“Drácula - Principe das Trevas”
(Dracula-Prince of Darkness),
de Terence Fisher
(1965)


"Conde Drácula"
(Scars of Dracula),
de Roy Ward Baker
(1970)

 

 

Eixo Temático

A sociabilidade burguesa possui uma dimensão regressiva que se expressa através da presença e irrupção de formas arcaicas e do passado na temporalidade presente. A literatura (e o cinema) fantástico conseguem expressar isto através do mito do morto-vivo. É um traço ontológico da modernização capitalista preservar, sob novas formas sociais, dimensões estranhadas de épocas históricas pretéritas. O capital se apropia delas para articular novas formas de reprodução sócio-metabólica. O retorno do passado, ou do reprimido, é um nexo sócio-reprodutivo do capital. É através destas articulações espaço-temporais que o sistema social se reproduz e busca sua legitimação psicossocial. Se nas épocas pré-capitalistas, o passado e a tradição eram apropriados como dimensões compositivas do tempo presente, elos de identidade cultural que contribuiam para dar um sentido à vida social, hoje, sob o modo de sociabilidade capitalista, passado e tradição aparecem como nexos estranhados, verdadeiras sobrevivências do estranhamento, quase-fetiches que ameaçam o tempo presente e a modernidade burguesa. Entretanto, tal ameaça "externa", possui uma função social sócio-reprodutiva, contribuindo para legitimar o avanço da modernização do capital. A presença do atraso se dá não apenas no plano temporal, mas no plano sócio-espacial, com o cerco (e ameaça) da civilização moderna do capital, pelos espaços periféricos, atrasados e subdesenvolvidos, sedimentos da tradição e da suposta "escuridão cultural".

Temas-chave: barbárie e civilização; capitalismo e tempo social; tradição e modernização capitalista; racionalidade e irracionalidade social.

Filmes relacionados: Nosferatu, de F.W. Murnau.

Análise do Filme

O horror de Drácula é um horror gótico baseado num romance clássica da literatura fantástica, publicado em fins do século XIX por Bram Stoker (“Drácula”, é de 1897). Foi um período de alterações significativas no processo de desenvolvimento do sistema capitalista, o imperialismo, que conduziria o mundo para a 1a. Guerra mundial e para a barbárie do século XX. Vivia-se naquela época um período de grandes transformações sócio-históricas devido a II Revolução Industrial. Cada vez mais a ciência e a tecnologia afirmavam seu poder sobre a Natureza, seja ela o tempo ou o espaço. Como diria Weber, o mundo se desencantava de modo acelerado.

Bram Stoker foi buscar seu material literária em lendas sobre Vlad Drácula, lendas da Europa central, que representava, de certo modo, o “retorno do reprimido”. O mal que atingia o Ocidente vinha das profundezas macabras da periferia capitalista e pertencia a um passado distante, de cariz aristocrático (Drácula era, antes de mais nada, um conde). O personagem Drácula representava a forma primordial do Mal, que seduzia e dominava suas vitimas utilizando recursos naturais, de uma Natureza noturna (Drácula possui a alcunha de Senhor das Trevas) atingida pela civilização da luz, cuja eletricidade, um dos grandes inventos da II Revolução Industrial; se dissiminava e transfigurava o cenário urbano-industrial. Drácula representava uma natureza insurgente no interior do próprio Ocidente tecnificado (em sua odisséia de horror, Drácula não lidava com artefatos tecnológicos para destruir).

Mas apesar de sua “exterioridade” acidental (Drácula veio da periferia do sistema capitalista), e de sua representação gótica, o personagem de Bram Stoker possui um sentido profundamente moderno. Tal como o capital, que Marx alcunhava de Moloch, deus fenício que exigia constantes sacrifícios humanos, Drácula se reproduz sugando sangue de homens e mulheres. Sangue é a representação simbólica do trabalho vivo. Inclusive, Marx observa que força de trabalho é “fermento vivo”, capaz de despertar os mortos, isto é, os meios de produção, criando mais-valor. Enfim, Drácula, tal como o capital, era um morto-vivo (ou fetiche?) que consumia homens e mulheres.

Deste modo, o personagem de Bram Stoker não deixa de ser a alegoria típica do fetiche capital, transfigurado num personagem pré-moderno, ante-diluviano, de cariz tradicional (o que significa, de certo modo, que o capital se apropria, para sua reprodução sócio-metabólica, de elementos da tradição, do passado morto que tanto oprime os vivos, como bem destacou Comte e Marx). E o cinema se apropriou da figura de Drácula, criada por Bram Stoker, para fazer inúmeros filmes no século XX.


Um dos ciclos clássicos de filmes sobre o Conde Drácula foi o da produtora inglesa Hammer. Os filmes eram baseados nos caracteres do personagem Drácula criado por Bram Stoker, mas o roteiro era livre, tendo em vista que criava-se todo um drama de horror em cima de variações temáticas.

O primeiro filme da série intitulou-se “Horror de Drácula”, e é de 1958. Depois vieram The Brides of Drácula (1960), (Drácula, Principe das Trevas - Dracula, Prince of Darkness (1965); Dracula has risen from the grave (1968); Taste the Blood of Dracula (1969); (O Conde Drácula -Scars of Dracula (1970); Dracula A.D 1972; e o ultimo Satanic Rites of Dracula (1973).

Nossa tese é que cada época histórica se apropria, de um determinado modo, dos caracteres criados por Bram Stoker. Os dois filmes que utilizaremos para uma pequena análise pertencem ao ciclo da Hammer e possuem como ator principal no papel de Drácula, Christopher Lee.
O primeiro é de 1966, “Drácula, o príncipe das trevas”, dirigido pelo competente Terence Fisher. O segundo, “Conde Drácula”, é de 1970, dirigido por Roy Ward Baker. Eles primam pela qualidade das produções da Hammer e hoje são cult movie. Foram realizados em dois momentos diversos do período de desenvolvimento do capitalismo do pós-guerra.

O primeiro, “Drácula – O Príncipe das Trevas”, o terceiro do ciclo da Hammer, foi produzido em 1966, um período de ápice da exuberância do capitalismo ocidental. Possui ainda um décor clássico. O conde Drácula representa algo a ser combatido pela comunidade local. O vampiro é identificado como algo a ser combatido de forma sistemática, quase“científica” (para eliminar – ou afastar - vampiros se utilizam determinadas técnicas, assim nos ensina o padre Sandor, representado por Andrew Keir). Foi com uma dessas técnicas – imersão em água corrente - que o padre Sandor, com conhecimento de causa, consegue eliminar Drácula. Diferentemente da população local, que demonstra pavor e apatia, o padre Sandor, alia-se ao jovem Charles Kent, um inglês cujo casal de amigos tinha sido trucidado pelo vampiro para, de forma “científica”, eliminar o vampiro em seu castelo.

Um outro personagem a ser destacado é um dos serviçais do Conde Drácula, Klove, um mordomo convencional, de estilo inglês. Nesse filme, Drácula possui como fiéis serviçais o mordomo Klove e um “discípulo”, um velho artesão alucinado, encarcerado no mosteiro.




No segundo filme, “Conde Drácula”, de 1970, temos uma diferença de quatro anos em relação ao outro filme (“Drácula – Príncipe das Trevas”). Nesse meio-tempo ocorreram transformações significativas no cenário histórico-cultural do capitalismo tardio. Nesse período ocorreram os primeiros sinas de crise sistêmica da sociabilidade burguesa. Destacamos o acirramento da Guerra do Vietnã, os acontecimentos de maio de 68, ascensão e dissolução dos The Beatles...Enfim, the dreams is over. E o ciclo da Hammer entra em seu período final, com o caractere de Drácula desgastado e incorporando um estilo de horror mais bárbaro.

O filme “Conde Drácula”, dirigido por Roy Ward Baker, de 1970, é anunciado como um dos mais sanguinolentos da série Drácula. O apelo a sangue é visível em algumas cenas, quase já prenunciando os filmes de horror das décadas seguintes, como o clássico O Massacre da Serra Elétrica, etc (é importante salientar que nessa linha de horror dos mortos-vivos, em 1968, foi lançado o clássico A Noite dos Mortos-vivos, de George Romero).

Em “Conde Drácula”, a representação estética do horror clássico incorpora elementos impressionistas, quase decadentistas. Mas não é apenas o décor que é atingido pelo novo espírito do tempo. A própria caracterização de Drácula possui um certo matiz. O vampiro é apenas um inimigo pavoroso que mora ao lado, alguém com a qual a comunidade local convive, mas à distância. É um estranho tolerável que apenas se procura evitar. A passividade da população local atinge até mesmo a figura do padre, que evita enfrentar o vampiro, apelando apenas para orações não muito eficientes. É uma figura passiva e resignada, mas ainda horrorizada, com a representação do Mal (é bastante evidente o contraste com a figura ativa do padre Sandor, de “Drácula, o príncipe das trevas”).


Drácula seria a própria modernidada perversa, tolerável em sua absurdidade ontológica. Falta no filme “Conde Drácula”, a insurgência humana típica contra o Mal. Mesmo quando ela ocorre, é assistemática, casual e oportunista. Novamente os atingidos são jovens incautos – sempre jovens casais perdidos – e totalmente ignorantes sobre os perigos do castelo macabro. Não é perceptível uma “ciência” do vampiro, técnicas para combate-lo. Até um certo momento, o poder de Drácula é quase-absoluto. No final, ele é derrotado, casualmente, por um raio que atinge uma lança de metal em suas mãos. O vampiro morre eletrocutado.

Além do apelo sanguinolento no décor, o vampiro Drácula é cercado por mulheres voluptuosas e exuberantes. Aliás, nesse filme, além de Klove, Drácula possui uma “discípula”- vampira, destruída por ele ao ser pega em “traição” (crise de hegemonia?). O filme vincula a libido e a cor vermelha (de sangue, mas também da insurgência operária?) - com o Mal de Drácula (é curioso que as vitimas de Drácula, no filme, são sempre personagens de caráter libertino, como o jovem Paul Carlson e a filha do dono da estalagem local, o que sugere um enredo moralista).

A passividade local não atinge só a figura do padre, mas da policia local, que foge da região do Castelo. A caracterização de Klove é curiosa. Diferentemente do Klove de “Drácula – Príncipe das Trevas”, o serviçal de Drácula é um personagem desgrenhado, nada parecido com o estilo clássico do mordomo Klove do filme de 1965. Klove aqui é quase voyeur, fascinado pela gravura da bela jovem Sarah Fremsen, próxima vítima de Drácula. É por ela que Klove se insurge contra o Mestre. É um detalhe curioso, pois demonstra que, apesar do poder quase absoluto de Drácula sobre seus “discípulos”, ele enfrenta dissensões – uma crise de hegemonia? - em suas próprias hostes discipulares. Klove é movido pelo desejo reprimido e pelo ódio ressentido pelo Mestre que o trata como um animal. Enfim, é uma caracterização decadentista do serviçal de Drácula.

A diferença de décor e de caracterização entre os dois filmes da série Drácula da Hammer não é meramente casual. Decorre de uma forma particular-concreta de se apropriar do caractere clássico da figura de Drácula, mediada pelo espírito do tempo histórico, de crise do mundo burguês, de elementos do entorno político e cultural que se incrustam no enredo e no estilo do vampiro. No resto, o interessante da serie da Hammer é que ela cobre todo um período significativo do capitalismo do século XX – do seu ápice até sua crise, a crise da alta modernidade. Através dela é possível apreender, através desses e outros detalhes a forma de ser Drácula.


Giovanni Alves (2003)