“As Invasões Bárbaras” de Denys Arcand

(2003)

 

Não restam dúvidas de que "As Invasões Bárbaras" (2003) representa a produção de maior sucesso de público e crítica do diretor e roteirista canadense Denys Arcand. Prova disso são os vários prêmios que esta obra-prima cinematográfica obteve, incluindo o de melhor atriz (para Marie-Josée Croze) e melhor roteiro no Festival de Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2004.

Envolvente, por articular um humor bastante refinado com todo o drama trazido pelo roteiro, este filme, que representa a seqüência de Le Déclin de l'empire américain (1986), do mesmo diretor, promove o reencontro de grandes amigos, personagens principais do primeiro filme, companheiros de docência em uma universidade, que compartilham ideais e formas de pensar. Trata-se de uma obra cinematográfica extremamente sutil, de uma sensibilidade ímpar e que propicia as mais diversas reflexões.

O enredo de "As Invasões Bárbaras" se dá em torno de Rémy (Rémy Girard), um historiador, professor universitário em Montreal, que se encontra em fase terminal de um câncer, e de seu filho, Sébastien (Stéphane Rousseau), administrador de riscos financeiros em Londres que tenta a todo o tempo proporcionar ao pai um final de vida melhor, com menos sofrimento.

 

Durante o filme se explicita o conflito entre pai e filho que há tempos não se viam e que, em razão das circunstâncias, são obrigados a se reencontrar. Um olhar desatento poderia limitar os horizontes de proposta do filme aos conflitos e dificuldades que envolvem o relacionamento familiar. Porém, esta perspectiva perde de vista o que a obra apresenta de mais fértil e original: um conflito mais amplo entre os ideais e paradigmas das duas gerações em questão.

Rémy, “socialista voluptuoso”, como ele mesmo se define, viveu sua juventude em um período de efervescência política e cultural, marcado por ideais libertários e projetos alternativos de sociedade. Neste clima, ele construiu uma vida caracterizada pela busca de prazeres (vinhos, boa música, livros e mulheres) e pela valorização de relações orientadas por racionalidades que se opunham à ordem dominante.

Já seu filho Sebastien vivenciou um outro período, de crise de projetos alternativos de sociedade, de predomínio quase absoluto da racionalidade instrumental e, conseqüentemente, de um pragmatismo exacerbado, que são expressos na forma como ele age e forja uma realidade mais agradável para os últimos dias de vida de seu pai.

Assim como em toda sua vida, em seus últimos dias, Rémy não consegue se resignar, mantendo-se fiel a suas crenças e valores. Mesmo sofrendo, ele opta por manter-se em um hospital público, pelo qual lutou na juventude, apesar de toda a precariedade em que este se encontra.

É nesse ponto que se pode perceber o embate de dois paradigmas: a visão libertária – porém desacreditada – de Rémy e a visão pragmática de Sebastien. Enquanto o pai se recusa a se transferir para um hospital melhor, privado, seu filho insere a lógica privada no espaço público. Para proporcionar melhor conforto ao pai ele paga por um quarto individual, recorrendo ao suborno da diretoria e do sindicato dos trabalhadores do hospital – que neste contexto não passa de um grande balcão de negócios ilícitos – para que isso possa acontecer.

 

Além disso, Sebastien paga a visita de ex-alunos de Rémy e contata seus velhos amigos para que possam servir-lhe de companhia em seus últimos dias. Com a vinda destes últimos, o roteiro se torna ainda mais envolvente, devido aos diálogos que são por eles estabelecidos. E assim, também, fica ainda mais clara a expressão de dois mundos que se contradizem, mas que de forma alguma estão separados. Ao contrário disso, se interpenetram todo o tempo, mesmo que por vezes se neguem.

A condição atual de cada um dos amigos e as ironias que eles mesmos expressam são a ilustração perfeita destes dois mundos que se “invadem”. Eles são frutos da oposição entre a rigidez de seus princípios e o pragmatismo reinante na sociedade contemporânea. E, apesar de criticarem o fim, ou pelo menos a desvalorização, do pensamento crítico em função de uma razão mais instrumental, eles próprios tornam-se cada vez mais pragmáticos, com a única diferença de terem consciência crítica de tal fato.

É interessante notar, que, ao final do filme, Sebastien, à sua maneira, parece ter forjado uma realidade pela qual seu pai sonhava e “lutava”. A partir de sua visão de mundo e de seu modo pragmático de ser, o jovem realiza, mesmo que de maneira fantasiosa e restrita, alguns desejos fundamentais de seu pai: prestígio na universidade, um serviço “público” de qualidade, além do reencontro com a família e os amigos, que há muito ele não via.

Para finalizar, é interessante apontar que o título da obra é bastante sugestivo e possibilita várias interpretações diferentes. A trama como um todo se caracteriza pela invasão de modos de pensar, de agir e de ser. A racionalidade de Sebastien, caracterizada por seu pai como “capitalista, ambiciosa e puritana” representa uma perspectiva pragmática, pouco apaixonada pela vida e bastante insensível com relação às questões mais amplas da sociedade como um todo. Por outro lado, os ideais e paradigmas de seu pai – que resistem às invasões – encontram dificuldades de se materializar na realidade atual, restando-lhe apenas a nostalgia, o pessimismo e o sarcasmo diante da nulidade de perspectivas que se apresentam. Neste quadro, a única coisa que se pode afirmar com relativa tranqüilidade é que a realidade em questão não se apresenta como algo claro e definitivo. Não se sabe qual será o resultado das invasões bárbaras...

 

Carla Borges Ferreira
Estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

(2006)