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“A
Vila ” de M.Night Shyamalan
(2004)
Resistência
à modernidade ou (re)invenção da modernidade?
Quais
motivos despertariam em alguém a vontade de abandonar uma vida
permeada pelas facilidades da modernidade, nos grandes centros urbanos,
por um sonho de viver em comunidade? Em 2004, o filme “A Vila”,
do diretor e roteirista M.Night Shyamalan (Sexto Sentido) explorou
a vontade do homem de fugir dos riscos e da insegurança da
sociedade moderna, criando outra possibilidade de vida, com uma nova
mentalidade e outra perspectiva de conceber o mundo.
A história se passa em uma comunidade rural ambientada no século
XIX, auto-sustentável onde não existe a circulação
de dinheiro, a produção é realizada com a função
de suprir as necessidades dos habitantes do vilarejo. Administrada
por um conselho de anciãos, formado por oito membros, homens
e mulheres que possuem em comum, tragédias pessoais em suas
vidas, isto é, perdas de entes queridos de forma violenta nos
grandes centros urbanos dos Estados Unidos.
Este grupo idealizou a vila por estarem cansados do clima de insegurança
gerado pela violência nas cidades e com o objetivo de não
vivenciarem novamente a dor da perda. A forma que os anciãos
encontraram para garantir a harmonia e a paz foi inventar um lugar
perfeito, o vilarejo cujas tradições remontam as comunidades
agrárias do século XIX.
Além
da vila, há outros dois ambientes no filme, o bosque e a cidade,
o primeiro é habitado por criaturas perigosas, que vestem amarelo,
não suportam a cor vermelha e cujo nome não pode ser
pronunciado. Estes seres possuem um pacto com os anciãos, de
não ultrapassar os limites determinados e conseqüentemente
a não interferência na vida um do outro. Neste ambiente
está fixado um importante elemento que constitui o aparato
criado pelos anciãos, o mito das criaturas.
A cidade é apresentada como o lugar do crime, da violência,
do mal, onde as pessoas são ignorantes e não há
tolerância, é o ambiente da discórdia.
Neste trabalho proponho analisar como a “construção”
da estrutura comunitária e de seus mecanismos de manutenção,
são meramente reproduções das condições
existentes na sociedade moderna, ou seja, o objetivo de viver em um
ambiente harmonioso onde o risco e a insegurança inexistem,
fica somente na abstração. Os moradores da vila vivem
em constante estado de alerta, mantém vigilância integral
com medo de uma invasão das criaturas, seguem um código
de conduta rígido que inclui: não se aproximar de determinadas
áreas e não usar a cor vermelha, inclusive as flores
e frutos vermelhos são combatidos, para que não irritem
seus vizinhos.
Na verdade estes são elementos constitutivos do mito criado
para impor uma maneira de viver aos moradores, são características
inventadas com o objetivo de validar a existência das criaturas.
Dessa maneira, a comunidade tem os rituais que devem ser cumpridos
para que o pacto não seja rompido.
Com relação ao medo, os anciãos aparentemente
não sentem a mesma sensação, porém convivem
com o risco de que descubram os seus segredos e que uma revolta se
instale em seu mundo perfeito. Com o intuito de impedir esta possibilidade,
o bosque é cercado por um grande muro com cerca elétrica
e câmeras de monitoramento, ainda há presença
de vigias motorizados, ou seja, o externo do mundo perfeito do Sr.
Walker (patriarca da Vila) é apresentado para a sociedade como
uma reserva biológica das empresas Walker, que utiliza recursos
altamente tecnológicos para proteger seu segredo.
O
termo “risco” muito utilizado neste ensaio, tem o objetivo
de mostrar que todos os personagens vivem uma relação
constante com o risco. Utilizo a noção de "risco"
apresentada por Anthony Giddens no livro “Mundo em descontrole”,
onde afirma que a idéia de risco surge nos séculos XVI
e XVII com as grandes navegações, pois neste período
o homem rompeu com o passado, e arriscou avançar para um mundo
desconhecido, onde a incerteza imperava. O risco é um “produto”
da sociedade industrial moderna que procura enterrar o passado visando
um futuro incerto.
Uma tentativa de enfrentar o risco é adotar o princípio
do acautelamento, ou preservação, seria elaborar e fixar
formas para coibir ou inibir as possibilidades de ocorrência
dos riscos. Partindo dessa noção podemos compreender
a invenção do mito, e a manipulação desse
artifício por parte dos anciãos como forma de inibir
as tentativas dos jovens de atravessar o bosque ou ainda qualquer
possibilidade de quebra das normas, é a fabricação
de um risco que assola a todos para manter uma estabilidade.
As inovações tecnológicas também são
produções da modernidade, e são mostradas no
roteiro do filme como um inimigo da estabilidade da vila, mas esse
fato se torna um dilema quando ocorre o falecimento de um garoto,
o que desperta em Lucius Hunt a indignação pelo afastamento
das cidades, prevendo que em outros lugares seria possível
existir conhecimentos e técnicas que poderiam complementar
a vida na vila, inclusive curarem enfermidades.
A função dos anciãos de orientar e direcionar
a vida na comunidade é descrita por Giddens como sendo os guardiães
da tradição, ou seja, são aqueles que possuem
autoridade (fenômeno produzido as vezes pela confiança
e em outras pela obrigatoriedade) oriunda do conhecimento que possuem,
que lhes permite decifrar símbolos e dar significados, são
os responsáveis em guardar e propagar o conhecimento que move
as tradições.
Com essa atitude o conselho da vila aplica um modelo de racionalização
da vida, definindo os meios adequados para atingir seu objetivo, fundados
na dominação por meio da subordinação,
produzindo uma tradição sitiada que se sustenta pelo
imaginário do medo, o desespero pela segurança leva
a esta incoerência, fugir da opressão, criando outro
mecanismo que domina, oprime e aliena.
A película foi produzida pós-atentados de 11 de setembro,
período que os Estados Unidos vivem a paranóia da instabilidade,
não se confia em estrangeiros e todos podem conspirar contra
a democracia estadunidense, o medo é constante na população.
O governo Bush assume a missão de combater o mal e manter a
harmonia na nação mais prospera do mundo, assim como
o Sr. Walker e os anciãos desejam apenas proteger a vida de
seus queridos (na verdade suas próprias vidas), não
importando o alto preço que pode se pagar.
Essa discussão também remete alguns questionamentos
sobre o movimento alternativo, que estoura nos anos 60 e 70, assumindo
o papel de critica ao modelo de vivência estabelecido pelo capital
e procura propor uma nova forma de viver propiciando os meios para
a emancipação humana.
A fuga da sociedade de consumo é a semente do movimento alternativo,
escapar do mundo competitivo, da exploração e de todo
o conjunto da sociedade moderna que sufocam a realização
plena da vida humana. Mas para superar o sistema vigente, é
preciso outra proposta, objetivando ajudar o homem a se redescobrir,
como membro do ambiente e não como o dono do mundo. Retornar
a utopia, formar forças materiais e intelectuais que podem
contribuir para a realização da nova sociedade. A comunidade
é uma forma de unir estes desejos comuns e esta vontade, porém
a constituição de um local que acolhe diferentes indivíduos
em um mesmo objetivo requer uma estrutura que organize as relações
sociais e estabeleça parâmetros de convivência,
para essa efetivação a base é a tradição,
um conjunto de práticas, crenças e técnicas que
são propriedades da comunidade e não de indivíduos,
possui como características primordiais, o ritual e a repetição.O
ritual é o meio prático que garante a preservação
da tradição, pois separa essa atividade das tarefas
cotidianas, porque contem significação, possui uma força
que combina moral e emocional.
A repetição dos rituais, é uma ação
que se origina pela emoção contida no ritual, é
devido a isto que em grande parte, repetir esses cerimoniais, são
ações inconscientes e pouco compreendidas pelos indivíduos,
que acreditam na importância do ritual, mas não sabem
por que acreditam, ou mesmo porque são realizados desta forma
e não de outra. A repetição é uma maneira
de fixar os indivíduos em um único mundo, um meio de
evitar a exposição a valores que são estranhos
e podem quebrar a dinâmica interna da comunidade. Assim a repetição
se opõe a autonomia em vez de estimulá-la, não
abre possibilidades a experiências novas.
No filme o ritual que marca e garante a preservação
dessa tradição, é o brinde: “Agradecemos
pelo tempo que nos foi dado”, talvez uma alusão ao pacto
com as criaturas e ao mal das cidades por não invadirem e modificarem
o cotidiano do vilarejo. Há uma mistura da moral e do emocional
nos mecanismos que os anciãos manipulam, pois desde criança
todos os moradores aprendem a combater a cor vermelha e a não
irritarem as criaturas, e também a boa convivência uns
com os outros, porém por causa de ciúmes o jovem Noah
golpeia com uma faca Lucius Hunt, e desfragmenta a dinâmica
harmônica da vila. Mas este é um assunto que não
pretendo aprofundar, porque não cabe aos objetivos que este
ensaio se propõe.
Assim como na ficção, os líderes de comunidades
alternativas inventam tradições visando atender vontades
e necessidades, segundo Antony Giddens, as tradições
são inventadas ou adaptadas com objetivos pré-determinados,
não se desenvolvem espontaneamente, são suscetíveis
a mudanças, podem evoluir ou extinguir-se ao longo do tempo.
Assim todo o aparato existente na Comunidade foi pensado antecipadamente,
desde a forma como constroem suas casas, como educam seus filhos e
até como concebem o mundo, foi planejado de maneira a instrumentalizar
o pensamento dos indivíduos para um determinado fim..
A partir desta análise podemos pensar, até que ponto
o movimento alternativo está propondo a emancipação
do homem, e em que medida o discurso condiz com a prática,
se ao tentar fugir de uma prisão, não está se
construindo outra, mais forte e que incapacita o homem compreender
seu próprio lugar nesta realidade.
Referências
Bibliográficas:
TAVARES, Carlos A.P. O que são Comunidades Alternativas, 1ª
Edição , Editora Brasiliense, São Paulo, 1985.
GABEIRA, Fernando. Vida Alternativa, uma revolução do
Dia-a-dia, Editora L e PM, Rio de Janeiro, 1985.
BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização
Reflexiva – Política, tradição e Estética
na Ordem Social Moderna, 2ª Edição, Editora UNESP,
São Paulo.
GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole, Editora Record, São
Paulo, 2000.
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo
atual, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2003.
HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence(Org). A Invenção das
Tradições, 3ª Edição, Editora Paz
e Terra, São Paulo, 2002.
Francisco
Souza da Silva é é graduando em Ciências
Sociais na UNESP
e bolsista PET-Ciências Sociais
(2007)
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