|
“Duna”,
(Duna)
de David Lynch
(1984)
Eixo
Temático
Apesar
do capital ser capaz de desenvolver à exaustão
a capacidade técnica de dominação da Natureza,
através do desenvolvimento das forças produtivas,
ele não é capaz de abolir seus próprios
pressupostos sociais de desenvolvimento histórico, ou
seja, a divisão hierárquica do trabalho e seus
valores estranhados, baseado no Estado político, classe
e estratificação social, poder político
e expansão colonialista. Tais determinações
sociais aparecem como elementos naturais que perduram no tempo-espaço.
O capital não consegue se desprender de tais estruturas
sociais estranhadas, imersas no passado, que continua, como
tradição. Deste modo, sua sócio-reprodutibilidade
mescla tempo passado e tempo presente, progresso técnico
e relações sociais arcaicas, que se tornam pressupostos
de seu próprio desenvolvimento sócio-metabólico.
Enfim, a temporalidade do capital tende a ser regressiva e retroativa.
O presente tende a repor o passado sob novas condições
sócio-tecnicas, onde vicejam valores passadistas de poder
e dominação de classe.
Temas-chave:
tempo social e desenvolvimento capitalista; técnica e tecnologia;
controle social, hierarquia e tecnologia;
Filmes
relacionados: “Matrix”, dos Irmãos Wachowski;
“Metropólis”, de Fritz Lang; “2001-Uma
Odisséia no Espaço”, de Stanley Kubrick; “IA
- Inteligência Artificial”, de Steven Spielberg; “Eu,
Robô”, de Alex Proyas; “Guerra nas Estrelas”,
de George Lucas..
|
Análise
do Filme
O
cinema de ficção-científica possui algumas características
peculiares. Uma delas é a intertextualidade, isto é,
a trama narrativa do filme Science Fiction (SF) mescla elementos
de outros gêneros, tais como Comédia, Horror ou Policial.
Foi o que conseguimos apreender em nossa análise de Gattaca
– A Experiência Genética. Outra característica
peculiar do SF cinema é a intertemporalidade, ou seja,
a narrativa do filme SF tende a constituir um pastiche da temporalidade.
Ocorre uma disjunção esquizofrênica da temporalidade.
O tempo passado e tempo futuro se mesclam num puro tempo presente.
Aliás, o tempo futuro (e Duna se passa em 10.190 D.C ) é
uma collage bizarra (ou melhor ainda, pastiche, como diria
Frederic Jamenson) de elementos de culturas do passado. É o que
podemos chamar de “canibalização aleatória
de todos os estilos do passado” (expressão utilizada por
Jameson para a arquitetura pós-moderna). O que observamos em
Duna é uma narrativa que constrói sua temporalidade
presente a partir da percepção vívida da diferença
radical de temporalidades passadas.
Em Duna, linhagens aristocráticas (a Casa dos Atreides)
convivem com nobres bárbaros (os degenerados Harkonnen) e nômades
pré-históricos (os Freman). E mais ainda: o reino da heterogeneidade
estilística atinge não apenas a construção
de personagens, mas as próprias formas tecnológicas. Em
Duna, o ecletismo técnico é expresso pela mescla de tecnologias
modernas com técnicas mágicas pré-modernas das
mais complexas. E aliás, no mundo de 10.190 D.C. assistimos ao
“retorno do reprimido”, a presença marcante de técnicas
mágicas da paranormalidade e de uma substância com poderes
sobrenaturais, o “melange”, verdadeiro combustível
do Império (a especiaria redime o homem da dimensão espacial,
pois permite viagens interplanetárias). A “melange”
possui propriedades geriátricas e provoca uma mudança
visível no aspecto das pessoas que se viciam nela, os olhos ficam
com uma única cor: azul. A “melange” é também
a fonte de todo o poder do império. Pois é através
do uso dela que os "navegadores da corporação"
conseguem guiar-se nos interstícios do espaço entre as
estrelas. O “melange”, extraído do planeta Arakis,
conhecido como Duna, é a própria metáfora da abolição
do espaço pelo tempo.
Na verdade, o SF cinema sempre lidou com o pastiche intertemporal. Os
filmes SF conseguiram ser pós-modernos antes da própria
pós-modernidade. Um exemplo é o filme Metropolis,
de Fritz Lang (1926), que transpõe num cenário futurista,
relações sociais de classe do capitalismo industrial do
século XIX. E a saga de Flash Gordon, nos anos 30, lidava
com tecnologias modernas e personagens pré-modernos. Mas, é
o filme Duna, de David Lynch, baseado na obra clássica
de Frank Herbert, publicada em 1965 e considerada a maior e mais completa
saga de ficção-cientifica do século XX, que o pastiche
intertemporal assume proporções significativas. É
como se o cinema SF não conseguisse, em sua estrutura narrativa,
ir além da forma social do capital em sua caracterização
do tempo futuro.
Mas o próprio gênero SF coloca um desafio estético
fascinante: como uma obra de arte pode refletir o futuro de um sistema
sócio-metabólico – o do capital - incapaz de conceber
o futuro num sentido significativo da expressão?
A temporalidade do capital é inalterável, observa o filósofo
István Mészáros. Nesse caso, nas narrativas do
cinema SF – e Duna é um caso típico - o
pleno desenvolvimento das tecnologias modernas convive com caracteres
humanos e relações sociais que pertencem a uma temporalidade
histórica estranhada (como a nossa). Em Duna, a barbárie,
representada, por exemplo, no Barão Harkonnen, convive com a
high techology. A redução dos limites naturais não
elimina a técnicas mágicas. Pelo contrário, o que
percebemos é uma verdadeira regressão para formas primitivas
de relação do homem com a natureza. Pode-se até
sugerir que as figuras grotescas de monstros disformes que aparecem
em Duna não deixam de ser a representação estética
da barbárie num contexto de alto desenvolvimento das forças
produtivas (e destrutivas) do capital como relação social
estranhada.
Portanto, uma de nossas teses fundamentais é que, como gênero,
o cinema SF consegue expressar, de forma típica, as dificuldades
do metabolismo social do capital projetar o tempo futuro, a não
ser como reprodução retrospectiva de sua própria
sociabilidade estranhada e fetichizada (o pastiche é tão-somente
a forma estética adequada). Duna consegue expressar aquilo que
presenciamos em outros filmes de SF como Stars Wars, Mad
Max e outros – o que poderíamos denominar de futuridade
regressiva.
A tecnologia está presente não apenas como poderosos artefatos
de navegação interplanetária e em sofisticadas
armas de poder bélico, mas em habilidades paranormais adquiridas
por alguns escolhidos, geralmente pertencentes à elite dominante.
A divisão hierárquica do trabalho assumiu proporções
cosmológicas. É a representação suprema
– e fantasmática - do estranhamento e do fetichismo dos
nossos dias. E a luta de “classe” – ou de interesses
de casas dinásticas – Atreides, Harkonnen, etc –
ocorre em torno de algo tão primitivo como os conflitos pré-históricos
– a posse de uma especiaria preciosa (e escassa): o “melange”.
É em torno dela que se desenvolve o drama complexo de ambição
e poder imperial.
Em 10.190 D.C. ainda existem Impérios, luta contra a escassez
e inclusive sugestões de um Messias. Como observou Frank Herbert,
em sua entrevista para a The Encyclopedia of Science Fiction Movies,
de C.J. Henderson, “Duna é o drama do Messias”. Mais
uma vez, Duna é uma obra típica de outra característica
peculiar do SF cinema: a fetichização do capital e de
seu metabolismo social. Mais do que uma mera ideologia, o fetichismo
das formas sociais nas narrativas de SF é reflexo de sua disposição
estética. É claro que aparecem como pura ideologia, sempre
presente no cinema SF, mais do que em qualquer outro gênero fílmico
(talvez porque o cinema SF trate de algo tão caro ao capital
– sua impossível futuridade).
A presença de uma especiaria escassa e preciosa em 10.190 D.C.
pode ser tão-somente reflexo mistificado da crise do petróleo,
a poção escassa do Ocidente industrializado (o filme é
de 1984, mas o livro é de 1965). Deste modo, Duna pode ser considerado
uma metáfora mistificada do mundo burguês imerso numa crise
estrutural, de escassez e de barbárie, mas com um alto grau de
desenvolvimento tecnológico, que se mescla com traços/sobrevivências
de culturas pré-modernas.
Não nos detemos em analisar a complexa trama narrativa de Duna,
até porque entre o filme e o livro existe uma diferença
abismal. Inclusive a versão disponível não é
aquela que David Lynch gostaria que fosse exibida – ela foi reduzida.
A versão original do diretor Lynch tinha mais de 3 horas e meia
de duração e era bem mais fiel ao livro, mas acabou sendo
picotada sob as ordens do produtor De Laurentis, resultando em um filme
com pouco mais de 2 horas de projeção totalmente truncado
e incompreensível para quem não leu o livro - o que de
certo modo decretou seu fracasso nos cinemas. Ou seja: a preocupação
em deixá-lo mais atrativo comercialmente é justamente
a razão da sua falta de sucesso.
No final, para aqueles que não leram o livro de 600 páginas
de Frank Herbert, o filme parece ser confuso. A verdade é que
Duna é um livro cheios de nuances e termos complicadíssimos
(tanto que acompanha um glossário no final), onde o enredo principal
é menos importante do que as sub-tramas e alegorias que o autor
injeta em todas as páginas, com diversas referências ao
Islamismo, Judaísmo e Cristianismo (sendo, portanto, precursor
da trilogia Matrix, dos Irmãos Wachowski).
Finalmente, algumas considerações sobre a estrutura de
personagens. O filme – ou o livro – lidam com personagens
coletivos, que pertencem a casas dinásticas ou clãs ou
linhagens aristocráticas (é difícil transpor categorias
históricas para narrativas de temporalidade-pastiche). Em Duna,
a Casa dos Atreides parece ter uma feição ocidentalista;
enquanto o Imperador parece ter feições orientalista,
com décor guilhermino (do kaiser Guilherme, do Império
Alemão pré-1914). Outra clã que aparece em Duna,
é de povos comerciantes, inclusive manobrada pelo Império
para destruir a Casa dos Atreides, é a dos degradados Harkonnen,
humanóides bizarros, bárbaros tecnologizados e sedentos
de sangue. No planeta Duna, vivem os nômades (os Freman), agrupamentos
primitivos, pré-modernos, que vivem no deserto, onde habitam
os vermes gigantes, guardiões da poção “melange”.
São os Fremen que herdarão Duna através do Messias,
representado pelo príncipe Atreides, que escapou de ser morto
pelos Harkonnen ao invadirem o planeta Arakis, ou Duna, enviados pelo
Império. É convivendo com os nômades Freman que
Paul Atreides, o filho do Duque de Atreides, irá se manifestar
como sendo o enviado – o Messias - capaz de libertar Duna dos
interesses materiais do Império.
Para a luta contra os Harkonnen e o Império, os Freman e Paul
Atreides (o Enviado), se utilizarão de elementos da própria
ecologia de Duna – os vermes gigantes do deserto. Paul se utilizará
também de seu poder paranormal – utilizado no sentido instrumental
- e das habilidades guerreiras da tribo dos Freman (o tema do Messias
– ou mediador - persegue o cinema SF cinema, de Metropolis até
Matrix).
Uma curiosidade: a arma poderosa utilizada pelos guerreiros Freman é
acionada pelo grito primal do guerreiro. O que demonstra que, em Duna,
são os elementos naturais que “encapsulam” a high
tecnology e não o contrário. Os vencedores serão
os Freman, agrupamento humano que adotam a forma social primitiva, uma
sociedade tribal, permeada de elementos mitológicos (a espera
do Enviado).
Em Duna, como salientamos, a tecnologia no sentido moderno,
não possui um papel decisivo, pois o que vale é “manipular”,
através de recursos mágico, as forças da natureza.
Em Duna, o fetiche da técnica se interverte, como ocorre
em alguns filmes de SF, em fetiches mágico-naturais, adotando
formas fantástico-primitivas. Nesse caso, o que chamamos de futuridade
regressiva, tem caracterizado os filmes de SF, assume sua forma superior.
Giovanni Alves (2003)
|
|