“Blade Runner” de Ridley Scott

(1986)

 

Blade Runner: Pensando o Futuro com Medo

por Jorge Alberto S. Machado e César Schirmer dos Santos

 

 

Introdução

Há filmes que vão além do entretenimento, mostrando cenários que, apesar de fictícios, poderiam ser reais. Blade Runner (Scott 1982 e 1993) é um desses filmes. Ele nos mostra um futuro amedrontador, e possível, nas suas linhas gerais.

Ainda que não tenha sido recebido com muita euforia nos EUA (1), quando foi lançado em 1982, o filme teve relativo sucesso na Europa e no Brasil. O que tornou o filme conhecido não foi seu desempenho nas bilheterias. Sucesso de crítica, o filme, baseado na novela de Philip K. Dick Do Androids Dream of Electric Sheep? (1968), tornou-se um cult movie em pouco tempo, e atraiu a atenção de estudiosos das humanidades. Ambientado em uma atmosfera noir, com cenários arrojados e apurada concepção artística, o filme aborda temas que hoje, passados mais de vinte anos desde seu lançamento, são ainda bastante atuais, como biogenética e ética, as implicações do uso mercadológico da tecnologia, a relação homem-máquina, urbanidade e a devastação ambiental. Ademais, permite interpretações filosóficas e políticas de seu conteúdo, como muitos intelectuais vêm fazendo desde seu lançamento. Embora o filme não se aprofunde tanto em nenhuma destas questões, ele oferece uma oportunidade para a reflexão sobre o futuro da sociedade humana, ao apresentar uma realidade futura “resultante” de tendências contemporâneas.

O filme tem como cenário a cidade de Los Angeles no ano de 2019. A cidade mais parece uma combinação de uma metrópole de primeiro mundo com uma do terceiro, talvez um híbrido entre Los Angeles e Xangai, pela quantidade de chineses em suas ruas e nos outdoors. Poluída, confusa, caótica, ultramoderna, cheia de tipos estranhos, a atmosfera não poderia ser mais sufocante, apontando para uma sociedade moderna onde a busca pela sobrevivência, o individualismo, a anomia e o caos são elementos que se confundem, em uma espécie de radicalização extremada da vida atual nas grandes metrópoles (2).

Blade Runner é também um filme sobre um futuro de exploração espacial. Dirigíveis futurísticos sobrevoam a Los Angeles oferecendo pelos seus potentes autofalantes “Uma nova vida […] nas colônias off-world, a chance de começar de novo numa terra dourada de oportunidade e aventura. Novo clima, instalações de recreação…”.

A Terra, planeta natal da humanidade, é lugar de onde todos os que podem saem. Ficam aqueles que não passam no exame médico, como o brilhante J. F. Sebastian, projetista de replicantes na Tyrell Corp. Ele sofre de “síndrome de Matusalém”, uma doença degenerativa que o faz envelhecer rápido demais. Com 25 anos, ele parece ter o dobro.


Humanos e replicantes têm em comum a origem no planeta Terra. Tirando isto e o fato dos últimos, apesar de semelhantes aos primeiros, poderem ser desmascarados através da aplicação de um teste de Voight-Kampff — no qual se reconhece a diferença nos movimentos involuntários da pupila de homens e andróides —, de resto não há diferenças.

Os humanos saem da Terra em direção às colônias Off-world. Só ficam os que querem, os que não têm como sair ou que são impedidos por motivos de saúde, como J. F. Sebastian. Os replicantes são proibidos na Terra, onde sua presença é coibida pelos blade runners, policiais designados especialmente para encontrá-los e eliminá-los.

No filme, uma grande empresa de biogenética, a Tyrell Corporation, produz, replicantes, andróides cuja inteligência é no mínimo igual a dos cientistas que os criaram, e semelhantes aos homens em tudo, menos nas respostas emocionais (3). Além disso, são muito fortes e possuem habilidades específicas que os fazem úteis para trabalhar em colônias humanas em outros lugares do sistema solar. Para que não cheguem a desenvolver maneiras de lidar com os próprios sentimentos tais como as dos humanos, os replicantes são geneticamente programados para viverem apenas quatro anos. Embora tenham sido criados à imagem e semelhança do homem — são mais perfeitos do que os humanos: “mais humano do que os humanos é nosso lema”, diz seu criador, o Dr. Tyrell —, não são considerados humanos e, por isso, são submetidos a uma espécie de regime de escravidão.

Para garantir sua própria segurança, os humanos mantêm os replicantes como escravos em colônias fora da Terra. No entanto, estes adquirem consciência necessária para se rebelar contra os humanos e ir para a Terra e buscar do seu criador algum meio de estender sua curta existência. Quatro deles decidem voltar à Terra para tentar estender seu tempo de vida. Ao fazê-lo, tornam-se uma ameaça, e devem ser eliminados.

Os replicantes desenvolveram sentimentos nesse curto período, o que os faz solidários uns aos outros com respeito a sua condição “sub-humana” e ao desejo de prorrogar suas vidas. Na Terra, localizam o projetista genético J. F. Sebastian, que os levará ao cientista que os criou, o Dr. Eldon Tyrell. O blade runner Rick Deckard é encarregado da missão de localizá-los e eliminá-los. No início de suas investigações, em visita a Tyrell, Deckard conhece sua última criação, a replicante Rachael. Mais moderna, ela tem a memória — e, portanto emoções — da falecida sobrinha do presidente da Tyrell. Deckard, que tem uma vida solitária na metrópole, acaba se apaixonando por ela.

Brincando de Deus

Uma das questões que chamam a atenção no filme é a possibilidade do homem de criar outros homens e programá-los geneticamente, de brincar de Deus /criador. Embora fisicamente semelhantes aos humanos, os replicantes são seres desprovidos de história, de passado, talvez de alma, mas não de consciência.

Façamos uma distinção entre alma e consciência. A alma é atribuída a alguma coisa a partir de critérios tradicionais. Na atual tradição católica, por exemplo, a alma é atribuída a todos os seres humanos. Mas nem sempre foi assim. Os católicos já usaram critérios étnicos. Houve tempos em que os católicos europeus atribuíam alma aos da sua etnia, e também aos africanos e asiáticos se isso lhes aprouvesse. Mas não a atribuíam aos indígenas, aos escravos e nem mesmo a todos os homens do continente europeu.

A consciência é atribuída a alguma coisa a partir de critérios objetivos. Seres capazes de captar o ambiente através dos sentidos, e também de refletir sobre aquilo que apreendem do ambiente, são plenamente conscientes. Seres capazes de sentir, mas talvez incapazes de refletir sobre o que percebem, são talvez parcialmente conscientes.


Nós, homens, nos atribuímos alma, e, refletindo, nos damos conta da própria consciência. Os replicantes têm consciência, assim como os homens. Isso pode ser objetivamente verificado. Deixemos de lado a questão sobre se aqueles homens de 2019 ainda atribuem alma a si mesmos. Digamos que sim. Será que eles atribuem alma aos replicantes? Provavelmente não. E por que não? Porque eles são considerados apenas uns bonecos, e tratados como escravos, tal como os católicos tratavam os índios da América antes de atribuir alma aos mesmos.

Ironia. A tradição diz que Deus cria o homem a sua imagem e semelhança, e lhe dá uma alma. O homem cria o replicante, ser mais perfeito do que ele mesmo, mas lhe priva de alma. Brincando de Deus, o homem mais parece um demônio.
Por não terem nem história, nem passado, nem tradição, os replicantes não podem atribuir a si mesmos alma. Suas vidas são programadas para serem tão curtas que morrem quando chegam estão a ponto de poderem refletir sobre sua própria metafísica e espiritual.

Os replicantes são seres cônscios de si e de suas limitações. Para seu próprio desespero, a sua morte está programada, definida. A vida para eles é um espetáculo fugaz que mal podem desfrutar. Seu criador, o verdadeiro homem, é um ser egoísta que os fez apenas para deles se servir, a quem, portanto, apenas devem odiar por sua mesquinhez e indiferença ao seu sofrimento. Os replicantes são um produto da ciência e da técnica, amoral em sua essência, e estão no desabrigo das instituições que cuidam da saúde moral dos seres com alma.

De aí, pode-se levantar a primeira questão: quais são os limites da tecnologia, ou da engenharia genética especificamente? Com o mapeamento genético, a possibilidade de se “fazer” homens programados é apenas uma questão de tempo. Basta decifrar as chaves da vida, que é o que se faz hoje. Diante das perspectivas que a biotecnologia oferece, os homens “atuais” são seres “antiquados”. São suscetíveis a doenças de todo tipo, são fracos, têm problemas genéticos. Mas o homem passa, aos poucos, a adquirir o domínio sobre a natureza e sobre sua própria espécie. O conhecimento do genoma humano significa a obtenção das respostas de boa parte dos enigmas da vida, pelo menos dos aspectos biológicos da vida humana, de modo a abrir o caminho para que o homem possa, de alguma forma, projetar seu próprio futuro enquanto espécie.

Esses temas ligados às novas tecnologias nos levam à questão sobre a própria essência ou natureza da tecnologia. Heidegger (1953) traça a diferença entre a tecnologia atual e a tecnologia antiga. As tecnologias antigas eram modos do homem cuidar da Terra. Cuidando da Terra, arando-a, irrigando-a, semeando-a, o homem tinha meios de construir sua própria felicidade.

Já as tecnologias atuais, diferentemente das tecnologias antigas, são modos de se usar a Terra. Na técnica atual, o rio é usado como parte de uma cadeia de geração de energia, ou de um circuito de geração de turismo. Atualmente plantamos e colhemos em um terreno até exauri-lo. Atualmente, o que chamamos de “reflorestamento” nada tem de cuidado com a Terra. É apenas plantio massivo de árvores que serão utilizadas como matéria-prima para se fazer papel.

Os replicantes são “filhos” oriundos da tecnologia atual. Esses filhos não estão aí para serem cuidados, mas sim para serem utilizados. Os terráqueos que se mudam para as colônias off-world ganham replicantes para seu próprio uso. Como diz um dirigível de propaganda: “… totalmente grátis … use seu novo amigo como um servo corpóreo pessoal ou como incansável mão-de-obra no trabalho — o humanóide desenhado sob medida pela engenharia genética especialmente para as suas necessidades”.

A tragédia de Blade Runner é que se considera distante aquele que é, no fim das contas, um igual. O mesmo ocorre com o homem, no estado atual da tecnologia. Ele usa a Terra como se ela fosse uma coisa distante de si, mas não seria ela, ao contrário, próxima,ou melhor, a razão da sua própria existência?

Mas seriam as criações humanas desenvolvidas em laboratório, sejam homens ou seres híbridos, um “novo” homem? Ou não passariam de apenas um “mero experimento”? Teriam ou não alma os seres criados em laboratório — como os replicantes?

Essa última pergunta já foi feita há quatro séculos com respeito aos índios das América e aos escravos da África. A escravidão foi moralmente suportável por muito tempo ao “civilizado” europeu porque, como “selvagens” ou “desprovidos de alma”, os indígenas não eram considerados seres da mesma espécie humana. Somente depois de muito debate no Vaticano, que se concedeu o privilégio da “humanidade” aos povos indígenas. Afinal concluiu-se que eles tinham alma — que inclusive deveria ser salva...

No caso dos replicantes, eles eram produtos de uma empresa, a ela pertenciam e para ela existiam. Produzir replicantes seria um bom negócio, pois poderia poupar o homem dos trabalhos árduos, difíceis ou indesejáveis. Além disso, nada de salários, reclamações ou inconvenientes e contra-produtivos direitos.

Então porque ser contra o uso do trabalho dos replicantes, se facilitam a vida? No filme, não há essa preocupação ética em seus personagens — que fica por conta do espectador —, salvo o que demonstra o policial Deckard, ao se apaixonar por Rachael.

Repertório de mazelas pós-modernas

Blade Runner apresenta um amplo repertório das mazelas pós-modernas que tornam o futuro da espécie humana ou do planeta permeado de dúvidas e incertezas.

Em uma atmosfera nada otimista de uma sociedade moderna, poluída, pós-industrial, formada por indivíduos anônimos e indiferentes, é a combinação da frieza no uso das tecnologias com a precariedade moral e existencial do homem que dá enorme densidade à película. O cenário é uma espécie de radicalização das tendências descritas por Ulrich Beck (1999) daquilo que chama “sociedade do risco” — a modernidade caracterizada por um futuro permeado de incertezas devido à reflexão (no sentido de auto-confrontação) das conseqüências ambientais, sociais indesejáveis do desenvolvimento tecnológico e industrial, irresponsável pelos efeitos que causa.

No mundo de hoje, há problemas de sobra para conjecturar cenários de incertezas e riscos: guerras, miséria, desigualdades sócio-econômicas abissais, centros urbanos abarrotados e violentos, esgotamento dos recursos naturais, individualismo extremado, manipulação genética e terrorismo global. De tais problemas, talvez só sobre o último não haja referência no filme. Ainda sim, nesse ambiente ficcional, poderíamos imaginar os replicantes como espécies de prototerroristas, pois são motivos semelhantes aos deles que levam as pessoas ao terrorismo: falta de esperança no futuro, menosprezo, injustiça e perseguição.

Eliminar os replicantes é uma questão de segurança. Tal como os terroristas de hoje, eles são indivíduos que vêm “de fora”, os “outros”, estranhos à sociedade, com os quais ou não se compartilha os mesmos valores e cujos interesses são opostos ou conflitantes (4). Assim como os terroristas, os replicantes são crias indesejáveis e desesperadas da sociedade moderna, que escapam a seus controles e representam uma ameaça. Em ambos casos, confundem-se com a população — afinal, ninguém é terrorista até que cometa o ato — e têm de agir na clandestinidade. Para se proteger dos deles, o melhor é eliminá-los, empregando os meios mais adequados e as tecnologias mais apropriadas. Terroristas e replicantes têm em comum de carregarem o signo do desespero e da falta de esperança, do medo do futuro, da negação da humanidade e da possibilidade de qualquer entendimento entre os homens (ou com os homens).

Uma nova relação com a tecnologia

O filme exprime mensagens que parecem propor refletir, ou ao menos nos levar a refletir, acerca da necessidade de uma nova relação com a tecnologia. Critica a desumanização que a técnica e sua aplicação — a tecnologia — pode causar. Crítica essa feita pela apresentação da criação tecnológica como homem, isto é, como si mesmo. É como se o filme dissesse que a natureza, o Outro flagelado pelo homem, não é mais do que o Si Mesmo desse mesmo homem.

A tecnologia, como ela é retratada, responde aos interesses dos humanos (indivíduos), empresas, mas não aos interesses da humanidade. Inclusive, retrata uma sociedade desumanizada: a idéia abstrata de humanidade é caracterizada negativamente pela sua própria ausência — o filme aponta a necessidade de buscá-la ao passar a mensagem que, no fundo, a tecnologia desumaniza ou pode desumanizar o homem. Blade Runner não chega a propor um tipo de relação com a tecnologia, até porque não aponta nenhum caminho, é blasé do começo ao fim, apenas deixa a impressão ao espectador, por sua concepção tão sombria da instrumentalização da técnica, da urgência de se construir uma nova relação — quiçá essa seja uma das maiores lições do filme. Quando a tecnologia domina a própria vida ou a própria existência humana, falta pouco para que nos tornemos quase marionetes ou, no extremo, espécies de seres programáveis por ela, cujo desenvolvimento aponta para objetivos que mal conhecemos ou temos uma noção parcial e fragmentada (5). A questão-chave não é a resistência / medo face aos desenvolvimentos tecnológicos, mas como elas podem ser incorporadas aos sistemas de produção e pela sociedade em geral, quais usos lhe serão dados, como servirá ao homem, enfim, quais são seus propósitos.



Mas, se a manipulação genética prevalecer sobre natureza e a história do homem, qual será então a diferença entre um replicante e um humano? Será a capacidade para a convivência social ou a capacidade para o trabalho? Ou a diferença seria apenas de status (humanos x replicantes ou seres autênticos x programados geneticamente)? Em Blade Runner, os replicantes são superiores. Os humanos, além de mesquinhos, parecem obsoletos. São suas próprias limitações que representam a maior ameaça aos humanos. Os replicantes seriam tanto o caminho para a superação de suas limitações como o da própria destruição da espécie. Construir um super-humano ou um homem do futuro seria destruir a si próprio. Eliminar o continuum do homem natural seria algo tão ou mais terrível como permanecer como está e abdicar de toda a tecnologia da biogenética. Como sair disso?

O mais sórdido é que qualquer tentativa de situar uma relação dicotômica homem x replicante, se contradiz e se confunde, na insistência do replicante em humanizar-se — ou equiparar-se ao seu criador — e do homem em desumanizar-se em sua aventura tecnológica, como se os papéis estivessem invertidos.

Uma das cenas da parte final do filme, em que o replicante, tendo a vida do caçador de andróides Deckard em suas mãos, resolve deixá-lo sobreviver, tem grande significado simbólico. O olhar apavorado e a posição indefesa do policial nas mãos do andróide, depois de uma longa luta que terminou em fuga desesperada do humano, põe em evidencia a fraqueza e o fracasso do homem frente à tecnologia. De caçador, o homem passa a caça. A piedade que o homem não tem, tem o “monstro”. Este, o “desprovido de alma”, o andróide, o “produto” — já que eram comercializados por uma empresa — tem mais “humanidade” que o homem, ao conceder a vida ao assassino de seus semelhantes.


A racionalidade como critério

“Penso, logo existo” é um teste para se encontrar em si mesmo a razão. O fato do teste de Descartes não servir para mim mesmo, na situação do filme, é uma boa razão para rejeitá-lo para mim mesmo: não mais utilizar a racionalidade como critério! Que critério utilizar? Outra forma de me distinguir do outro? Propomos, antes, que ao invés de buscar a diferença em relação ao outro, busquemos a semelhança.

Aparentemente, o conflito entre homens e replicantes pode ser reduzido à posse de um objeto descartável. Como diz Bryant, o policial chefe de Deckard, os replicantes são apenas skin jobs, uns bonecos, umas coisas fajutas. Mas há uma abertura para ver sua “humanidade” no filme. Em primeiro lugar, os policiais que os “aposentam” são chamados de blade runners, ou seja, de “corredores sobre a navalha”, isto é, pessoas que precisam seguir por um estreito caminho para realizar seu trabalho (6). Fora deste caminho eles se arriscam a simplesmente assassinar pessoas. Mas, mesmo seguindo sobre o fio da navalha, Deckard sente-se um assassino ao matar Zhora. Além disso, ele se apaixona por Rachael.


Conclusão

O cenário atual nos apresenta uma continuada degradação ambiental e uma continuada apresentação de novos produtos e tecnologias criados apenas para satisfazer a sede de lucros dos acionistas das grandes corporações. Quanto ao indivíduo, destina-se a ele o frugal papel de consumidor imbecilizado pela mídia e guiado em suas escolhas pela publicidade. Com isso, vislumbra-se um futuro permeado de incertezas, em que os avanços tecnológicos não foram capazes de dar garantias de uma existência segura. Pelo contrário, proporcionaram riscos cada vez mais complexos e incontroláveis.

Blade Runner nos faz refletir sobre muitas questões dos tempos brutais em que vivemos, em tempos de muita miséria humana, guerras matanças, destruição lenta da biosfera em um cenário, portanto, de estreitos horizontes para mudanças positivas. O domínio tecnológico, o conhecimento científico e a elucidação os mistérios da vida biológica são notáveis avanços que parecem insistir em se perder no imenso deserto ético e moral em que o homem moderno se vê situado. Talvez seja mais confortável não pensar nessas coisas e apenas viver o presente, o aqui e agora. O filme Blade Runner é incômodo por causa disso: nos faz pensar o futuro com medo. Nos faz pensar o presente com medo.

Notas

1. O filme recebeu duas indicações ao Oscar (categorias melhores efeitos especiais e melhor direção de arte), mas não ganhou nenhum. Os vencedores foram ET e Gandhi, respectivamente. Recebeu também uma indicação ao Globo de Ouro (categoria melhor trilha sonora), mas também não ganhou. O vencedor foi ET.

2. Segundo Carlos Eduardo Lins da Silva (1990), para criar a concepção visual de Blade Runner, Ridley Scott baseou-se nos filmes noir da década de 40 e teve ajuda do ilustrador de HQ Moebius para recriar Los Angeles, além do historiador Dan O’Brien. Ele também se inspirou em artistas de períodos e estilos diferentes como Hieronymous Bosch (1450-1516), o pintor e gravurista inglês William Hogarth (1697-1764), que retratava o cotidiano dos habitantes de Londres do séc. XVIII de forma revolucionária em sua época, e também de Edward Hopper (1882-1967), que descrevia de forma sombria a vida urbana norte-americana das décadas de trinta e quarenta do século passado.

3. No filme, o teste de Voight-Kampff é utilizado para distinguir homens de replicantes através da resposta emocional a certas perguntas.

4. No imaginário de Hollywood, muitas vezes há pouco lugar para a celebração da diversidade. Aquele que não é branco, que não tem nome anglo-americano ou não fala inglês como primeira ou única língua é visto como ameaça. Uma maneira clássica de Hollywood representar o inimigo é dar-lhe um nome, uma face ou um sotaque não anglo-americano. Os “homens maus” de Hollywood têm algo de latino, europeu do leste ou do centro, asiático ou africano, no mais das vezes. De certa maneira, Blade Runner preserva essa iconografia clássica de Hollywood, tornando a própria casa dos americanos em um local estranho, isto é, estrangeiro.

5. Em uma cena curta mas significativa de Blade Runner, a replicante Pris brinca com uma boneca quebrada na casa do projetista genético J.F. Sebastian.

6. É possível que a expressão “blade runner”, oriunda de uma novela de William Burroughs, não queira dizer nada, tendo sido apenas considerada um bom título pelo estúdio, tal como sugere Hill (2002), mas algumas falas de Deckard sugerem que ele, na sua profissão, segue por um estreito caminho que mal consegue distinguir a “aposentadoria” de andróides do simples assassinato covarde.

Bibliografia

Beck, Ulrich (1998) La Sociedad del Riesgo. Barcelona: Paidós.
Heidegger, Martin. (2001) “A questão da técnica.” [1953]. In Ensaios e conferências. Petrópolis e Bragança Paulista: Vozes e Universidade São Francisco. Trad. Emmanuel C. Leão.
Hill, C.N. (2002). “Philip K. Dick: a Comparison between the Novel Do Androids Dream of Electric Sheep? and the film Blade Runner”, http://members.aol.com/cnhill/sf/bladerunner.htm (consultado em 28/01/2005)

Lins da Silva, Carlos Eduardo (1991) “Blade Runner”, in Labaki, A. (org.) Cinema dos anos 80. S. Paulo: Brasiliense.
Scott, Ridley. 1982. Blade Runner. EUA: Warner Studios.
_____. 1993. Blade Runner: director’s cut. EUA: Warner Studios.

Jorge Alberto S. Machado é professor de sociologia da USP
César Schirmer dos Santos
é mestrando em Filosofia pela UFRGS