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Blade
Runner - O Caçador de Andróides,
(Blade Runner)
de Ridley Scott
(1986)
Eixo
Temático
O
desenvolvimento da sociedade do capital é
o desenvolvimento ampliado de suas contradições
sociais, seja no campo da técnica e da
tecnologia, seja no da sociabilidade e subjetivadades
humanas e também do ecossistema urbano-social. O estranhamento
atinge o trabalho e a reprodução social, o que
significa que desefetiva a memória e a identidade do
homem, dilacerando seus referentes de espaço-tempo,
comprimindo-os e imprimindo neles sua marca indelével.
A manipulação de homens e coisas assumem dimensões
cruciais. A sociedade burguesa hipertardia tende a se tornar
uma imensa coleção de múltiplos objetos-mercadorias
complexas criadas pelas novas tecnologias de engenharia genética.
No limite, a produção de mercadorias
atinge a produção de supostas inteligências
artificiais e de objetos-andróides no limiar da hominidade.
Na verdade, na medida em que não se abole o sistema
do capital, ele tende a instituir formas sociais estranhadas
mais desenvolvidas, abrindo um campo de hominização
dessumanizada (o que é a própria bárbarie
social).
Temas-chaves:
técnica e tecnologia, capital e processo civilizatório,
ecossistema social e contradições do capital,
identidade e memória social, trabalho estranhado e
tempo de vida.
Filmes
relacionados: “Matrix”, dos Irmãos
Wachowski; “Metropólis”, de Fritz Lang;
“2001-Uma Odisséia no Espaço”, de
Stanley Kubrick; “IA - Inteligência Artificial”,
de Steven Spielberg; “Eu, Robô”, de Alex
Proyas; “Gattaca- A Experiência Genética”,
de Andrew Niccol.
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Análise
do Filme
Blade
Runner,
de Ridley Scott (1986), é um dos filmes cult da década
de 1980, mesclando policial noir e ficção-científica
na Los Angeles de 2019. Logo na tela abertura, uma apresentação
do problema do filme: “No inicio do século XXI a Tyrel
Corporation criou os robôs da série Nexus virtualmente
idênticos aos seres humanos. Eram chamados de replicantes. Os
replicantes Nexus 6 eram mais ágeis e fortes e no mínimo
tão inteligentes quanto os Engenheiros genéticos que
os criaram. Eles eram usados fora da Terra como escravos em tarefas
perigosas da colonização planetária. Após
motim sangrento de um grupo de Nexus 6, os replicantes foram declarados
ilegais sob pena de morte. Policiais especiais, os blade runners,
tinham ordens de atirar para matar qualquer replicante. Isto não
era chamado execução, mas sim ‘aposentadoria’.”
A seguir, aparece a data (e local) da trama de Blade Runner –
Los Angeles, novembro de 2019. Pelo visto, o filme possui uma estrutura
narrativa simples. Rick Deckard (interpretado por Harrison Ford),
é caçador de replicantes, ou blade runner, destacado
para “aposentar” um grupo de replicantes Nexus 6 que fugiram
do seu local de trabalho. Sob o comando do replicante Roy Batty (interpretado
por Rudger Hauer), os Nexus 6 buscam prolongar seu tempo de vida.
Apesar de serem tão ágeis, fortes e inteligentes quanto
qualquer ser humano, os replicantes têm apenas quatro anos de
vida.
Ao lado desta trama principal, podemos destacar uma trama secundária:
o envolvimento afetivo de Deckard com Rachael (interpretada por Sean
Young), replicante, secretária de Tyrel, dono da poderosa corporação
industrial produtora dos Nexus 6 (Tyrel diz: “Nossa meta é
o comércio. Nosso lema é ‘mais humanos que os
humanos’”).
Blade Runner é um filme de caçada humana, onde,
de certo modo, todos buscam algo: Deckard busca encontrar os replicantes;
mas percebemos também que ele busca a si próprio. E
persegue o amor de Rachael, que está imersa na busca de sua
identidade inexistente. E os replicantes Nexus 6 buscam desesperadamente
ter mais tempo de vida. Enfim, Blade Runner é uma pequena odisséia
de homens e mulheres, humanos e pós-humanos, em busca da sua
identidade perdida.
É
um filme de ação intensa que contém uma profunda
reflexão filosófica sobre o problema da identidade do
homem, debilitada pelo descentramento do sujeito humano diante da vigência
das tecnoestruturas burocrático-corporativas do mundo do capital.
É o caso de Deckard, individuo perdido, solitário, obrigado
pelos dispositivos policiais e corporativos a “aposentar”
os replicantes (apesar de ter-se aposentado, no sentido usual do termo,
Deckard é convocado a utilizar sua habilidade de investigador
policial, ou melhor de blade runner, para caçar os Nexus
6). Sua vida pregressa é obscura, escondendo talvez algo incriminador,
pois percebe-se que o convencimento de Deckard é um jogo de chantagem
feito pelo chefe de polícia de LA. Como diz ele: “Conheço
o jogo meu chapa. Se não topar, está acabado.”)
Enfim, o cenário distópico de Los Angeles em 2019 é
opressivo, onde a individualidade humana é tão-somente
uma sombra molhada pela constante chuva negra, decorrente de um ecossistema
devastado. Como construção histórica, a identidade
do homem como sujeito da modernidade prometeica, encontra-se irremediavelmente
obliterada. A distopia noir de Blade Runner tende a negar, em si, qualquer
identidade do homem consigo mesmo. O sistema do capital, com suas derivações
destrutivas no plano do ecossistema, coloca no centro do cosmo, o fetiche
das coisas, isto é, as tecnoestruturas urbano-corporativas com
seus aparatos policiais e de manipulação midiática,
como, por exemplo, o out-door móvel que preenche a paisagem superior
da cidade e insiste em anunciar as maravilhas de paraíso distante.
Diz,
logo no inicio do filme, a mensagem publicitária: “Uma
nova vida espera por você nas colônias interplanetárias.
A chance de começar de novo numa terra dourada de oportunidades
e aventuras! Vamos para as colônias!”. E a mensagem do grupo
Shimago-Dominguez Corporation conclui dizendo: “Ajudando a América
a entrar no Novo Mundo”.
Pelo que se percebe, a crise de identidade não é apenas
de homens e mulheres, de humanos e pós-humanos, mas a crise de
identidade atinge inclusive o próprio Estado-nação,
ou seja, os EUA, onde é perceptível a presença
marcante (e dirigente) de estrangeiros (japoneses e chicanos). Na verdade,
os EUA não são mais o Novo Mundo, mas sim as colônias
interplanetárias criadas pelas corporações industriais
(com certeza, de acesso seletivo e excludente).
Em
Blade Runner, logo no inicio, são destacadas as luzes
de néon de propagandas das corporações industriais,
emoldurando um cenário urbanóide tão opressiva
quanto a chuva ácida persistente e as vias urbanas cheias de
transeuntes, um imenso bazar desterritorialziado, tecno-asiático,
de incrustações mafiosas, com bairros decadentistas, com
prédios abandonados ocupados por ateliers hightech de fornecedores
de ponta das corporações industriais (por exemplo, a oficina
hightech de J. F. Sebastian está num prédio abandonado,
local em que ocorrerá o duelo derradeiro entre Deckard e o replicante
Roy). Na verdade, a Los Angeles de 2019 é uma imensa Chinatown,
de homens e mulheres incapazes de migrar para o paraíso distante,
outras terras privilégio territorial da classe dos capitalistas
e congêneres.
É interessante que, em Blade Runner, a clivagem de classe
assume, de forma radical, dimensões sócio-territoriais:
os homens estranhados, despossuídos, embora proprietários
de força de trabalho ou de mercadorias que vendem no bazar global,
de fato, herdarão a Terra, mas uma Terra devastada enquanto ecossistema,
pela lógica do capital predador. Estamos diante do resultado
supremo da sociedade de classe. Diante de um espaço territorial
exaurido no decorrer de uma modernização predatória,
os capitalistas decidem “curtir” sua vida (e uma suposta
identidade humana) em paraísos distantes,”...terra dourada
de oportunidades e aventuras”, colônias espaciais, artifícios
urbano-sociais, servidos por uma coorte de replicantes servis, novos
servos pós-modernos, êmulos funcionais de homens e mulheres
(a desterritorialização do capital se expressaria na própria
interversão do Lar em Terra Estrangeira, como salientamos acima
– a Los Angeles de 2019 não parece ser a América
e os que habitam a Terra parecem ser meros estrangeiros). O capital
tende sempre a criar novas fronteiras de colonização para
si, mesmo que possuam o sentido ilusório de um “Novo Mundo”.
O ilusionismo social é a base da subjetivação estranhada.
Mas
a identidade humana é debilitada não apenas pelo
cenário distópico da Los Angeles de 2019, com seu urbanismo
opressor e sua humanidade non-sense (o que é o homem sem a utopia?),
mas pelo próprio desenvolvimento tecno-científico e da
engenharia genética que criou os novos objetos vivos, os replicantes,
imagens perfeitas do homem (ou como disse Tyrell: “mais humano
que os humanos”), objetos técnicos complexos que desencantam
irremediavelmente qualquer idéia de uma unicidade humana (Walter
Benjamin já demonstrou que a reprodutibilidade técnica
tende a ocasionar a perda da aura da obra de arte e diríamos
nós, da própria vida, no caso de replicantes).
Os avanços da técnica tendem a desencantar, mas, de forma
contraditória, afirmam a identidade do homem, como iremos verificar
no decorrer de Blade Runner. Podemos dizer que é através
da experiência de vida dos replicantes que tende a ocorrer a apreensão
da identidade perdida, ou em processo de perda, do homem. Na verdade,
o homem se encontra através de seus objetos vivos (uma contradição
em termos). É no decorrer desta busca desesperada dos Nexus 6
que conseguimos apreender o significado (e valor) da experiência
humana.
Ora, nós temos o que eles buscam: tempo de vida e memória.
Esta é base da hominidade em Blade Runner. Mas o que
nós temos é passível de debilitação
sob o sistema do capital. O tempo de vida se interverte em tempo de
trabalho e a memória se degrada por conta da presentificação
crônica instaurada pelo sócio-metabolismo do capital.
Em Blade Runner, os replicantes, embora não sejam do
gênero humano, mas sim objetos técnicos complexos, produtos
do trabalho humano, da engenharia genética e de seus avanços
fantásticos, reivindicam um atributo elementar da hominidade:
tempo de vida. O tempo é o campo de desenvolvimento humano, já
destacava Marx. Terem apenas quatro anos de vida, como os Nexus 6, é
muito pouco para inteligências ágeis e complexas que sonham
alcançar a almejada hominidade.
É claro que tal discrepância entre potencialidades de desenvolvimento
e tempo de vida é dilacerante. A busca por mais tempo torna-se
uma “estranha obsessão”. Tyrel reconhece tal dilema
dos replicantes quando diz a Deckard: “...eles são emocionalmente
inexperientes, têm poucos anos para coletar experiências
que nós achamos corriqueiras. Fornecendo a eles um passado criamos
um amortecedor para sua emoção e os controlamos melhor.”
Na verdade, o objetivo de Tyrell é controlar sua criação,
os Nexus 6, evitando que tal “estranha obsessão”
signifique motins (como ocorreu com os seis replicantes “caçados”
por Deckard). A manipulação da memória é
capaz de amortecer tal sofrimento psíquico e controlar suas disposições
insurgentes. Ao fornecer um passado para os replicantes, a Tyrell Corporation
manipula sua memória e os controla melhor. É interessante
a sugestão do filme Blade Runner em considerar a manipulação
da memória através da atribuição de um passado
imaginário, prática intensiva dos dispositivos midiáticos
do sistema do capital, como uma forma de controle social.
Mas a ciência humana de Blade Runner está imersa num paradoxo
(o paradoxo de Blade Runner): ainda não conseguiu compatibilizar
vida intensa e maior inteligência com maior tempo de vida. Ao
reivindicar mais tempo de vida (“o criador pode consertar a criação?”
– pergunta o Nexus 6), o replicante Roy ouve de seu criador Tyrel
o seguinte: “Fazer alterações na evolução
de um sistema orgânico é fatal. Um código genético
não pode ser alterado depois de estabelecido. Quaisquer células
que tenham sofrido mutações de reversão dão
origem a colônias reversas, como ratos abandonando o navio...”
E Tyrel conclui: “A luz que brilha o dobro arde a metade do tempo.”
O diálogo entre Roy e Tyrell é uma das cenas mais significativas
de Blade Runner. Expressa o lancinante paradoxo de Blade Runner (diz
Tyrel: “Você foi feito o melhor possível. Mas não
pode durar”). É a suprema contradição entre
o desenvolvimento complexo do processo civilizatório e das forças
produtivas do trabalho e a forma social do capital. É uma aguda
injustiça ter tanta inteligência e intensa ânsia
de viver e tempo de vida tão curto. Na verdade, os replicantes
atingiram, tal como Hal 9000 em 2001-Uma Odisséia no Espaço,
o limiar da hominidade. E tal como Hal 9000, se rebelam e são
“desligados” (ou “aposentados” – no jargão
da Tyrel Corporation).
Ora,
Roy (e Tyrell) estão diante de um limite objetivo da engenharia
genética (como ele expressou no diálogo acima). É
claro que Tyrell está justificando a impossibilidade de alterar
o código genético de Roy e de seus amigos replicantes.
O que não significa a impossibilidade de altera-lo para as demais
gerações de Nexus 6 (a reivindicação dos
replicantes insurgentes em Blade Runner é meramente
contingente – eles querem mais tempo de vida para si e não
propriamente para a classe dos replicantes). Insatisfeito com Tyrell,
Roy mata seu criador.
O drama dos replicantes é o drama humano. Em Blade Runner,
como já destacamos, é através do drama de seus
objetos técnicos inteligentes que apreendemos a tragédia
humana. Ao ouvir de Tyrell que não podem obter um tempo de vida
extendido, os Nexus 6 colocam-se diante de uma impossibilidade concreta
dada pelo estágio de desenvolvimento da engenharia genética.
Existe, deste modo, um limite técnico – mas perguntaríamos:
é apenas um limite técnico ou tecnológico?
Nesse caso, merece a distinção entre técnica
e tecnologia, onde a tecnologia é a forma social da
técnica. E numa situação de contradição
aguda entre forma social do capital e desenvolvimento humano humano-genérico,
a própria tecnologia colocaria limites irremediáveis à
técnica. Eis mais uma determinação da tragédia
dos Nexus 6.
Enfim, não é suficiente o “cogito ergo sum”
(como disse a replicante Pris para J.F. Sebastian: “Penso, Sebastian,
logo existo”). Ou seja, não basta apenas “pensar
para existir” (a referência sarcástica à famosa
frase de Descartes sugere uma critica do racionalismo cartesiano, base
da filosofia do sujeito e da civilização do capital).
Estamos diante de uma aguda contradição: o homem demonstrou
ser capaz de dar a vida, mas não conseguiu ainda ser capaz de
dar-lhe um sentido. Ou melhor, o homem ainda não se tornou capaz
de constitui um campo de desenvolvimento humano, onde a vida possa ser
plena de sentido. Os Nexus 6, em seus curtos quatro anos de vida útil,
estão condenados a sofrer de forma infinitamente intensa esta
experiência trágica. Talvez nós, homens e mulheres,
possamos sofrê-la de forma mitigada.
Os replicantes podem ser considerados a síntese intensa da tragédia
humana. É o que a biotecnologia complexa de Blade Runner conseguiu
demonstrar. A morte de Tyrel é uma morte metafísica. A
cena do criador sendo dilacerado pela própria criatura é
uma das mais significativas cenas do cinema do século XX. É
um gesto supremo de insatisfação existencial. É
um gesto totalmente absurdo, como a própria experiência
de ser replicante em Blade Runner. Ao esmagar o cérebro de Tyrell,
Roy dilacera (e contesta) a perversidade da inteligência humana.
Em
Blade Runner, como salientamos acima, percebemos a aguda contradição
entre o desenvolvimento das forças produtivas do homem, capaz
de criar vida inteligente complexa, e as relações sociais
capitalistas imersas na lógica do controle do tempo e do tempo
restringido em função da utilidade do capital. Mas é
importante destacar o seguinte: a incapacidade da ciência e da
técnica da Tyrell Corporation em extender a vida dos replicantes
não é apenas um dado objetivo, mas é algo socialmente
determinada pelo sistema do capital.
Como dissemos, seria impossível alterar o sistema orgânico
de Roy, por exemplo, para garantir-lhe mais tempo de vida; mas nada
impediria que novas gerações de Nexus 6 pudessem ter um
tempo de vida mais extendido. O que sugere que a afirmação
de Tyrell de que “a luz que brilha o dobro arde a metade do tempo”
é tão-somente uma afirmação ideológica
(Pris, em certo momento num diálogo com J.F. Sebastian, chegou
a dizer: “Não somos computadores, Sebastian, somos seres
vivos” – negando, portanto, o caráter fetichista
dos replicantes).
Enquanto mercadorias complexas, os replicantes estão submetidos
à lei do valor. Portanto, devem ter um tempo de vida útil
restringido, principalmente quando, na Los Angeles de 2019, deve-se
estar sob a vigência plena da tendência decrescente de queda
da taxa de utilização decrescente do valor de uso das
mercadorias, como observa Mészáros. Deste modo, mesmo
não o sabendo, não é apenas contra a perversidade
dos limites objetivos da ciência e da técnica da Tyrell
Corporation que se revoltam os replicantes, mas contra a lei do valor
e a lógica contraditória do capital, que frustra as promessas
de uma vida plena de sentido, seja para homens, seja para os replicantes
Nexus 6, numa etapa avançada do processo civilizatório.
É
interessante observar que um instrumento capaz de identificar os replicantes
Nexus 6 é um aparelho de leitura da íris dos olhos. Um
detalhe: a presença do olhar em Blade Runner é marcante,
não apenas pelo fato dos replicantes serem identificados através
da análise de sua íris, mas pela cena de abertura do filme,
que mostra um close-up magistral dos olhos de Deckard contemplando o
cenário sombrio de Los Angeles. Em sua íris se reflete
a distopia da América. Na verdade, como se diz, a imagem dos
olhos é expressão da “janela da alma”, da
subjetividade avassalado do homem diante do sistema do capital. A presença
deste olhar que ocupa a extensão da tela é marcante também
em “2001 – Uma Odisséia no Espaço”.
Assim como sugerimos uma aproximação entre os Nexus 6
e HAL 9000, podemos fazer o mesmo entre Deckard e Frank, personagem
do filme de Stanley Kubrick.
Através
de um teste de perguntas e respostas e do aparelho de leitura da íris
dos olhos, utilizada nas sessões de interrogatórios pelos
policiais blade runner, se busca verificar não apenas relatos
de memória, mas a coerência das respostas dadas (o que
sugere uma atitude-padrão no mundo social de Blade Runner).
“É um teste criado para provocar uma resposta emocional”,
como observa o blade runner. Estamos diante de um instrumento de aferição
da socialidade e da consciência coletiva, de valores e atitudes
sociais politicamente corretas (no sentido durkheiminiano). O que significa
que, no mundo social de Blade Runner, a identidade humana é constituída
não apenas por um lastro de memória pessoal, mas por um
arcabouço de socialidade e de memória coletiva, background
de reações emocionais (e lingüísticas) previsíveis.
Ora, os replicantes não possuem tais lastros da experiência
humana. Aliás, podem até possui-las, mas são meras
próteses, implantes assumidos de outros homens e mulheres. Por
exemplo, a experiência de memória de Rachel é um
implante da experiência de vida da sobrinha de Tyrell (Rachael
chega a dizer, imersa em crise de identidade impossível: “Não
sei se sou eu ou a sobrinha de Tyrell”). Enfim, suas memórias
pessoais não pertencem a si, mas são de outrem (Deckard
diz para Rachael: “... não são suas memórias,
são de outra pessoa”). Eis um agudo estranhamento dos replicantes.
Eles não escolheram suas memórias. Mas, afinal, quem as
escolhe? – como poderia nos dizer Gaff (o policial, interpretado
por Edward James Olmos).
Deste
modo, Rachael está diante de certo estranhamento. Ela sente-se
profundamente incomodada com sua condição replicante.
É próprio da sua natureza, ser incapaz de possuir memória
de vida pessoal única. Para ela, a memória é um
simulacro expresso em imagens fotográficas. Na verdade, Rachel,
como o mundo midiático de Blade Runner, está totalmente
imersa num mundo de imagens fotográficas (basta verificar, por
exemplo, os detalhes do escritório do chefe de policia de Los
Angeles que conversa com Deckard, logo no inicio do filme e do próprio
apartamento de Deckard – a presença de inúmeros
quadros de fotografias é marcante, o que pode nos levar a refletir:
se seriam eles todos replicantes; ou será que são meros
homens em processo de desesfetivação de sua identidade
humana pela corrosão da memória pessoal ou pela manipulação
avassaladora de suas experiências de vida passada?).
Mas, as fotografia da replicante Rachael são necessárias
para afirmar para si própria o simulacro de sua identidade pessoal.
Na verdade, tais representações, ou melhor, signos, de
memória, são quase uma extensão de si. O que se
coloca, a partir da experiência de Rachael em Blade Runner é
o seguinte: até que ponto nossas memórias pessoais são
nossas e não representações (ou signos) protéticas,
implantadas pelo complexo midiático vigente do sistema do capital,
que produzem, por exemplo, nostalgia de um tempo não-vivido,
mas percebido no plano imagético? Na verdade, como percebemos,
o mundo social de Blade Runner é o mundo da aguda manipulação
da subjetividade.
É a chegada de Deckard que irá problematizar a condição
replicante de Rachael. Ele sente amor por ela. Por isso Deckard irá
ensina-la a socialidade dos afetos, quase para dar completude ao simulacro
de sua identidade humana. Nesse caso, o que parece ser, tende a se tornar..
De fato, ao agir como mulher, Rachael tornar-se-á mulher. Em
Blade Runner, a afirmação da hominidade ocorre através
da práxis auto-consciente, reflexiva e mimética.
Neste momento, estamos diante da pedagogia da práxis mimética,
aquilo que Aristóteles considerava fundamental no próprio
ato da educação. Em Aristóteles, a arte de aprender
se reduz a imitar por muito tempo e a copiar por muito tempo. Diz Vergnières,
a respeito da ética de Aristóteles: “Adquire-se
tal ou qual disposição ética agindo de tal ou qual
maneira. O caráter não é mais o que recebe suas
determinações da natureza, da educação,
da idade, da condição social; é o produto da série
de atos dos quais sou o principio. Posso ser declarado autor de meu
caráter, como o sou dos meus atos.” (VERGNIÉRES,
1999). Ao ensinar a Rachel a socialidade dos afetos através da
formação de hábitos, da imitação,
de ações ponderadas, Deckard se contrapunha à imposição
da natureza dada, do destino inscrito pela Natureza ou pela lógica
da tecnologia.
No
caso da distopia de Ridley Scott, existe um intenso jogo de manipulação,
objetivo e subjetivo. O ato de manipulação não
ocorre apenas na dimensão da exterioridade (a manipulação
que outrem exerce sobre mim, como é perceptível nas propagandas
de néon em Blade Runner); mas a manipulação percorre
a dimensão da interioridade, aparecendo como intensa auto-simulação
(o ego manipula a si mesmo, buscando constituir uma identidade pessoal
auto-referenciada – no caso dos replicantes, uma identidade irremediavelmente
estranhada). O que Blade Runner sugere é que, talvez a tragédia
dos replicantes seja a verdadeira tragédia humana (o que demonstra
que a ficção-científica expõe de forma invertida,
e até fetichizada, a verdade da condição humana).
Em Blade Runner existe uma outra situação paradoxal: o
caçador, aos poucos, se interverte em caça. Ao longo da
narrativa, Deckard, que persegue os replicantes, torna-se, na cena final,
perseguido pelo último dos Nexus 6, Roy Batty, que dá-lhe
uma “lição de vida”. Ou seja, poupa-lhe da
morte, demonstrando ser a vida um valor supremo para ele (ora, ao matar
Tyrell, Roy expressa um gesto de afirmação da vida, demonstrando
uma suprema indignação com seu destino).
Na sua derradeira cena, o replicante Roy traduz o que é próprio
da condição humana sob o sistema do capital. Disse ele:
“Uma experiência e tanto viver com medo, não? Ser
escravo é assim.” E sentindo de forma intensa o paradoxo
de Blade Runner, isto é, a angústia de inteligências
agudas e de alta sensibilidade estética diante de uma vida fugaz
e supérflua, Roy observa: “Eu vi coisas que vocês
nunca acreditariam. Naves de ataques em chamas perto da borda de Orion.
Vi a luz do farol cintilar no escuro, na Comporta Tannhauser. Todos
esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva.”
O replicante Nexus 6 sente a angústia do tempo, destacando a
unicidade (e fluidez) da sua experiência singular de vida. Conclui,
dizendo: “É hora de morrer” (tal como os personagens
da peça “Os Que Têm a Hora Marcada”, de Elias
Canetti).
Enfim,
Blade Runner é permeado de paradoxos magistrais, que
são contradições dilacerantes. Vejamos alguns detalhes:
os replicantes que fugiram eram 6. Um deles, morreu na fuga. Então,
5 são os que deveriam estar sendo perseguidos. Mas só
temos conhecimento de 4 na versão do diretor. Ou ainda: se Deckard
seria um replicante (como sugere a versão do diretor), Gaff também
não o seria? Enfim, quem nos garante – como já sugerimos
acima - que o mundo social de Blade Runner não seria constituído
por replicantes medianos, meros simulacros de homens e mulheres, onde
os Nexus 6 seriam versões sofisticadas, os super-homens de 2019
? Outro detalhe curioso é o sonho de Deckard, o sonho do unicórnio,
acrescido na versão do diretor. O que ele significa? Teria o
unicórnio do sonho de Deckard alguma relação com
o unicórnio de palito feito por Gaff no final do filme?. Mera
coincidência ou haveria alguma relação causal com
um significado latente?
Mas o que nos interessa são os significados críticos do
filme Blade Runner. Ele é um pré-texto magistral para
apreendermos os dilaceramentos humanos diante da opressão do
capital. O mundo social de Blade Runner é um mundo capitalista,
com a presença visível dos ícones das corporações
globais, cintilando em luzes néon num cenário distópico.
Torna-se visível através do exagero metodológico
da ficção-científica alguns elementos contraditórios
desta sociabilidade estranhada. Já destacamos o problema da identidade
humana, da impossibilidade da vida plena de sentido num sistema de tempo
de vida restringido, de memória protética e de sociabilidade
estruturada (drama trágico explicito, até como “tipo
ideal”, pelos replicantes Nexus 6 ).
É possível destacar, dentre os múltiplos detalhes
significativos do filme, alguns elementos sobre o mundo do trabalho
em Blade Runner. Por exemplo: a Tyrell Corporation é uma empresa-rede
tendo em vista que se utiliza do trabalho subcontratado de fornecedores,
que contribuem para a produção das mercadorias-objetos
técnicos complexos (os replicantes). Os fornecedores, pequenas
oficinas de técnicos altamente especializados, não conhecem
o resultado final de sua atividade. Produzem apenas um determinado componente
daquela estrutura biotecnológica. Por exemplo, quando o replicante
Roy visita a oficina de trabalho de um dos fornecedores da Tyrell, ele
nada sabe sobre os demais componentes de um organismo Nexus 6. Especializou-se
apenas em elaborar os olhos – mas nada sabe sobre o dispositivo
capaz de dar mais tempo de vida aos replicantes. É sintomático
que Ridley Scott tenha escolhido a atividade estranhada do produtor
dos olhos para expressar a paradoxalidade do capital e sua fragmentação
da atividade produtiva. Os que produzem os olhos estão cegos
sobre o produto final. Eis uma dimensão suprema (e paradoxal)
do estranhamento da produção capitalista.
Outro
paradoxo de Blade Runner é a relação do
personagem J.F. Sebastian, projetista genético, um dos criadores
dos Nexus 6, que, tal como eles, sofre de decrepitude acelerada. Ou
seja, J.F. Sebastian sofre de envelhecimento precoce, (Síndrome
de Matusalém). Por isso não conseguiu migrar para as colônias
interplanetárias. Como disse ele: “não passei no
exame médico” (o que confirma o acesso seletivo e excludente
ao Novo Mundo). Um detalhe curioso são os bonecos vivos da oficina
de J.F. Sebastian. Inclusive, um deles representa um militar com nariz
de Pinóquio (uma crítica velada à corporação
militar tão poderosa na América?). Aliás, é
possível um paralelo entre J.F. Sebastian e o artesão
Gepeto, personagem do conto Pinóquio, de Carlo Calodi. Talvez
J. F. Sebastian seja o Gepeto pós-moderno, solitário e
decrépito, que se apaixona por Pris, um dos Nexus 6 em fuga,
modelo básico de prazer; e é através de J.F. Sebastian
que Roy e Pris têm acesso ao criador dos Nexus 6, Tyrell, misto
de cientista genial e mega-investidor bem-sucedido (um Bill Gates do
mundo de Blade Runner?).
Talvez
seja interessante uma análise do personagem Tyrell, dono da corporação
industrial que produz os replicantes. Tal como J.F. Sebastian, é
um gênio solitário, parceiro do projetista genético
no jogo de xadrez, investidor diuturno no mercado financeiro (na sua
última cena, aparece deitado na cama orientando seu operador
financeiro a vender 66 mil ações...). Do mesmo modo, tal
como Sebastian, é cercado de objetos vivos – a coruja e
a secretária Rachael. É provável que Tyrell cultive
uma prazer estético (e libidinal) pelos seus objetos vivos.
Outro detalhe interessante do mundo do trabalho em Blade Runner é
que os Nexus 6, geração superiores de replicantes, são
altamente especializados (por exemplo, o replicante Roy Batty é
um modelo de combate, e Pris, é um modelo básico de prazer,
demonstrando que a sofisticação de habilidade cognitiva
e instrumental é acompanhada por uma especialização).
Além disso, o mundo do trabalho de Blade Runner é constituído
por uma mancha de “informalidade”, de trabalhadores por
conta própria, alguns altamente especializados, que utilizam
high technology (Deckard recorre aos serviços de uma artesã
hightech para identificar o número de código
de um fragmento de escama encontrado nos vestígios deixados por
Zhora, uma dos Nexus 6). Ora, no cenário pós-moderno de
Blade Runner, conciliam-se degradação ambiental (e pessoal)
com high tecnology. O mundo do trabalho é um imenso bazar de
atividades de serviços industriais subcontratados e de entretenimento
de cariz mafioso (expressão de sobrevivências seculares
da sociabilidade urbana degradada, como o saloon de Taffey Lewis, onde
se apresentava a replicante Zhora com seu número “Sra.
Salomé e a Cobra”).
Blade Runner expressa, no melhor estilo pós-moderno,
uma bricolage de situações típicas da temporalidade
extendida (e presente) do capital. Passado, presente e futuro estão
contidos numa temporalidade hipertensa. Enfim, não existem, a
partir da ótica da narrativa, perspectivas de “negação
da negação”. No bom estilo de Hollywood, as contradições
sociais se traduzem em meras saídas individuais – mas perguntaríamos,
parafraseando Gaff, são realmente saídas? Afinal, quem
escapa?
©Giovanni
Alves (2004)
(ATENÇÃO:
Esta análise de filme é parte do Projeto
de Extensão Tela Crítica 2004)
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