"PQD",
de Guilherme Coelho
"PQD", dirigido por Guilherme Coelho, é um documentário de 2007, que conta a história de jovens da periferia do Rio de Janeiro em busca do sonho de trabalhar na Brigada Paraquedista do Exército do Brasil. Num período entre 2005 e 2006, a equipe de filmagem acompanhou o grupo de 70 jovens que serviram na 3ª Companhia do 25º Batalhão da Brigada Paraquedista na Vila Militar, do estado do Rio de Janeiro. O filme focaliza, especialmente, as histórias de Thiago, Max, Jhoseph, Lucente, Washington, Abraão, Ednir, Jorge, Elton e Silva, os quais têm a mesma origem humilde, os sonhos próprios da juventude e o desejo/necessidade de ter um emprego. Estes rapazes procuram não somente a satisfação de trabalhar na Brigada, mais também aspiram por ascensão social e profissional, melhores condições de vida, reconhecimento, estabilidade e a segurança de fazerem parte de uma instituição militar de prestígio. As histórias dos jovens são apresentadas individualmente, em contraste com a rotina do grupo, no quartel. O filme faz uma análise da relação entre trabalho, identidade e da questão do pertencimento.
No documentário, as imagens da periferia, onde a maioria dos jovens mora, são mescladas com cenas do seu cotidiano na organização militar, as atividades físicas, as ordens, o treinamento técnico. O aprender a “voar” e a “pousar” vão se misturando às suas narrativas de dificuldades financeiras, de famílias desestruturadas. Os ainda sonhadores vão se incorporando à realidade da instituição, com suas normas, disciplina rígida e outras exigências burocráticas, abandonando sua identidade de pessoa humana para se travestir de militar, uma peça da engrenagem. Assim, a imagem que os personagens tinham de si, é desfeita e refeita.
Todas
as relações que ocorrerão, a partir daí,
caminham na direção de transformar os processos como
naturais, dotados de uma objetividade não humana. se De acordo
com Marx, comentado por BOTTOMORE (1988, p. 314), essa reificação
(Verdinglichung) caracteriza a alienação na sua forma
mais radical e generalizada e se traduz no...ato (ou resultado do
ato) de transformação das propriedades, relações
e ações humanas em propriedades, relações
e ações entre coisas produzidas pelo homem, que se tornaram
independentes (e que são imaginadas como originalmente independentes)
do homem e governam sua vida. Para
tanto, a qualidade que precisam apresentar é a maleabilidade
do espírito e da conduta, isto é, a capacidade de poderem
ser disciplinados, cumpridores de ordem, moldados à organização.
A formação militar determina o que é esperado
do soldado e quais atitudes ele deverá ter perante a sociedade,
de forma que não exponha jamais de forma negativa a equipe
em que está inserido. Ao longo da narrativa. os jovens, de
pessoas com sonhos e projetos particulares, tornam-se um grupo de
alunos, candidatos a serem paraquedistas.. A organização militar lentamente transforma os jovens, de forma que eles se tornam organismos fiéis à disciplina imposta pelo quartel. A plena absorção do perfil provoca a mortificação do Eu; este acaba sendo esmagado, assim como o são as características humanas dos jovens e a capacidade de pensar criticamente a realidade que os cerca. Eles acabam sendo coisificados e tendo os seus pensamentos homogeneizados.
Isso
se torna ainda mais evidente porque se trata de uma instituição
em que o poder e a disciplina aparecem de forma clara, “isto
é, provém do desmanche do sistema de valores pessoais
e do empobrecimento do seu sentimento de identidade” (Goffman,
1988). Por conseguinte, como a identidade é algo muito valioso,
quando um indivíduo a perde, segundo Dubar (2005), torna-se
uma pessoa alienada, sofrida e angustiada. A identidade de uma pessoa
não é dada e sim construída, do nascimento até
a fase adulta e construída e reconstruída ao longo da
vida, através do julgamento dos outros e também das
próprias orientações do indivíduo, isto
é, é construída individualmente e socialmente,
como produto de sucessivas socializações (Idem, 2005). Como
vimos, é de extrema relevância que os valores institucionais,
como a hierarquia e a disciplina, sejam incorporados por eles, tendo
em vista serem esses valores os responsáveis pela imbricação
das identidades pessoal, laboral e social e pela manutenção
da Instituição Militar. Por outro lado, os jovens que
não conseguem se adaptar, vão aos poucos sendo desestimulados
a permanecer na instituição, seja na fala de algum “superior”,
quando ele afirma diretamente ao subordinado que ele não irá
“engajar”; seja na intensificação dos treinamentos,
buscando moldar os recalcitrantes ou fazê-los desistir do curso.
Quando
ocorre uma falha no processo de identificação, o indivíduo
resistente passa a ser estigmatizado no grupo social. Goffman (1988)
explica que tal estigma pode se apresentar de três formas: •
as “abominações no corpo” que dizem respeito
às deformidades físicas;
O
segundo tipo de estigma da tipologia de Goffman (1988) – culpas
de caráter individual – é o que mais condiz com
a realidade enfrentada pelos jovens nas organizações
militares, pois os indecisos, os inadequados, os desistentes não
são encorajados a permanecer na organização.
Ao contrário! Quando apresentam dúvidas lhes é
mostrada a saída quase que automaticamente, por medo de que
possam “contaminar” os demais com sua “covardia”,
posto que, as instituições militares, a condição
de homem está vinculada a atributos como: exposição
ao perigo, resistência física e psicológica diante
do treinamento intensivo, obediência profissional irrestrita,
etc. A não adequação a essas regras fará
com que o individuo seja visto como inadequado à instituição.
Assim, ao não corresponder àquele modelo pré-estabelecido,
ao resistir à coisificação, o indivíduo
assume sua fraqueza e sua inconveniência ao sistema. A
Brigada Paraquedista significa muito mais que um trabalho para os
recém-chegados, ela instala a sensação de pertencimento
a uma organização de elite que atua como a confirmação
do valor pessoal e profissional de cada jovem aceito. Não se
pode caracterizar este grupo como classe, no sentido marxista de ou
donos ou despossuídos dos meios de produção com
dada situação político-econômica objetiva
ou de sua consciência subjetiva. Nem
mesmo podemos agrupar todos os membros da Brigada como um conjunto
de pessoas que tem a mesma posição diante do mercado,
posto que, como afirma Weber (1978) a classe está ligada à
esfera econômica da vida social e à qualidade dos bens
possuídos e a magnitude da diferença entre os soldos
dos generais e soldados já demonstram que ambos estão
em estratos díspares da pirâmide social. Não é,
portanto, a classe que instaura o sentimento de pertencimento, pois
a esfera econômica não tem esta capacidade. Na
perspectiva weberiana, a Brigada se parece mais com um estamento,
cuja característica principal é a consciência
do sentido de pertencimento ao grupo. As profissões, de modo
geral (e o militar aqui se enquadra), na sua luta por uma identidade
social, podem todas ser analisadas como estamento. (Idem, 1978). É
o pertencimento ou sentimento de pertença que une indivíduos
distintos através da crença numa origem ou característica
comum dos sujeitos envolvidos. Costumamos
pensar em nós mesmos como membros de uma coletividade onde
vários símbolos expressam aspirações,
valores e medos. Esse sentimento de ser ou pertencer é reconhecido
na forma como o grupo (do qual se faz parte) produz, mantém
e aprofunda as diferenças que o particularizam, quando o significado
é dado e reforçado durante as interações
internas e externas. A partir do momento em que as características
dessa comunidade são sentidas subjetivamente pelos membros
como comuns, surge, então, o sentimento de “pertinência”,
ou seja, de existir uma comunidade de sentido, que, consequentemente,
confirma o sentimento de pertencimento. O
personagem Jhoseph, por exemplo, é um dos mais esforçados,
um dos que teve menos dificuldade de se adaptar às características
da organização. Este jovem tem noção do
que é necessário para continuar seguindo a carreira
e assim obter sucesso dentro da instituição militar,
como diz em uma cena: “O esquema é ser o melhor. Ser
o melhor, não responder, ter objetivo lá dentro”.
Os considerados promissores, como ele, têm futuro e mais chance
de “engajar”. Lucente
é o oposto de Jhoseph, sendo percebido pelo superior como inadequado
à Brigada, e, portanto, estigmatizado. A sua não conformidade
foi assim percebida por Lucente: “Capitão falou que não
queria deixar eu “engajar”. Até então, não
tinha dado alteração nenhuma, e as alterações
vieram depois que ele falou que eu era vagabundo.” A “culpa”
de Lucente é ser resistente à obediência cega
ou, simplesmente, reagir às humilhações inclusas
no treinamento, restando-lhe, apenas, a porta de saída. Todas
as provas a que foram submetidos – as atividades físicas
extenuantes, treinamentos técnicos – foram apenas obstáculos
na trilha que deveria ser percorrida para que Thiago, Max, Jhoseph,
Lucente, Washington, Abraão, Ednir, Jorge, Elton e Silva realizassem
seus sonhos, para alcançar o objetivo, o engajamento na Brigada.
Para aqueles que corresponderam positivamente, a conquista do brevê
prateado – que identifica o concluinte do curso de paraquedismo
– e o uso do “but” marrom – que é o
coturno específico usado pelos paraquedistas – confirmam
que o objetivo (engajamento) foi alcançado. Por
fim, as histórias relatadas no documentário mostraram
o processo de moldagem desses jovens, saídos da periferia de
uma metrópole brasileira, em peças da engrenagem da
organização militar. Dos sonhos adolescentes de ascensão
social e reconhecimento profissional, restaram a disciplina, a obediência,
a ordem e a postura formal de homens adultos. A transformação
se dá através da conformidade, como nas histórias
de sucesso de Jhoseph e Ednir; assim como da não conformidade,
caracterizada no fracasso representado pela deserção
de Lucente. O ponto de vista dos jovens já está marcado
pela perspectiva da Brigada, como mostra o diretor, que o árduo
treinamento está fadado a um resultado em polos antagônicos:
a vitória e a conquista do lado do engajamento; a derrota e
a frustração, do lado da exclusão. Referências
Maurea Mendes Leite é graduada em Turismo e mestranda do Programa de Pós Graduação em Defesa Social e Mediação de Conflitos da UFPA Renata Alencar Beckmann de Lima é graduanda em Ciências Sociais na UFPA, campus Belém Ida
Lenir Maria Pena Gonçalves é doutora em Sociologia
e colaboradora do Projeto Tela Crítica UFPA.
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