"Eu,
Tu, Eles", de Andrucha Waddington
I - O Filme enquanto resgate de uma história vivida
O filme, por se tratar de uma história real, é um resgate histórico importante para entendermos a particularidade brasileira quanto à construção de um estado de direito, e de como essa lógica de organização social influenciou as comunidades mais tradicionais presentes no campo que até hoje resistiram ou cederam à lógica do formalismo do estado burguês.
II
– A trama e seus elementos No
início do filme, Darlene parte para o vilarejo, grávida,
deixando sua mãe no campo, para casar, entende-se que com o
pai de seu filho. Ao chegar à igreja se depara com o salão
vazio. Chateada mas determinada parte para enfrentar o desafio de
ter um filho sozinha. Como prometido à mãe, Darlene
volta com o filho para a benção da avó, ao chegar
à casa da mãe se depara com o velório da mesma.
Após esse fato, Darlene resolve voltar para o sítio,
fixando-se na antiga casa de sua mãe. Darlene
passa a trabalhar de sol a sol, de facão à mão
no corte da cana, num contexto de seca e miséria. Recém-chegada
de volta a sua terra, encontra um antigo vizinho (Ozias) construindo
uma modesta casa, que naquelas condições era significativa
de algum prestígio. Então, Darlene comenta com admiração:
“Enricou, hein?”. Alguns dias após o encontro,
Darlene recebe a visita de Ozias, que fruto de uma sociedade machista,
vai “direto ao ponto” e oferece sua casa em troca da mão
de Darlene. Sem nenhuma perspectiva de uma vida melhor, ela aceita
a proposta. Esse
primeiro ponto é uma parte de importante reflexão para
podermos pensar a constituição de uma moral camponesa
a partir de valores éticos. Nesse caso o casamento (“valor
familiar”) é uma condição necessária
para sustentar e dar continuidade da vida no campo, ligando-se intrinsicamente
aos valores “terra” e “trabalho” , funções
respectivamente representadas por Ozias, que é o detentor da
casa e do lote onde moram, e por Darlene que é a força
de trabalho tanto na casa, quanto na roça. É de grande
importância também percebermos que a mulher camponesa
nesse contexto histórico (provavelmente entre os anos 60-70),
já é assalariada e trabalha fora do contexto familiar,
mesmo que em condições precárias. Esse
é um elemento importante para entendermos a particular formação
social brasileira que na medida em que assalaria a mão de obra
no campo, ainda a mantém seus empregados afastados dos direitos
constitucionais do cidadão, subordinados a condições
de miséria, fatores que ainda configuram uma relação
de imposição de um “senhor de terras” que
explora todos esses trabalhadores. Na
continuidade da trama, alguns anos depois, Zezinho, primo de Ozias,
vai morar com o casal e torna-se o segundo marido de Darlene. Zezinho,
apaixonado, proporciona a atenção que Darlene não
encontra em seu marido. Darlene dá a luz a uma criança
parecidíssima com Zezinho. Osias, por sua vez, finge ignorar
as evidências. Zezinho toma conta de seu filho não pretendendo
esconder ser seu, porém, nem mesmo assim Osias renega a convivência
com ambos. Observamos
nesse ponto uma lógica patriarcal no comportamento de Ozias,
que tolera o comportamento da mulher e do primo, por saber que de
acordo com a moral vigente naquele contexto, ele era o “dono”
da mulher, perante a família e toda a comunidade, demonstrando
a questão da honra está relacionada à posse de
Darlene, da casa e dos filhos que ali residiam e que o continuariam
sendo subordinados enquanto dependessem de seu “território”
para sobreviver. Tempos
mais tarde, Darlene conhece Ciro, um rapaz bonito que estava de passagem,
e apaixona-se. Ciro é levado para ficar na casa com o trio
apenas por pouco tempo, pois não tem um lar fixo. Entretanto,
torna-se o “terceiro marido” de Darlene ao morar definitivamente
no sítio.
Nesse
caso a presença de Ciro, um agregado, é concedida por
Ozias, que se utiliza da paixão de Darlene por Ciro, para provocar
Zezinho. Nesse sentido percebemos que o que configura essa relação
é a honra, porque apesar de Darlene ter um filho com Zezinho
e futuramente com Ciro, o que importa para Ozias é que sua
mulher esteja em casa, trabalhe para o seu bem estar e durma com ele.
Ozias se utiliza de todas as situações para reafirmar
seu posicionamento de “senhor” que coordena as ações
das pessoas segundo sua vontade, segundo a moral patriarcal camponesa
ligada à tradição familiar. Poderíamos
dizer que a trama é reveladora ao demonstrar as diversas formas
de amor existentes dentro de uma entidade familiar, considerando esse
o mais novo conceito de família, que vai além da família
tradicional e sagrada pelo matrimônio, mas esse fenômeno
é na verdade expressão de uma particularidade brasileira
já referida acima, que reafirma o caráter múltiplo
da constituição do cenário social rural brasileiro.
O
fecho do filme se dá com a ida do Ozias ao cartório
com as crianças, fato que desespera Darlene por não
encontrar as crianças em casa. Ozias registra todos como seus
filhos, retorna a casa e entrega os papéis a Darlene na presença
de Zezinho e Ciro dizendo: “Registrei os meus menino”,
subentendendo-se a lógica de que se foram paridos por Darlene,
eram dele, seu marido. Esse é um elemento do início de uma modernidade a ser pensado na trama, pois no momento em que a ética daquelas relações sociais já não dá conta de assegurar a posição de Ozias (nesse ponto Darlene poderia fugir de casa com Ciro e constituir outra casa/família e deixa-lo) ele recorre às instituições sociais do estado para se firmar enquanto cidadão, rompendo com a ordem doméstica de organização da vida rural.
III
- Conclusão A
partir do filme, ao tentarmos observar os elementos que constituem
o cenário rural brasileiro na questão dos costumes camponeses,
entendemos que o cineasta tenta ilustrar uma história vivida
por uma mulher camponesa em meio a um contexto social não condizente
com sua realidade, e que mesmo assim fazia parte de uma família
tradicional, patriarcal e que como todas as outras mulheres. Darlene
sofria também com a subjugação do mundo machista
apesar de no Brasil desse contexto, simbolizar uma mulher que rompe
com todos os paradigmas machistas e patriarcais ao ter filhos com
mais de um homem e conviver com todos eles. Darlene encontra-se refém de toda a constituição patriarcal do meio rural em que vive. O único modo de romper com Ozias seria abandonando-o e nessa condição, Darlene também estaria “presa” com o vínculo atribuído pela sociedade moderna, de ser mãe dos filhos de Ozias e não poder abandonar seus filhos. Essa é exatamente a constituição do cenário brasileiro demonstrado pelo filme. Um arranjo peculiar, um misto dos costumes rurais que passa a se subordinar aos novos limites, leis e costumes urbanos.
Referências:
Bruno Lacerra de Souza é Licenciado em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, UNESP-Marília. Foi bolsista técnico do projeto de extensão "Tela Crítica".
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