“Babel” de Alejandro Iñarritu

(2006)

 

A Razão pessimista em ação: Babel e a sociedade (capitalista) do risco

Vi o magnífico fime de Alejandro Iñarritu, Babel (EUA, 2006), com certo atraso. No entanto, isso acabou sendo interessante, porque tive a oportunidade de ler, antes, críticas diversas da projeção. A observação das críticas, por si só, já daria subsídio para uma discussão própria, com a qual inicio o que pretende ser um comentário crítico do filme.

É possível perceber um perfil ou padrão de crítica que, por falta de termo melhor, chamaremos de "liberal", observado (em maior ou menor grau) em críticos, por exemplo, da revista Veja ou do Estado de S. Paulo , sem falar em levas de jovens conservadores que abundam em blogs (por sinal, bem intrigante tal fenômeno: adolescentes ou jovens que, não obstante a energia e vivacidade próprios de sua condição etária, se esvaem em um conservadorismo duro, seco, com uma sensibilidade restrita, medíocre, fragmentada).

Nesta linha analítica "liberal", a crítica em geral é focada sobre a pretensão do diretor em conectar o que não poderia ser - ou o que seria melhor não ser - conectado, as vidas dos personagens espalhados em quatro cantos do planeta. Neste sentido, sobram adjetivações quanto ao caráter "pretensioso", "moralista" ou "forçado" do filme. Quem tenta ser mais refinado não escapa de uma visão igualmente ideológica (conservadora): o "mal", segundo o diretor (segundo tais críticos), são os americanos/ocidentais/ricos, bem como seus gendarmes, sempre retratados de modo "estereotipado" (vide o exemplo dos turistas, insensíveis ante o infortúnio da personagem de Cate Blanchett, ou do policiais estadunidenses na fronteira mexicana).

 



Quem tenta ser mais refinado ainda acusa o filme de ser tributário de uma (talvez esquerdista?) "estética da pobreza" ou de uma "cosmética da fome", padecendo do mal de estereotipar e sobretudo de filmar a pobreza com extrema beleza. Como se, por mais "bela"(?) que fosse a retratação da pobreza, isso conseguisse abstraí-la de sua horrenda materialidade concreta. Finalmente, há os críticos que até enxergam virtudes no filme, argumentando, contudo, que o autor deveria renunciar à pretensão de caracterizações totalizantes da realidade, e concentrando-se somente em contar cada uma das histórias do filme separada ou isoladamente.

Portanto, se o filme de Iñarritu pretende criticar a globalização (e ai de quem mencionar um palavra jurássica como "capitalismo") ou suas disfunções estruturais, soa o alarme e surge de imediato uma irritação (termo inclusive utilizado por alguns críticos referindo-se ao filme), um incômodo na subjetividade de observadores já soterrados pela hegemonia liberal e pelo dogma da suposta falta de sentido da realidade, característico da fragmentação intelectual induzida pela pós-modernidade.

Por outro lado, é possível observar também um outro perfil de críticas, este talvez mais progressista (ou pelo menos mais sensível/humano), que conseguem alcançar elementos do filme renegados, minimizados ou ignorados pelos grupos acima. Aparecem menções a termos como "intolerância", "globalização", "falta de comunicação", "solidão", "carência". Enfoca-se o caráter frágil das vidas isoladas, ou sua sujeição quase indefesa a forças ou desígnios que, não obstante se abaterem sobre todos, sejam eles ricos ou pobres, brancos ou não brancos, homens, mulheres ou crianças, não são de conhecimento de ninguém. Apenas não se chega (ou pelo menos não vi comentários que chegassem) à pretensão de se denominar ou de se compreender mais a fundo que forças extra-individuais seriam estas.


Sem dúvida, um dos temas essenciais de Babel é a questão da (falta de) comunicação, da ausência de diálogo, e isso entre seres que são, necessária ou potencialmente, dialógicos. Por mais que se possa dizer, com grau razoável de acerto, que os personagens de Iñarritu padecem de graus diversos de "estereotipação", sabemos, desde Weber, que um recurso muito útil de análise científica é o exagero deliberado de algumas características observadas no mundo empírico, exatamente como forma de sacudir o intelecto para que ele perceba a existência real de determinados fenômenos. Assim, ainda que se dissesse que Iñarritu opera com "tipos ideais" de meninos marroquinos, de adultos ricos/ocidentalizados, de adolescentes problemáticos ou de autoridades autoritárias/insensíveis, eles apenas existem para revelar que no mundo empírico existem características similares. Longe de serem, portanto, criações arbitrárias ou irrealistas do diretor, os "tipos ideais" de Iñarritu (caso a isso pudéssemos reduzir a história e os personagens do filme, e inclusive penso que não podemos) apontam para dimensões reais da existência humana e social na contemporaneidade.

Sendo a questão do diálogo entre indivíduos sociais um tema central de Babel, chama a atenção como duas horas e vinte minutos de projeção colocam em xeque, por exemplo, centenas de páginas escritas, por Habermas e seus seguidores, em favor do poder e das virtudes da "razão comunicativa". Pois o que se observa em Babel é quase o exato oposto disso. Parte da atmosfera angustiante com que o filme envolve o espectador advém precisamente da incapacidade dos indivíduos em exercer sua "razão comunicativa", dirimindo, com ela, os problemas e dramas que se multiplicam e que enredam os personagens em um aparente caos de medo, de insegurança e de desconfiança mútua. Os espectadores racionais e comunicativos somos tomados por uma angústia, quase um desespero, em acompanhar uma história em que os indivíduos interagem entre si mas que ninguém de fato ouve o próximo, que dirá compreender as razões que os movem.


A sensação é a de que não importa falar (ou incorrer na "ação comunicativa"), porque isso fará pouca ou nenhuma diferença em um mundo de surdos. Neste sentido, a personagem Chieko, a adolescente japonesa surda-muda, ilustra, de modo gritante (ainda que sob a forma serena de quem observa um mundo silencioso, aparência que entra em conflito com a ebulição própria da adolescência), este mundo de indivíduos que não se entendem - não por acaso, um mundo chamado de Babel.

Mas a demolição, senão da esperança de concretização, mas da efetividade medíocre da razão comunicativa, seria apenas uma das idéias-força que destacaríamos no filme. Abaixo da falência da ação comunicativa encontra-se a materialidade de um padrão societal - o da forma-mercadoria - que faz a apologia das coisas em detrimento das pessoas, da desigualdade no lugar da igualdade, da opressão em vez da convivência democrática. A predominância da mercadoria, da desigualdade e da opressão manifesta-se concretamente no objeto que conecta de fato todas as narrativas do filme: a arma, símbolo do bem valioso, fonte de poder.

Neste contexto, é interessante observar - Babel parece indicar tal reflexão - como mesmo as ações mais descompromissadas, inocentes e até gentis acabam subvertidas pela lógica férrea de um mundo coisificado, desigual e injusto. Pois, no filme, são precisamente aquelas motivações subjetivas dos personagens que originam todos os problemas que enfrentarão no filme. A boa índole da babá mexicana que, de modo descomprometido e atencioso, acaba levando as crianças do patrão para o casamento do filho. A brincadeira inocente das crianças marroquinas tentando acertar um alvo. A gentileza do japonês em dar um presente em agradecimento à atenção de seu guia marroquino. O "pessimismo da razão" de Babel parece não conhecer limites: não importam as boas motivações, as intenções sinceras e nem mesmo a inocência infantil, todos serão tragados para o turbilhão de dor, sofrimento e infelicidade impostos por uma lógica societal em que imperam, soberanos, a coisificação/bestialização dos indivíduos, a propriedade privada, o controle social, a segregação.

 



E este mundo social mercantilizado/coisificado, insensível, injusto ou opressivo é - como se não bastasse - turbulento, imprevisível e incontrolável. Esta é a terceira linha essencial de Babel , que na verdade se desdobra das anteriores e vice-versa. Para utilizar um termo sociológico da moda, cunhado por sociólogos como Giddens e Ulrick Beck, trata-se da sociedade capitalista como uma sociedade do risco . Os prejuízos humanos decorrentes de tal ordem para as classes subalternas ou populações periféricas são fartamente evidenciados (ainda que pouco ouvidos e, muito menos,compreendidos por tantos). No filme, os cenários humanos mexicano e marroquino evidenciam isso.

Mas aqui Babel também avança. O risco - atributo da turbulência, imprevisibilidade e incontrolabilidade inerentes ao capitalismo - é, além de estrutural, generalizado. Passível de alcançar praticamente todos os indivíduos, com pouca distinção entre eles ou suas condições/posições sociais objetivas. Notável é o fato de que os personagens mais dilacerados por desgraças no filme são os pertencentes à família norte-americana. O argumento parece transparente: por mais brancos, cultos, ricos ou socialmente "incluídos" que os indivíduos sejam, ninguém está a salvo das vicissitudes da sociedade do risco. "Risco", aqui, está mais para redundância ou eufemismo, quando se sabe que ele é inerente à sociedade capitalista.

Que o risco paira sobre as cabeças de todos os indivíduos da modernidade capitalista, por mais seguros que acreditem estar, dentro de suas gravatas e ternos, de edifícios gigantescos fincados no núcleo riquíssimo de cidades situadas em nações igualmente ricas e poderosas - isso já foi revelado espetacularmente pelos ataques terroristas ao World Trade Center. Mas, se neste caso é possível localizar uma origem "racional", consciente e extraordinária para a ocorrência de um fato trágico - as motivações dos terroristas islâmicos -, Babel se ocupa de retratar este mesmo risco em sua manifestação "inconsciente", disseminada no cotidiano, revelando que ricos e pobres, dominantes e dominados constituem um sistema cujos efeitos cedo ou tarde alcançarão a todos.

Ou seja, trata-se do risco estruturante de uma dinâmica social que, sem ser objeto de maiores questionamentos quanto à sua natureza fundamental, segue triturando indivíduos. E isso em uma época que, efetivando suas potencialidades, se aproxima cada vez mais de oferecer os meios materiais necessários à consecução generalizada de uma existência digna da vida humana.

 

Sidartha Soria ,
é sociólogo, doutorando em sociologia (UNICAMP-IFCH)
(2007)