"Fábrica de Loucuras", de Ron Howard
(EUA, 1986)

 


 

 

Do mesmo diretor de “O preço de um resgate” (1997), “Uma mente brilhante” (2002), “O código Da Vinci” (2006), entre outros, o filme “Fábrica de Loucuras” (1986) - de Ron Howard, é uma produção hollywoodiana que tem como título original “Gung Ho”, expressão chinesa que significa “trabalhar juntos”. Distribuído pela Paramount Picture, seu gênero é definido como “comédia dramática”, porém caberia dizer que o enredo também pode ser considerado mais como um drama do que uma comédia a ele associada. Ou ainda, para não fugir do gênero a ele atribuído, e para lembrar Alves (2006), um drama que tende a se interverter em comédia.


É nesse sentido que a história da pequena cidade norte-americana chamada Handleyville muda drástica e repentinamente quando a única fábrica (de automóveis) da cidade, e maior geradora de emprego e renda aos habitantes do lugar, fecha as portas depois de 35 anos em atividade naquela cidade. Desesperados, os moradores sem emprego há pelo menos nove meses, por meio do poder público municipal local, decidem enviar um correspondente (Hunt Stevenson – um dos personagens principais, estrelado pelo ator Michael Keaton) à Tókio, no Japão, para tentar convencer os diretores-presidentes da Assan Motors Company a assumirem a fábrica e reinstalar, em solo americano, a planta de produção em massa.

Os moradores passam a ver Hunt, como é popularmente chamado, como o “salvador da pátria”, pois é nele que são depositadas todas as esperanças de dias melhores, haja vista a grande avalanche de fechamento de portas no comércio local, em uma cidade à beira da ruína, dependente que é das finanças geradas pela fábrica de automóveis. Essa perspectiva é bem retratada logo no início do filme, quando são apresentadas cenas em que Hunt, ao encontrar com sua namorada (Audrey), se desloca pela cidade e é saudado por quem o vê. Hunt sente-se confiante de sua missão, pois “quem resiste a essa cara de pau?” É o que ele diz para uma de suas interlocutoras, que o encontra no caminho. Ele sabe que se falhar, “a cidade vai pro brejo”, e compartilha esse misto de confiança e nervosismo para a sua namorada.

Não se deve esquecer que nesse cenário as relações estão permeadas pelo fetichismo da mercadoria, onde as coisas (e as pessoas) estão subsumidas ao valor de troca, que subtraiu/substituiu o valor de uso (e social), passando a determiná-lo de fora, do exterior. É nesse cenário inicial, portanto, que o filme “Fábrica de Loucuras” está inscrito e que Hunt, como um dos personagens principais irá mergulhar. Uma saga que vai da esperança, seguida da vitória em conseguir a reinstalação da planta da fábrica, voltando à derrocada novamente. Mas que, ao final, é superada pelo que pode ser visto como uma vitória final, bem característica dos filmes hollywoodianos.
A maior expressão dessa vitória é a produção de 15 mil carros, e a consequente aceitação da produção, após essa ter passado pelo rígido controle de qualidade feito pessoalmente pelo diretor presidente da Assan Motors Company, Sr. Sakamoto (Sô Yamamura), e seu sobrinho e braço direito, Saito (Sab Shimono).

Ao se deslocar para Tókio, Hunt encontra-se frente a uma primeira dificuldade: a barreira linguística. Assim, após uma pequena saga procurando o prédio sede da Assan Motors Company, tendo ido parar, inclusive, em um campo de plantação de trigos, passando pelo centro nervoso de Tóquio, em uma garupa de bicicleta, Hunt se depara com uma situação que aos seus olhos norte-americanos é um tanto quanto inusitada e pouco convencional, mas que faz parte do cotidiano gerencial daquele país: ao adentrar em uma sala, Hunt vê aquele que no futuro próximo será o gerente da fábrica que será reinstalada em sua cidade. Aos berros, e vestido de kimono com várias faixas coloridas penduradas (“faixas da vergonha”), Cosohiro (o outro personagem principal, estrelado por Gedde Watanabe) está em uma escola para “gerentes fracassados”, cujas atividades envolvem diversos elementos de cunho constrangedor, tais como chicotadas e auto xingamentos depreciativos. É assim a cultura gerencial japonesa retratada no filme em análise, que no decorrer da trama vai sendo mostrada em sua mais dura realidade, inclusive se mostrando como um contra censo perante aos trabalhadores da cidade norte-americana.

 

 

Quando finalmente Hunt encontra o local para onde havia sido enviado, se vê em outra situação inusitada, e mais uma vez tangenciada pela barreira linguística, pelo menos até descobrir, após a afirmação do diretor presidente, de que todos ali falam o mesmo idioma que o seu. Tentando ser o mais despojado, agradável e convincente possível, Hunt começa a fazer a explanação dos motivos pelos quais a planta da fábrica deveria retornar para Handleyville. No entanto, ele está envolto em um ambiente onde a frieza é a marca indelével, típica dos homens de negócio, sujeitos venais, interessados que estão em resultados sempre positivos e na contagem sempre geométrica dos lucros auferidos de seus negócios. Em uma sala ampla, com uma mesa oval ao centro, rodeada de cadeiras onde estão sentados todos os acionistas da Assan Motors Company, postado em pé, em uma das cabeceiras da mesa, inicialmente Hunt dialoga com uma voz feminina, que sai dos alto-falantes instalados na sala, e que dá as instruções sobre como ele deve projetar os slides da sua apresentação. O sistema Capital é assim: impessoal (é uma sociedade anônima) e impregnado pelo valor venal. É nesse último elemento fundante capitalístico que Hunt deve centrar a sua apresentação; e o seu tempo não é o mesmo dos homens de negócio que alí estão para ouvi-lo; eles não têm mais tempo a perder – time is money é a expressão por excelência dos “personas” do capital. E mais uma vez, agora em tom de ironia, Hunt não perde a oportunidade de fazer referência àqueles que aos seus olhos, mais uma vez, são hábitos estranhos: “vamos começar antes que cansem de encarar um ao outro em silêncio”. Em seu discurso, Hunt diz, para tentar impressionar os executivos: “Todos ganhavam a vida lá. Davam duro. Aí, a fábrica fechou. Se vocês reabrirem, todos vão dar mais duro ainda. Prometo. É uma beleza de cidade. Gente boa. Faria tudo pra cidade voltar ao que era.”

Ao voltar para Handleyville, Hunt e a cidade já têm as esperanças esgotadas, marcada que está por novas placas de fechamento no comércio local, quando chega a notícia de que os japoneses concordaram em reinstalar a planta da fábrica de carros na cidade. Desse modo, a equipe de gestores e suas respectivas famílias são recebidas com honrarias que até mesmo eles ficam surpresos. Na verdade, tal surpresa parece advir do fato de Cosohiro não se achar, e muito menos ser visto por seus colegas japoneses, como merecedor de tal recepção, pois ele é um egresso da escola de “gerentes fracassados” e a quem coube a missão de gerenciar a nova fábrica. Embora o ano de produção do filme seja o de 1986, período em que o modelo taylorista/fordista já estava em derrocada havia algum tempo, esse era o modelo de produção industrial em larga escala a ser seguido pela equipe japonesa. No entanto, em alguns aspectos apresenta-se como um misto, com elementos característicos típicos de um toyotismo incipiente, como a eliminação do desperdício, próprio da produção em massa convencional. Além disso, e como consequência, a ideia de trabalho em equipe e as diversas ações características dos Círculos de Controle de Qualidade (CCQs).

Apenas para adiantar, todos têm um elemento comum, como modo de expressar um mesmo fenômeno: controlar o processo de trabalho a partir da dinâmica de acumulação do capital (voltaremos a esses pontos mais tarde). Portanto, a árdua missão de Cosohiro e de sua equipe é: a implantação de uma fábrica, em solo norte-americano, tão parecida, em termos de produtividade e qualidade, quanto às já existentes em solo japonês, utilizando-se das mesmas ideologias gerenciais. Para isso, é preciso lançar mão de algumas estratégias de convencimento e aceitação, por parte dos trabalhadores, das novas regras que permearão a produção. Embora possa ser observado que os EUA tenham sido o berço do modelo taylorista/fordista, em “Fábrica de Loucos”, observamos que os operários não estão acostumados à intensidade de trabalho e com a rigidez gerencial imposta pelos japoneses, típica daqueles modelos, e cuja aceitação ocorre ampla e passivamente pelos trabalhadores japoneses. Uma dessas novas regras diz respeito ao novo valor pago pelas horas trabalhadas, que antes era de $11,50 dólares e passa a ser de $8,75.

 

 

Todas as regras estão descritas no regulamento trabalhista que é entregue a Hunt, na primeira reunião entre ele e a equipe japonesa, já na cidade de Handleyville. É nesse momento que Hunt lembra-se de onde conhece Cosohiro e é esclarecido sobre a situação inusitada que presenciou em Tókio. Também é nessa reunião que Hunt é estrategicamente convidado a ocupar um cargo executivo, como elo de ligação entre os japoneses e os operários. Embora não concordando com os termos do regulamento, Hunt já está enredado e seduzido o suficiente com seu novo cargo, para não conseguir ir além de algumas interrogações acerca do novo estatuto laboral e salarial ofertado pelos japoneses. A partir daquele momento, seu papel é apenas o de convencer os trabalhadores a aceitarem tal proposta. Ora, a escolha de Hunt é apenas uma das estratégias dos japoneses para fazer cumprir o seu projeto, permeado que será pela precarização do trabalho.
E como fenômeno intrínseco da produção do capital, a precarização engloba a totalidade das relações trabalhistas, agregando níveis cada vez mais crescentes de flexibilização das relações de trabalho. Aqui, flexibilização entendida como um processo condicionado macroeconômica e socialmente, cuja derivação se dá a partir da nova fase de mundialização do sistema capitalista, homogeneizado pela esfera financeira. Para Druck; Thébaud-Mony (2007), a típica fluidez e volatilidade do mercado financeiro contaminam a economia e a sociedade de modo geral, generalizando a flexibilização de forma sistêmica, especialmente para o campo do trabalho. Essa perspectiva é retratada durante a reunião entre os operários e o sindicato, cujo representante (Crandall) enviado para discutir as novas propostas de trabalho com os operários, demonstra a sua preocupação com mais um aspecto sobre o que está sendo debatido: trabalho sem contrato. Crandall, tentando cumprir com seu papel sindical, relata que a preocupação do sindicato reside no fato de que “trabalhador sem contrato não pode ser sindicalizado”.

No entanto, o exército industrial de reserva, na ótima de Marx (1996), fenômeno que atinge a totalidade da força de trabalho no sóciometabolismo do capital, faz com que os operários e proletários industriais se submetam a condições de trabalho cada vez mais degradantes, caracterizados que estão pela superfluidez da força de trabalho. Eles já estão subsumidos o suficiente à contingência do mercado local. E por isso, o que lhes resta é a venda da força de trabalho como se essa estivesse exposta como uma mercadoria em uma vitrine. Mas sabemos que o valor dessa “mercadoria” já está impregnado por uma determinada obsolescência que lhe fora imposta, e que retira dela o seu real valor, inclusive o valor afetivo.

Aliados a esse fenômeno de flexibilização, e parte constitutiva do mesmo, percebemos, em “Fábrica de Loucuras”, a fragmentação e segmentação dos trabalhadores, heterogeneidade, individualização, fragilização dos coletivos e crise do sindicato, que perde seu poder de intermediação entre a classe trabalhadora e o capital. É na reunião com o sindicato, onde os operários estão ávidos por trabalho, como coiotes selvagens atrás de sua caça, que há a maior expressão desses elementos: um dos operários questiona a preocupação do sindicato, que naquela circunstância parece ser uma preocupação menor, pois o sindicalista “não mora aqui! E tem emprego!” Eles já sabem que “para além da exploração dos homens, havia ainda algo pior: a ausência de qualquer exploração” (FORRESTER, 1997. p. 16). Eles estão submersos em um mundo contingente à única oferta de emprego que lhes é salvadora e, por isso, demonstram uma consciência de classe contingente, não necessária, uma vez que mesmo o sindicalista tentando fazer-lhes perceber que se os japoneses notarem que estão unidos poderão fazer a concessão quanto ao contrato formal. O sindicato já não tem mais poder de barganha mesmo junto aos operários, a quem pretende representar junto ao patronado. Sendo força de trabalho enquanto mercadoria, os operários, podemos recorrer a Alves (2006), têm sua “angústia dilacerante” residente no fato de “não conseguir realizar o desejo mais íntimo de toda mercadoria: ser consumida” (p. 75). É nesse momento que Hunt, solicitado pelo operário, já que “é dos nossos e os conhece”, e ovacionado pelo conjunto dos trabalhadores, opera com um discurso no qual faz um paralelo entre a situação atual por eles vivenciada e uma final de campeonato de basquetebol vivida por todos, aponta como moral da história, a importância de todos garantirem posição. Para ele, todos já estão com sorte de os japoneses terem tomado a decisão de reinstalar a planta da fábrica naquela cidade. Portanto, Hunt prega que todos devem deixar os japoneses fazerem “suas jogadas. Aí, fazemos as nossas. Vencemos o jogo no último tempo”, pois ele, Hunt, tem certeza de que pode controlá-los.

É com essa certeza que Hunt e todos os operários, junto com a equipe de gerentes japoneses começam a empreitada, mas logo nos primeiro dia começam as discordâncias com relação aos métodos gerenciais adotados pelos japoneses. Antes, segue-se a cena com alguns símbolos clássicos da fábrica taylorista/fordista, ou da modernidade-máquina: o primeiro, de cunho objetivo, retrata o pátio da fábrica já com um grande número de carros montados e, ao fundo, a grande instalação da fábrica de automóveis, com uma grande inscrição Assan Motors Company, em sua fachada, expondo, logo de início, a lógica de produção e reprodução em massa. Na cena seguinte, mais um elemento da fábrica taylorista/fordista: os operários entrando na fábrica (o operário massa sugerido por Chaplin, em “Tempos Modernos”); como o “operário bovino” de Frederick Taylor, como o tipo ideal para o exercício das tarefas típicas da produção automática. Mas é o relógio (de ponto) o “símbolo-objeto” para controlar o tempo de trabalho, o maior símbolo de controle do tempo de trabalho do verdadeiro espírito do capital na segunda modernidade. “É através do cronômetro que se objetiva a medida do valor, calculado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à produção de mercadorias” (ALVES, 2006. p. 64). Aqui, a expressão “time is Money”, apontada acima, ganha a mais pura objetividade e retrata, por excelência, o capital como “o senhor do tempo (e do espaço)”.
Aliado a esses elementos, ainda na mesma cena, os operários aparecem felizes com seus uniformes de trabalho: “agora tenho emprego”, diz um deles. Esse é mais um elemento, agora de cunho subjetivo, que imprime no operário uma identificação com o trabalho, mas um trabalho abstrato, de um homem/trabalhador também abstrato. A única forma de trabalho que tem valor na modernidade do capital, o trabalho abstrato, trabalho estranhado - a forma que o trabalho adquiriu para produzir mais-valia. Como dito anteriormente, e mais uma vez, as relações estão permeadas pelo fetichismo da mercadoria, subsumindo-se ao valor de troca, que se sobrepõe ao valor de uso. O trabalho deixa de ter valor em si e por si (o trabalho concreto), atrelado que está ao fetiche da mercadoria, que o determina exteriormente; de fora, e que representa um passaporte para o mundo socialmente fetichizado.

 

 

No pátio da grande indústria, os operários estão reunidos para ouvir o discurso de boas-vindas. Nele, Cosohiro ressalta aquilo que seu gerenciamento carregará como sinais do toytismo, diz ele: “Devemos ter espírito de equipe! O único propósito é pensar só na companhia!” E segue: “Ginástica matinal!”. Também conhecida como ginástica laboral ou ginástica de pausa, como era chamada, data do final do século XIX e início do século XX, cujo primeiro livro editado sobre o tema data de 1925, na Polônia, intitulado “Ginástica de Pausa” (LIMA, 2005). Essa prática passou a ser utilizada massivamente em todo mundo, com um discurso de legitimação que atrela a sua prática ao mito da qualidade de vida, o que se comprovaria através do aumento da produtividade do trabalhador e consequente aumento da lucratividade das empresas.

Ora, bem sabemos que a prática de controle sobre os corpos, de isolamento, de despersonalização e de submissão disciplinar dos corpos (e subjetividade), são características das chamadas instituições totais (hospitais, quartéis, fábricas). Emblemática do surgimento da medicina moderna (social) e definida como biopolítica, também e primeiramente, recaiu sobre os corpos enquanto força de produção, força de trabalho (FOUCAULT, 1979), e persisti ainda hoje, embora com outra configuração. Desse modo, o capitalismo se apropria dos corpos dos trabalhadores, impondo-lhes uma nova subjetividade no uso de seus corpos. Como afirma Le Breton (2006, p. 79), “toda a ordem política vai de encontro à ordem corporal. A análise leva à crítica do sistema político identificado com o capitalismo, que impõe a dominação moral e material sobre os usos sociais do corpo e favorece a alienação”. Essa dominação moral e material dos corpos também se apresenta em diversas passagens do filme “Fábrica de Loucuras”, particularmente nas diversas e sucessivas cenas apresentadas e que retratam o esforço feito pelos operários para dar conta da produção de 15 mil novos carros, no período de um mês, com o objetivo de quebrar o recorde japonês de produção. As cenas retratam o “fazer horas extras”; “fazer serão”; “chegar cedo”; “cada vez mais rápido”; “ganhar tempo”, até uma das mais inusitada delas, que mostra um dos operários urinando dentro de uma garrafa, no seu posto de trabalho.

Aqui vale uma breve descrição do cenário sobre o qual se constrói essa possibilidade de uso e apreensão dos corpos. Na verdade, o acerto que Hunt fez com os japoneses foi para uma produção de 15 mil novas unidades, “nem um a mais, nem um a menos (...). Se faltar um, não recebem aumento nem nada”, diz Cosohiro. Para tanto, mais uma vez Hunt precisa cumprir com sua função de mediador entre os gerentes japoneses e os operários. Ele lança mão de um discurso convincente que joga com a dignidade e com o espírito vencedor característico do norte-americanismo. E na assembleia com os operários, Hunt diz: “o operário americano é inferior. O japonês trabalha melhor e mais rápido. Não gosta de ouvir? Nem eu, porque é mentira. Quem é melhor que nós, quem?” finaliza perguntando. Embora inicialmente apreensivos, pois surgem questionamentos acerca da capacidade de produção desse quantitativo, finalmente todos concordam com o “acordo”, pois são levados a crer que ainda que sejam produzidos apenas 13 mil novos carros, eles ganharão um meio aumento salarial. “Can we do it!” é o brado de honradez que soa ao final da assembleia dos operários.

 

 

Mas após o intenso e acelerado trabalho precarizado, todos já estão cansados. E finalmente apresentam, a Hunt, alguns cálculos que envolvem horas e dias trabalhados, e que revelam que não será necessário tanto trabalho para que 13 mil carros sejam produzidos. Mas Hunt insiste na produção real contratada com os japoneses, o que irrita um dos operários (Willie), que argumenta: “nas últimas semanas comemos, dormimos e mijamos aqui (...). Hoje é domingo. Não vejo meu filho há duas semanas”. É o próprio trabalho tornando-se insuportável para o trabalhador, como afirmam Marx e Engels (1985).

É assim que os novos usos de seus corpos e, portanto, as novas subjetividades em lidar com eles, lhes estavam sendo impostos pela ordem política, que sempre os lembrava de que: “No music. No cigar. Only work!”. Fossem, ou por meio das rígidas instruções acerca do modo de executar os movimentos e nos resultados deles a serem obtidos (“No Japão, o operário sente vergonha. Faz serão. Zero por cento de defeito”), fossem os (mais uma vez) de ginástica laboral, cujos movimentos robotizados e padronizados do instrutor modelo todos deveriam seguir, e que de certa forma já prenunciavam o que lhes aguardava na linha de montagem – sua incorporação à máquina. Isso é o que desejava Taylor (1990), ao apresentar as exigências para o operário ideal na linha de montagem da grande fábrica taylorista/fordista: a total anulação e robotização dos trabalhadores responsáveis pela execução de tarefas parceladas. “Se você é um operário classificado deve fazer exatamente o que este homem lhe mandar, de manhã à noite. Quando ele disser para levantar a barra e andar, você se levanta e anda, e quando ele mandar sentar, você senta e descansa. Você procederá assim durante o dia todo. E, mais ainda, sem reclamações. Um operário classificado faz justamente o que se lhe manda e não reclama” (TAYLOR, 1990, p. 46).

Fossem, ainda, os movimentos de execução das tarefas na linha de montagem propriamente dita, quando os operários eram constantemente trocados de posto de trabalho com o objetivo de “ter de aprender de tudo”, uma vez que “como equipe, ninguém é especial”, como diz Saito, numa clara referência à polivalência, exigência típica do modelo de produção toyotista. A captura já não se volta apenas para os braços, mas para além deles; tenta-se capturar a totalidade das subjetividades individuais. Hunt ainda tenta justificar as atitudes dos operários, explicando que todos estavam na América e “todo americano gosta de se sentir especial”. Mas Saito é taxativo e inflexível: “Só há um jeito de dirigir a fábrica!”

Diferentemente de “Tempos Modernos”, onde o visionário Chaplin “apenas” faz um prelúdio daquilo que irá se disseminar no capitalismo tardio (pós-guerra), por meio das novas tecnologias da informação e comunicação (ALVES, 2006), essa captura, em “Fábrica de Loucuras”, era apoiada pela instalação de câmeras na linha de montagem e pelo subsequente monitoramento de seus movimentos na sala de controle operada pelos japoneses. Trata-se de um controle virtual que se espraia para além da linha de montagem, atingindo, inclusive, a privacidade operária no interior da fábrica. Nesse caso em particular, o “No newspaper!” retrata a negação da possibilidade de leitura dentro do banheiro, momento mais íntimo e privado em que se espera estar livre dessa rede. Esses elementos filmíticos retratam aquilo que se define como modelo panóptico (BENTHAM, 1789), uma tecnologia de vigilância e controle que dá, à quem inspeciona, total visibilidade à intimidade de um grupo de indivíduos, produzindo um olhar normatizador (leia-se modo de controle eficiente – disciplina) sobre quem deve ser vigiado. O que está em jogo nada mais é do que a construção de uma técnica minuciosa que permite ver e que induz a efeitos de poder (FOUCAULT, 1987. p. 180). Podemos ir mais adiante: o poder não é verificável, e é a partir dessa dúvida que o olhar único e centralizador da norma pode ser introjetado, uma vez que ao acreditar que está sendo vigiado, o indivíduo passa vigiar a si próprio. Esse é o “objetivo último” do poder: a submissão do indivíduo a um campo tal de visibilidade que por si só, sem a utilização de força, apenas da tecnologia disciplinar, faz do indivíduo o princípio de sua própria sujeição à norma. Prescindi-se ao vigia e transforma-se o indivíduo em seu próprio agente de controle... bem característico do sistema toyotista, seus CCQs e seus demais apetrechos de controle da totalidade da subjetividade operária.

Mas como toda relação de poder, essa não poderia ficar imune aos atravessamentos das subjetividades operárias; imune ao pulsar incessante do trabalho vivo tentando fugir da captura pelo trabalho morto; fugir da disciplina de ordem taylorista/fordista com sua formatação de divisão alienada do trabalho. Nesse sentido é que os operários, seja por meio de ações que os ajudem a lidar melhor com tais dispositivos, como ouvir música ou fumar enquanto trabalham, seja por meio de comportamentos e/ou comentários jocosos acerca dos hábitos nipônicos mostrados pelos japoneses em seu cotidiano na fábrica e fora dela, consciente ou inconscientemente tentam, a seu modo, lidar com as novas exigências que lhes têm sido impostas . Assim é que em uma das cenas, durante as refeições, dois operários aparecem imitando o modo de comer dos japoneses, com palitos. Interessante notar que nessa cena aparece sobre a mesma dos operários outro símbolo magistral da dominação agressiva do capitalismo mundial: uma lata de refrigerante, com a inscrição “Coke”. Essa mesma marca de refrigerante irá aparecer, posteriormente, na cena em que Cosohiro encontra Hunt para agradecer-lhe por ter intercedido em favor de sua esposa, ocasião em que a mesma estava sendo assediada por um dos operários, dentro do supermercado e que Hunt acaba se desentendendo com o operário, chegando mesmo a travar luta corporal com o mesmo.

 

 

Em outra cena, mostrada como o que seria um dia de folga de todos, os operários aparecem fazendo chacotas dos japoneses enquanto esses últimos tomam uma espécie de banho coletivo em um rio. O que também parece estar em jogo é o choque de culturas que passam a ter que conviver juntas, em um cenário onde a sociabilidade “face to face” é inevitável e que passa a ser marcada por essas mesmas culturas antagônicas, postas em movimento. Por um lado, os norte-americanos acostumados com um padrão de trabalho que os vinha permitindo ser produtivos o suficiente para não perder e/ou ver prejudicados seus laços familiares e seu lazer de modo geral. Além disso, ainda o sentimento nacionalista de “serem os melhores”, embora permeado por uma cultura individualista, pois sempre pensam ser “especiais”. Por outro, os japoneses que, tendo como referência os padrões de alto desempenho dos operários nipônicos, cujo gerenciamento se baseia em rígidas técnicas de controle de qualidade da produção, tentam mantê-las, juntamente com seus hábitos culturais, em solo estrangeiro.

Diz Cosohiro a seu mais novo amigo norte-americano (Hunt), como um desabafo de suas angústias por ver que está prestes a incorrer em mais um fracasso gerencial que poderá arruinar a sua vida profissional perante seus compatriotas e companheiros de trabalho. Ele será obrigado a fazer “Shimatsusho” (pedir perdão) novamente, pois eles (os operários) ficaram humilhados por minha causa. “O operário se mede pelo trabalho. A companhia é tudo! Uma equipe. Foi como de um país conquistado, virarmos poder econômico”. Eis a grande revelação de Cosohiro, que também nos faz compreender o porquê da auto imputação de tanta rigidez ao seu trabalho, o que se espraia às suas vidas afetivo-sociais. É o que demonstra a cena em que ele está em casa, ocupado com seus relatórios sobre a produção que novamente naquele mês caiu mais 3,5%, e é solicitado por sua esposa a montar uma bicicleta que ela acabara de comprar. Mas dada a sua ocupação, ele diz não ter tempo (novamente o elemento central do capitalismo, se espraiando para a vida humano afetiva e social) e se irrita com o argumento de sua esposa, que o cobra dizendo que “americanos têm tempo”. Para ele, esse tempo só existe “por que são maus operários”. É o esfacelamento do elo de ligação entre tempo e lazer, imputado pelo capital como uma incompatibilidade que criminaliza o ócio.

Mas, infelizmente, Cosohiro recebe a ligação de seu chefe (Sr. Sakamoto) cobrando-lhe explicações não apenas sobre a baixa produtividade da fábrica, mas também acerca de sua suposta perda de controle sobre os operários, a ele revelada por seu sobrinho Saito. Após essa fatídica ligação, Cosohiro mostra-se desolado, ao que é imediatamente amparado por sua esposa. Nessa cena, vale a pena fazer uma rápida reflexão sobre a questão de gênero retratada no filme. Nessa situação em particular, e na cena em que acontece o jantar na casa de Cosohiro, entre a equipe de gerentes da fábrica e SUS respectivas famílias, Hunt e sua namorada Audrey, fica claro o papel secundário ocupado pelas mulheres na sociedade japonesa de cultura machista. À mulher japonesa cabe os cuidados com o lar, incluindo os filhos e as compras domésticas, ou ainda, uma participação secundária no lazer, apenas torcendo por seus maridos, como por exemplo, em um jogo tipicamente masculino (baseball), retratado no filme. Outra cena que deixa claro a desvalorização da mulher diz respeito ao fato de o Sr. Sakamoto, após visita surpresa à casa de Cosohiro, recursar o convite de seu sobrinho para pernoitar em sua casa, preferindo o hotel, pois a esposa de Saito está em casa.

Os negócios, por outro lado, são assuntos a serem tratados pelos homens, o que fica notadamente determinado no jantar acima mencionado, quando elas saem imediatamente ao anúncio de um deles de que a sobremesa será servida apenas após tratarem dos negócios. Mas com Audrey parece ser diferente, pelo menos ela tenta ser, embora também esteja envolta nesse modelo de sociabilidade de gênero. Ela, por sua vez, interroga se sua presença incomodará aos demais, pois ela quer “saber o que se passa na fábrica”. Demonstra uma certa racionalidade e pragmatismo diante das incertezas impostas pelas contingências, e posteriormente, é o que irá fazer com ela sempre, de algum modo, esteja alertando Hunt sobre as questões que se entrelaçam às suas vidas afetivo-emocionais. Envolta aos olhares machistas e cerceadores dos japoneses, e o olhar exclamativo de Hunt, que parece querer aprovação dos japoneses para a permanência da namorada, parece não haver outra saída a não a ser a de concordar com a sua presença.

Ainda com relação ao desabafo de Cosohiro, percebemos que ele não é o único a ter problemas. Hunt também está imerso em um problema que do seu ponto de vista, não é nada engraçado, mas “deprimente”, em suas palavras. Ele revela que fez outro contrato com os operários, diferente do que havia feito com os japoneses. No final das contas, Hunt e Cosohiro acabam se aproximando, talvez até por identificação de seus problemas-desafio (ou angústias identificatórias). Ambos estão imersos em conflitos humanos genéricos totalizadores de sua identidade abstrata frente às questões maiores, impostas pelo capital.

Isso irá se refletir nas cenas futuras, a partir do acidente de trabalho na linha de montagem, ocorrido com um dos operários (Googleman). Ao fazer a tentativa de corrigir um problema técnico ocorrido na máquina, Googleman tem sua mão apreendida pela máquina, numa clara demonstração de que nesse sistema é o homem (trabalho vivo) que deve ser dominado pela máquina (trabalho morto), e não o contrário. É a dominação do homem pela máquina, que mostra que para ser operada “de dentro” e “por dentro”, requer muito mais do que um mero operário-objeto tão abstrato quanto às peças que a compõe. Hunt, que também acabará por se inserir na linha de montagem, como um ato de desespero para ajudar os operários a atingirem a meta contratada, será culpado por seus companheiros como sendo o responsável pelo ocorrido. Além disso, com sua postura rígida e inflexível, ao ver a linha de montagem parada, Saito ordena, enfurecidamente, que todos voltem imediatamente ao trabalho, o que provoca a fúria de Cosohiro, que parte para cima dele para travar luta corporal com o mesmo.

Já no hospital, quando todos estão aguardando notícias sobre Googleman, inclusive Ito, um dos japoneses que fora deixar alguns agrados para o operário acidentado, acaba revelando, sem saber a verdade, que não haverá aumento para a produção de 13 mil carros. Já não há mais, portanto, segredo. No entanto, Hunt é visto como um líder pelos operários, e como tal, eles ainda negam a realidade. Uma negação que, podemos supor, advém dessa identificação entre os operários e Hunt, que sempre usa de discursos que mexem com o “grande espírito americano”; com o orgulho que sentem em achar que são os melhores. Um discurso cujo “enxerto” é composto por situações cotidianas vividas por todos, o que aumenta a confiança de seu discurso. E é nessa relação “umbilical” que Hunt se apega na esperança de conseguir resolver os problemas que a cada dia se avolumam e que parecem apontar para um desfecho que todos já sabem: o fechamento da fábrica.

Se para Hunt parece sempre haver uma saída, ou uma possibilidade, mesmo que essa esteja apoiada na manutenção da inverdade acerca do contrato que fechou com os japoneses, para Cosohiro parece que a situação é bem diferente, pelo menos no modo como ele encara os problemas. Sua situação fica piorada quando recebe mais uma visita surpresa de Sakamoto, acompanhado de seu fiel escudeiro Saito, quem tem o empreendimento individual de derrubar Cosohiro. Percebemos que a família de Cosohiro está, para a desgraça da tradição japonesa, mas talvez não dele próprio, totalmente americanizada, envolvida que está nos hábitos alimentares, gostos e desejos midiáticos norte-americanos. E para piorar a situação, Sakamoto o comunica que irá à fábrica no dia seguinte, pois foi alertado por Saito que “os homens têm reunião do sindicato”, e se despede: “você me decepcionou!”

E tudo está insustentável a ponto de, após discutirem, Hunt e Cosohiro travarem luta corporal dentro da fábrica. Um (Hunt), defendendo o aumento salarial para os operários, mesmo não tendo cumprido o acordo. Outro (Cosahiro), por estar desnorteado com a possibilidade de receber novamente as faixas da vergonha, “por pensar como americano”. Vale a pena retrocedermos nessa cena para analisar alguns de seus elementos. O diálogo inicial entre os dois é bastante esclarecedor do desespero em que ambos se encontram; quando Cosahiro reafirma o que os japoneses pensam sobre os operários dizendo: “Todo mundo se julga especial! Não querem ser uma equipe. Só pensam em afirmar sua personalidade! Não durariam dois dias no programa japonês! (...) São egoístas, por isso são fracos!”. Hunt rebate as acusações e diz que Cosahiro é que é um fraco, pois “não tem coragem de enfrentar o seu chefe. É um capacho!” Seu ato, de sair chutando e quebrando uma câmera de monitoramento, faz com que Cosohiro o demita publicamente.

Mas essa discussão não para por ai; vai além, a ponto de ficar insustentável com trocas de acusações entre ambos, sobre o modo de dirigir a fábrica, que sob o ponto de vista japonês “é a maneira certa!” E Hunt, por sua vez, questiona: “Se são tão bons, como perderam a guerra?” Vem à tona, mais uma vez, a rivalidade entre japoneses e norte-americanos, levando-os à luta corporal. Interessante notar que durante a briga, ambos caem em uma esteira rolante, numa clara referência ao que realmente estava acontecendo com os dois e, por extensão, com todos os envolvidos. Uma clara acepção ao caráter totalizador da racionalidade taylorista/fordista que atinge instância da produção e da reprodução social em ambos os países. Mais uma vez, é o trabalho vivo, literalmente, sendo tragado pelo trabalho morto. É essa incontrolável situação que leva os operários a abandonarem a fábrica, cancelando a reunião com o sindicato.

Como se já não pudesse ficar pior, e em uma data nada mais sugestiva (Independence Day), é o dia da total desgraça pública de Hunt. Ao subir no palanque de comemorações, o prefeito de Handleyville pede a presença de Hunt, e acaba desmascarando-o perante toda a comunidade (“O homem que salvou Handleyville! Destruiu Handleyville! (...) definitivamente!”). Sinal da extraterritorialidade da Assan Motors Company que submete o poder local, e seus concidadãos, a uma chantagem que aponta o risco de ir embora, cortar os laços locais, fazendo-os subordinados para evitar o desinvestimento (BAUMAN, 2001). Hunt, não tendo mais escolha, a não ser revelar toda a verdade, é encarado, do meio da multidão, por sua ex-namorada Audrey e, como se a estivesse ouvindo novamente dizer: “eles querem que diga a verdade, e não de um aproveitador”, (conselho que lhe foi dado por ela, logo após terem saído do jantar e brigado em função dele tê-la mandado calar a boca), revela a todos a verdadeira história e pede desculpas.

No dia seguinte, Sakamoto e todos os outros estão envolvidos no trabalho, pelo menos é o que deveriam fazer. No entanto, Ito está apreensivo com o nascimento de sua filha, mas não ousa demonstrar tal sentimento para o chefe Sakamoto. Porém, Cosahiro já não sustenta mais toda aquela situação e, não apenas revela o que está acontecendo com Ito (que imediatamente nega), mas também deixa vir à tona o que sempre pensou acerca do ritmo de trabalho dos japoneses: “É ideia americana. Trabalhamos demais. Isso não é nossa vida! É uma fábrica! Nossos amigos e família devem ser nossas vidas! Estamos nos matando! Somos escravos! Muitos pensam como eu. Digam! Podemos aprender com os americanos!” Mas sua fala parece não ter efeito algum, particularmente sobre Sakamoto, que volta ao trabalho e com ele, os demais, enquanto Cosahiro sai desnorteadamente pelas ruas da cidade, até ser quase atropelado por Hunt e Audrey, que fizeram as pazes. Após um breve diálogo, Cosahiro corre e se atira no rio, assustando Hunt, que corre para salvá-lo daquilo que era “apenas um chilique”. E os dois, novamente, estão frente a frente com suas angústias identificatórias. Ambos, por estarem arruinados, embora cada um a seu modo. Cosahiro, por estar mais do que nunca, desacreditado frente a seus compatriotas, e cada vez mais prestes a ser humilhado por ter fracassado enquanto gerente e, portanto, ser “presenteado” com as “faixas da vergonha”. Hunt, por sua vez, por ainda não ter conseguido cumprir com aquilo que lhe foi dado como missão e que ele incorporou como sendo seu: salvar a cidade; tirá-la da ruína que a ameaça novamente. Agora, esse é seu projeto pessoal, pois são “mais de mil e duzentas famílias arruinadas!”. E ambos têm pelo menos um motivo a mais que os leva a se entreolharem e tomar uma decisão: Hunt reatou o namoro com Audrey, e Cosahiro, enfrentou seu chefe.

Mas ambos estão, ao mesmo tempo, ligados por um ideal: mostrar para si próprios que ainda são capazes. Basta-lhes uma nova chance para fazerem tudo diferente, pois sabem que “bagunçamos tudo!”. E é essa nova chance que, juntos, eles vão à procura. Ao voltarem ao trabalho, sós, estão dispostos a fabricarem os mil carros que faltam para dar conta do contrato. Inicialmente desacreditados pelos operários, que estão todos de braços cruzados no pátio da grande fábrica, e pelos japoneses, que estão trabalhando na desmontagem da fábrica. Mas não tarda para que todos os operários, e posteriormente os japoneses, chegarem à conclusão de que podem dar conta da produção estabelecida.

Ao fim, nas cenas que se sucedem, percebemos que os elementos filmíticos utilizados demonstram a total integração (leia-se “espírito de equipe!”, tão valorizado pelos empreendedores nipônicos) entre os operários norte-americanos e os japoneses. Na linha de montagem, todos, inclusive esses últimos, são retratados exibindo os hábitos (ouvir música, dançar e fumar, por exemplo) que antes eram condenados como comportamentos que supostamente prejudicariam a produtividade na fábrica. Mas as exigências de qualidade permeada por ações rígidas e inflexíveis ainda estão presentes, e apenas submersas, naquele cenário. É o que mostra a cena em que um operário instrui o outro sobre o modo padrão de pintar o carro, em uma clara demonstração de que os gestos, agora interna e subjetivamente apreendidos e orientados ainda são, de certa forma, regulados pelas prescrições dos procedimentos. Eles devem permanecer abstratos, para além do seu próprio intelecto. É preciso, em certa medida, se deixar instrumentalizar; tornar seus comportamentos ajustáveis às formalizações do serviço ao qual “pertencem” e aos parâmetros com os quais são avaliados. Trata-se de uma renúncia “estratégica” através da qual o indivíduo deixa, aparentemente, de produzir sentido à sua atividade, aceitando o sentido prescrito pelos procedimentos (GAULEJAC, 2007, p. 104).

Mas ainda faltam pelo menos seis carros para o total a ser produzido. E o Sr. Sakamoto, como qualquer gestionário, é uma pessoa séria e eficaz, e por isso, não tem tempo a perder com qualquer reflexão epistemológica (MARTINET, 1990). Por todo o observado até aqui, em relação a ele, trata-se de um homo economicus, como o “monstro antropológico” (BOURDIEU, 2001), que é habitado por uma suposta racionalidade que reduz todos os problemas da existência humana a um cálculo. E com essa suposta racionalidade começa a contagem dos carros produzidos, sem se importar com os problemas, também existenciais, de Hunt e Cosahiro. No entanto, após verificar uma “lista de defeitos imensa”, mesmo com a produção total pactuada tendo sido cumprida, conclui, perante todos, que aquela “nunca será uma fábrica japonesa!”. Ora, Hunt sabe que seus problemas existenciais (humano-genéricos) também podem afetar Sr. Sakamoto, pois este também está imerso na rede de estranhamento que envolve a todos e, por isso, “se for embora agora, vai perder a maior virada do mundo!”. E é com essa aposta que Hunt o convence de que “seus homens e os meus, juntos, têm um significado. Um significado grandioso. Me orgulho deles!”.

Embora o filme date da segunda metade da década de 1980, a cena final é uma perfeita demonstração da integração entre o espírito individualista norte-americano e estilo de gerenciamento de coletivo presente nas políticas gestionárias japonesas. Trata-se da versão atualizada da ascensão individualista, denominada de off limits (ENRIQUEZ, 1997), que convive amistosamente com o desenvolvimento de um forte espírito de equipe. Aparentemente distintos e contraditórios, esses dois aspectos podem parecer incompatíveis quando pensados a partir da possibilidade de se alcançar o sucesso individual e o estar afinado à sua equipe. No entanto, ao contrário dessa primeira impressão, “os termos se compõem em personalidades maricano-nipônicas onde a mistura miriádica aponta para a tão ambicionada qualidade total de produtos, serviços e homens” (BARROS, 2009, p. 342).

Esses elementos são analisados por Enriquez (1997) ao se voltar para o tipo de estrutura organizacional dominante no mundo corporativo atual – a estrutura estratégica. Segundo esse autor, frente à impossibilidade de total apreensão do mundo, faz florescer modelos adaptáveis às condições sempre mutantes do mercado, dos parceiros, dos adversários. Hunt, é um dos que esse mundo precisa; ele sabe tomar decisões e, ao mesmo tempo, sabe incluir a participação de todos nesse processo. Todos, portanto, devem estar de fato, referidos ao mesmo ponto, aglutinando-se em torno de algo que faça Unidade: A empresa, O grupo, As metas, O cliente. São esses os mecanismos de controle do modo de pensar, dos ideais com os quais se identificar, do controle sobre o corpo. E é a este último aspecto que Eugène Enriquez dá destaque particular. É a esse aspecto que nos detemos nessa cena final, que traduz toda a ideologia gerencialista nipônica, que capturou o espírito individualista norte-americano. Para esse autor, o corpo deve ser refeito, deve ser endurecido, deve se preparar como um guerreiro (e nada melhor do que a ginástica laboral!!!), sujeitando-se ao exame constante de seus limites na busca de ultrapassar os últimos índices. Um corpo off limits. Um corpo ascético, armado para a guerra, mas capaz de “encarnar as paixões para poder provocar entusiasmo ou o medo que dinamiza os grupos” (p. 26). O endurecimento aparece aliado, finalmente, à flexibilidade. Não mais uma única identidade, mas múltiplas identidades segundo o que as circunstâncias exigirem. “identidade compacta e identidades múltiplas não se opõem, elas são complementares uma da outra” (p. 25). Essa é a realidade final de “Fábrica de Loucuras”.



Referências Bibliográficas
BARROS, R. B. Subjetividades contemporâneas: dispositivo grupal e saúde mental. Em: S. R. Carvalho; S. Ferigato; M. E. Barros. Conexões: saúde coletiva. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2009. (Saúde em debate; n. 198)
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
BENTHAM, J. An Introduction to the Principles of Morals and Legislation. Oxford: Clarendon Press, 1789.
BOURDIEU, P. As estruturas sociais da economia. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
DRUCK, G.; THEBÁUD-MONY, A. Terceirização: a erosão dos direitos dos trabalhadores na França e no Brasil. Em: G. DRUCK; T. FRANCO. A perda da razão social do trabalho – terceirização e precarização. São Paulo: Boitempo, 2007.
ENRIQUEZ, E. A organização em análise. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
FORRESTER, V. O horror econômico (Trad. Álvaro Lorencini). São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997.
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
_____. Microfísica do poder. São Paulo: Graal; 1979.
GAULEJAC, V. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social (Trad. Ivo Storniolo). São Paulo: Edeias & Letras, 2007.
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MARTINET, A.-C. Épistémologies et sciences de gestion. Economica: Paris, 1990.
MARX, K.; Engels (1985). Ideologia alemã (Feuerbach). São Paulo: Hucitec, 1987.
MARX, K. (2004). Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.
DRUCK, G.; THEBÁUD-MONY, A. Terceirização: a erosão dos direitos dos trabalhadores na França e no Brasil. En: G. DRUCK; T. FRANCO. A perda da razão social do trabalho – terceirização e precarização. São Paulo: Boitempo, 2007.

 


José Guilherme Wady Santos é Psicólogo e Mestre em Psicologia (UFPA) e Doutorando em Ciências Sociais (UFPA).
É professor da Faculdade de Castanhal (FCAT-PA).
Fernanda Valli Nummer
é Socióloga, Doutora em Antropologia Social, Professora Adjunta do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UFPA-Bélem