"PQD", de Guilherme Coelho
(Brasil, 2007)

 

 

 

 

"PQD", dirigido por Guilherme Coelho, é um documentário de 2007, que conta a história de jovens da periferia do Rio de Janeiro em busca do sonho de trabalhar na Brigada Paraquedista do Exército do Brasil. Num período entre 2005 e 2006, a equipe de filmagem acompanhou o grupo de 70 jovens que serviram na 3ª Companhia do 25º Batalhão da Brigada Paraquedista na Vila Militar, do estado do Rio de Janeiro. O filme focaliza, especialmente, as histórias de Thiago, Max, Jhoseph, Lucente, Washington, Abraão, Ednir, Jorge, Elton e Silva, os quais têm a mesma origem humilde, os sonhos próprios da juventude e o desejo/necessidade de ter um emprego. Estes rapazes procuram não somente a satisfação de trabalhar na Brigada, mais também aspiram por ascensão social e profissional, melhores condições de vida, reconhecimento, estabilidade e a segurança de fazerem parte de uma instituição militar de prestígio. As histórias dos jovens são apresentadas individualmente, em contraste com a rotina do grupo, no quartel. O filme faz uma análise da relação entre trabalho, identidade e da questão do pertencimento.


O filme começa com os depoimentos dos jovens, Pedro Henrique, Max, Thiago e Jhoseph, antes do início do treinamento deles na Brigada. Eles falam das suas expectativas e da ansiedade de começarem a vida no quartel. Todos demonstram alguma insegurança ao pensarem na nova e diferente rotina que será enfrentada; é perceptível o receio deles quanto aos novos hábitos a serem adotados dentro da organização militar. A alegria pelos objetivos alcançados no trabalho pode ser perturbada pela presença dos obstáculos existentes na organização – o “perrengue”, como diz Pedro Henrique –, que eles sabem que irão enfrentar durante o treinamento. Ao mesmo tempo em que se sentem inseguros, demonstram suas esperanças com relação à “conquista” de fazer parte da Brigada e mais ainda em relação a uma possível carreira de sucesso dentro do Exército.

 

No documentário, as imagens da periferia, onde a maioria dos jovens mora, são mescladas com cenas do seu cotidiano na organização militar, as atividades físicas, as ordens, o treinamento técnico. O aprender a “voar” e a “pousar” vão se misturando às suas narrativas de dificuldades financeiras, de famílias desestruturadas. Os ainda sonhadores vão se incorporando à realidade da instituição, com suas normas, disciplina rígida e outras exigências burocráticas, abandonando sua identidade de pessoa humana para se travestir de militar, uma peça da engrenagem. Assim, a imagem que os personagens tinham de si, é desfeita e refeita.


A instituição militar representa acima de tudo a ordem e a disciplina. Desde o primeiro contato com a instituição, os jovens são conduzidos para incorporar o perfil condizente com as atividades inerentes à profissão que escolheram abraçar. Neste processo de socialização, como parte de um grupo profissional e social, o novato se mantém em contínua interação com os outros calouros e veteranos, propiciando uma permanente reconstrução individual.


Ao longo do documentário, as personagens acabam incorporando a identidade da organização militar no seu próprio Eu. Em vez de serem reconhecidos por seus nomes, assumem o número atribuído pela instituição e se tornam este número dentro e fora do quartel. Ou seja, onde estiverem eles devem pensar e agir como militares. Este processo de transmutação fica claro na cena em que, à saída do quartel, o instrutor diz: "Atenção senhores, estão sendo liberados agora, só retornarão na segunda feira, então lembra a conduta aqui fora: caboclo saiu do portão aqui no 25, ele é militar da mesma forma, então lembram certas atitudes: retirar a camisa, baderna, então os senhores tão sujeitos a punição. Serão sancionados se ocorrerem falta dessa natureza".

 


Aqueles, que apreendem com mais rapidez as características da vida militar e se ajustam a elas, são considerados mais promissores, mais adequados à organização, considerados “de futuro”, mais prováveis de “engajar”. O jargão da caserna, a postura, a farda, a rotina dos rituais diários expressam a reificação do ser humano/profissional militar ao dar concretude aos valores de ordem, disciplina, respeito à hierarquia, coragem, hombridade e outros que permeiam o dia a dia do quartel.

Todas as relações que ocorrerão, a partir daí, caminham na direção de transformar os processos como naturais, dotados de uma objetividade não humana. se De acordo com Marx, comentado por BOTTOMORE (1988, p. 314), essa reificação (Verdinglichung) caracteriza a alienação na sua forma mais radical e generalizada e se traduz no...ato (ou resultado do ato) de transformação das propriedades, relações e ações humanas em propriedades, relações e ações entre coisas produzidas pelo homem, que se tornaram independentes (e que são imaginadas como originalmente independentes) do homem e governam sua vida.

Para tanto, a qualidade que precisam apresentar é a maleabilidade do espírito e da conduta, isto é, a capacidade de poderem ser disciplinados, cumpridores de ordem, moldados à organização. A formação militar determina o que é esperado do soldado e quais atitudes ele deverá ter perante a sociedade, de forma que não exponha jamais de forma negativa a equipe em que está inserido. Ao longo da narrativa. os jovens, de pessoas com sonhos e projetos particulares, tornam-se um grupo de alunos, candidatos a serem paraquedistas..

A organização militar lentamente transforma os jovens, de forma que eles se tornam organismos fiéis à disciplina imposta pelo quartel. A plena absorção do perfil provoca a mortificação do Eu; este acaba sendo esmagado, assim como o são as características humanas dos jovens e a capacidade de pensar criticamente a realidade que os cerca. Eles acabam sendo coisificados e tendo os seus pensamentos homogeneizados.

 

Isso se torna ainda mais evidente porque se trata de uma instituição em que o poder e a disciplina aparecem de forma clara, “isto é, provém do desmanche do sistema de valores pessoais e do empobrecimento do seu sentimento de identidade” (Goffman, 1988). Por conseguinte, como a identidade é algo muito valioso, quando um indivíduo a perde, segundo Dubar (2005), torna-se uma pessoa alienada, sofrida e angustiada. A identidade de uma pessoa não é dada e sim construída, do nascimento até a fase adulta e construída e reconstruída ao longo da vida, através do julgamento dos outros e também das próprias orientações do indivíduo, isto é, é construída individualmente e socialmente, como produto de sucessivas socializações (Idem, 2005).

Como vimos, é de extrema relevância que os valores institucionais, como a hierarquia e a disciplina, sejam incorporados por eles, tendo em vista serem esses valores os responsáveis pela imbricação das identidades pessoal, laboral e social e pela manutenção da Instituição Militar. Por outro lado, os jovens que não conseguem se adaptar, vão aos poucos sendo desestimulados a permanecer na instituição, seja na fala de algum “superior”, quando ele afirma diretamente ao subordinado que ele não irá “engajar”; seja na intensificação dos treinamentos, buscando moldar os recalcitrantes ou fazê-los desistir do curso.

Quando ocorre uma falha no processo de identificação, o indivíduo resistente passa a ser estigmatizado no grupo social. Goffman (1988) explica que tal estigma pode se apresentar de três formas:

• as “abominações no corpo” que dizem respeito às deformidades físicas;
• as “culpas de caráter individual” relativas e desvios de comportamento considerado “normal” pelo grupo social;
• os “estigmas tribais de raça, nação e religião”, e que caracterizam os indivíduos que se encontram nessas categorias.

 

O segundo tipo de estigma da tipologia de Goffman (1988) – culpas de caráter individual – é o que mais condiz com a realidade enfrentada pelos jovens nas organizações militares, pois os indecisos, os inadequados, os desistentes não são encorajados a permanecer na organização. Ao contrário! Quando apresentam dúvidas lhes é mostrada a saída quase que automaticamente, por medo de que possam “contaminar” os demais com sua “covardia”, posto que, as instituições militares, a condição de homem está vinculada a atributos como: exposição ao perigo, resistência física e psicológica diante do treinamento intensivo, obediência profissional irrestrita, etc. A não adequação a essas regras fará com que o individuo seja visto como inadequado à instituição. Assim, ao não corresponder àquele modelo pré-estabelecido, ao resistir à coisificação, o indivíduo assume sua fraqueza e sua inconveniência ao sistema.

A Brigada Paraquedista significa muito mais que um trabalho para os recém-chegados, ela instala a sensação de pertencimento a uma organização de elite que atua como a confirmação do valor pessoal e profissional de cada jovem aceito. Não se pode caracterizar este grupo como classe, no sentido marxista de ou donos ou despossuídos dos meios de produção com dada situação político-econômica objetiva ou de sua consciência subjetiva.

Nem mesmo podemos agrupar todos os membros da Brigada como um conjunto de pessoas que tem a mesma posição diante do mercado, posto que, como afirma Weber (1978) a classe está ligada à esfera econômica da vida social e à qualidade dos bens possuídos e a magnitude da diferença entre os soldos dos generais e soldados já demonstram que ambos estão em estratos díspares da pirâmide social. Não é, portanto, a classe que instaura o sentimento de pertencimento, pois a esfera econômica não tem esta capacidade.

Na perspectiva weberiana, a Brigada se parece mais com um estamento, cuja característica principal é a consciência do sentido de pertencimento ao grupo. As profissões, de modo geral (e o militar aqui se enquadra), na sua luta por uma identidade social, podem todas ser analisadas como estamento. (Idem, 1978). É o pertencimento ou sentimento de pertença que une indivíduos distintos através da crença numa origem ou característica comum dos sujeitos envolvidos.

Costumamos pensar em nós mesmos como membros de uma coletividade onde vários símbolos expressam aspirações, valores e medos. Esse sentimento de ser ou pertencer é reconhecido na forma como o grupo (do qual se faz parte) produz, mantém e aprofunda as diferenças que o particularizam, quando o significado é dado e reforçado durante as interações internas e externas. A partir do momento em que as características dessa comunidade são sentidas subjetivamente pelos membros como comuns, surge, então, o sentimento de “pertinência”, ou seja, de existir uma comunidade de sentido, que, consequentemente, confirma o sentimento de pertencimento.
A importância dada ao pertencimento ao Exército é percebida nas falas dos superiores. No momento em que pensam em desistir, os jovens escutam frases como: “Quem não serve para o Exército, não serve para nada”; ocorre, portanto, muita pressão para que eles percebam e ocupem seus “devidos lugares” na organização.

O personagem Jhoseph, por exemplo, é um dos mais esforçados, um dos que teve menos dificuldade de se adaptar às características da organização. Este jovem tem noção do que é necessário para continuar seguindo a carreira e assim obter sucesso dentro da instituição militar, como diz em uma cena: “O esquema é ser o melhor. Ser o melhor, não responder, ter objetivo lá dentro”. Os considerados promissores, como ele, têm futuro e mais chance de “engajar”.

Lucente é o oposto de Jhoseph, sendo percebido pelo superior como inadequado à Brigada, e, portanto, estigmatizado. A sua não conformidade foi assim percebida por Lucente: “Capitão falou que não queria deixar eu “engajar”. Até então, não tinha dado alteração nenhuma, e as alterações vieram depois que ele falou que eu era vagabundo.” A “culpa” de Lucente é ser resistente à obediência cega ou, simplesmente, reagir às humilhações inclusas no treinamento, restando-lhe, apenas, a porta de saída.

Todas as provas a que foram submetidos – as atividades físicas extenuantes, treinamentos técnicos – foram apenas obstáculos na trilha que deveria ser percorrida para que Thiago, Max, Jhoseph, Lucente, Washington, Abraão, Ednir, Jorge, Elton e Silva realizassem seus sonhos, para alcançar o objetivo, o engajamento na Brigada. Para aqueles que corresponderam positivamente, a conquista do brevê prateado – que identifica o concluinte do curso de paraquedismo – e o uso do “but” marrom – que é o coturno específico usado pelos paraquedistas – confirmam que o objetivo (engajamento) foi alcançado.

Por fim, as histórias relatadas no documentário mostraram o processo de moldagem desses jovens, saídos da periferia de uma metrópole brasileira, em peças da engrenagem da organização militar. Dos sonhos adolescentes de ascensão social e reconhecimento profissional, restaram a disciplina, a obediência, a ordem e a postura formal de homens adultos. A transformação se dá através da conformidade, como nas histórias de sucesso de Jhoseph e Ednir; assim como da não conformidade, caracterizada no fracasso representado pela deserção de Lucente. O ponto de vista dos jovens já está marcado pela perspectiva da Brigada, como mostra o diretor, que o árduo treinamento está fadado a um resultado em polos antagônicos: a vitória e a conquista do lado do engajamento; a derrota e a frustração, do lado da exclusão.

Referências
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo editorial, 1999.
BERGER, Peter L.; BERGER; Brigitte. Sociology – A Biographical Approach. 2ª ed. Basic Books, Nova Iorque, 1975. Trad. Richard Paul Neto.
BOTTOMORE, Tom. Reificação. In. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1988.
DA MATTA, Roberto. Profissões industriais na vida brasileira: ontem, hoje e amanhã. Brasília: Editora Universidade de Brasilia, 2003.
DUBAR, Claude. A Socialização: construção das identidades sociais e profissionais. Portugal: São Paulo: Martins Fontes, 2005.
GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Editorial Grijalbo, 1977.
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1978.

 

 

Maurea Mendes Leite é graduada em Turismo e mestranda do Programa de Pós Graduação

em Defesa Social e Mediação de Conflitos da UFPA

Renata Alencar Beckmann de Lima é graduanda em Ciências Sociais na UFPA, campus Belém

Ida Lenir Maria Pena Gonçalves é doutora em Sociologia e colaboradora do Projeto Tela Crítica UFPA.