos centrais da história,
pois mantém a discussão em aberto, lutam por uma outra
possibilidade de vida e buscam trabalho como forma de libertar-se
do mundo. Elas têm um papel de desenrolar da trama, mesmo quando
não estão presentes fisicamente na tela.
São as mulheres que influenciam os homens e os direcionam na
luta por uma outra realidade. O roteiro original do filme nos permite
assistir a uma cena onde o conflito “homem x mulher” transparece
nos olhos e no tom de voz de José (Luis Tosar).
Essa personagem está sempre na companhia de Santa e parece
que está acostumado a não trabalhar. Quem sustenta a
casa é sua esposa Ana (Nieve de Medina), que trabalha numa
fábrica de enlatados de peixe. Ao tentarem conseguir um empréstimo
no banco (o capitalismo presente no filme), Ana é quem assina
as promissórias porque é a pessoa ativa financeiramente
na família. Isso desperta uma crise, um acesso de raiva em
José que desencadeia num conflito do casamento.
Como podemos perceber Segunda-Feira ao Sol é um filme de metáforas
e de idéias para a discussão do capitalismo e do mundo
do trabalho. Tem em seus temas a crise social, econômica e pessoal
de trabalhadores espanhóis, temas que se encaixariam perfeitamente
em qualquer lugar do mundo globalizado.
Não podemos deixar de nos ater também para o processo
de comunicação subjetiva que permeia todo o filme de
Aranoa. Percebe-se que várias vezes, o local onde estava instalado
o estaleiro aparece vazio na tela, com apenas uma ou duas personagens
compondo esse cenário.
A Cultura Popular, a Comunicação Popular e a manifestação
social se fazem presente quando nos atemos à idéia de
muros pichados com frases do tipo “lucha”, “Naval
Lucha”, “Readmision Despedidos Ya”, “Hijos
da Puta” e “Naval no se rende”, que transbordam
em sonoridades e verbalizações as lutas pelas quais
os trabalhadores dos estaleiros estão passando. Ou melhor,
passaram, lutaram, foram despedidos e agora freqüentam bares
e as ruas, esperando que o Sol de segunda-feira tragam a eles novas
possibilidades de vida.
Para Lucia Helena Mendes Pereira, “falar de Comunicação
Popular é falar do objeto central da dinâmica da Cultura
Popular, de relacionamento entre pessoas e grupos, da história
do povo, de memória, de oralidade e de identidade; e não
de meios de comunicação, canais ou tecnologias”
.
Sendo assim, percebemos que há uma necessidade de extravasar
os sentimentos que fazem parte do cotidiano dos desempregados do estaleiro.
Através das pichações, eles conseguem expressar
e manter um diálogo com a sociedade em busca de um apoio ao
fato de terem sido injustamente demitidos e o estaleiro, o local de
identidade deles.
Ainda no texto de Pereira, Suart Hall (2003) nos alerta que,
“Cultura popular é um dos locais onde
a luta a favor ou contra a cultura dos poderosos é engajada;
é o prêmio a ser conquistado ou perdido nessa luta. É
a arena do consentimento e da resistência. Não é
a esfera onde o socialismo ou uma cultura socialista - já formada
- pode simplesmente ser expressa. Mas é um dos locais onde
o socialismo pode ser constituído. É por isso que a
cultura popular importa”.
É
através do desenrolar do filme que percebemos a idéia
de crítica social, seja através dos espaços vazios
dos estaleiros, seja através das pichações numa
tentativa quase nula de comunicação popular. Os diálogos
das personagens apresentam uma ironia que distorce a realidade numa
possibilidade quase caricatural da mesma, nos apresentando um aspecto
de inversão de fatos e costumes que estamos acostumados a viver,
mas que nos pegam de surpresa quando proporcionado de maneira tão
profunda.
"Segunda-Feira ao Sol" é isso, um retrato da realidade
que marca os dias contemporâneos de uma sociedade que vive em
constante crise do progresso, que não se enxerga como possuidora
de um potencial de mudança e de transformação
social. É um filme para ver e rever porque as metáforas
da vida ali presente não se esgotam apenas em retratar a realidade
um mundo globalizado, desterritorializado e do trabalho, mas também
em possibilitar que a sociedade se enxergue e avance como um mar idéias
em busca de uma nova esperança de trabalho, de sobrevivência
e de vida.
BIBLIOGRAFIA
CANCLINI,
Néstor García. Consumidores e cidadãos; conflitos
multiculturais da globalização. RJ: Editora UFRJ, 1995.
Lídia
Basoli
Mestranda em Comunicação pela Unesp- Bauru
(2006)
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