Dossier
“Beleza Americana ”,
de Sam Mendes

(EUA, 1999)

 

 

"Beleza Americana": comentários psicológicos

 

 

Jorge Trindade

Laetitia Moraes Trindade

 

 

Introdução


O presente artigo aborda algumas ideias apresentadas oralmente em dois seminários sobre o filme. O primeiro deles foi realizado na Escola Judicial da 12a Região TRT, Florianópolis, em 2011, e o segundo na Escola Judicial da 24a Região TRT, Campo Grande, em 2012.
Em ambos, a apresentação constitui apenas uma parte de um painel compartilhado e substancialmente enriquecido com os comentários dos colegas, Prof. Giovanni Alves e Prof. Elton Somensi de Oliveira, sem os quais referidos eventos não teriam alcançado êxito. Nessas oportunidades também recebemos valiosas contribuições dos Magistrados, cabendo parabenizar as Escolas Judiciais pelo elevado nível dos debatedores e pela iniciativa no aprimoramento cultural dos juízes. Agradeço-lhes, pois, a parceria naqueles eventos, bem como o convite do professor do Giovanni para escrever este texto e, assim, rememorar ambos os eventos.

 

Caracterização Psicológica das Personagens


Beleza Americana é um filme que, ao retratar os conflitos de um americano quarentão de classe média (Lester), satiriza a beleza superficial, expondo o individualismo e o materialismo das relações interpessoais, fazendo transparecer a crise da família e da própria sociedade americana.

O filme inicia com a seguinte sentença: “Meu nome é Lester. Essa é minha vizinhança. Essa é minha rua. Essa é minha vida. Eu tenho 42 anos e, em menos de um ano, estarei morto. É claro, eu ainda não sei disso. E, de certa forma, eu estou já morto.” Trata-se, sem dúvida, de uma metáfora que, em certo sentido, remete à expressão de Morin (2000) , segundo a qual “se vive de morte”, assim como também pode-se “morrer de vida”.

Lester, de uma forma ou de outra, desde o início está morto. Ele personifica uma vida afetivamente seca. Seu imaginário é pobre. Sua vida está marcada por um grande vazio existencial. Sua monotonia, seu riso passivo e quase bobo, sem expressão para nada-além, simboliza tudo aquilo que pode ser definido como simplesmente comum e mediano. Sua postura é infantilizada perante a esposa, Carolyn, assim como também se mostra inconsequente com relação ao emprego, pouco usufruindo dos vínculos, sempre escassos e superficiais, com sua filha Jane.

Carolyn, por sua vez, é uma mulher fálica, padronizada e matriarca, que se sustenta por slogans e se deixa levar por aparências e frivolidades. Lester vive curvado perante sua presença. Do ponto de vista psicológico, ela apresenta mecanismos emocionais de baixa densidade afetiva. É superficial, fantasiosa e de cognição rasteira. Presa ao desejo do passado, produz uma pseudoidealização do sucesso. Por isso, ao conhecer um corretor de imóveis – o rei dos imóveis – fica inebriada pelo mundo das aparências, estabelecendo um relacionamento sem qualquer perspectiva a não ser a traição como se Lester fosse a única fonte de todas as suas frustrações como esposa, mãe e mulher.

 

Jane, ao mesmo tempo confusa e frágil, está em busca de identidade no espaço de uma família (e sociedade) afetivamente ressentida. É uma adolescente cercada de conflitos por todos os lados. Expressa sentimentos odiosos contra o pai, visto como “idiota”. Parece mover-se pelo princípio do desejo primário e de satisfação imediata: “Quero acabar com a raça dele,” ela diz para o namorado, Ricky Fitts, que – de modo francamente psicótico - propõe: “Quer que eu mate ele para você?”. Jane, monossilabicamente como convém, aceita: “Quero”. Uma adolescente que não consegue responder as suas perguntas fundamentais, em meio a uma família cujo relacionamento vai se degradando progressivamente.

Os aspectos vinculares apontam para o estabelecimento de uma dinâmica familiar caótica, com papéis confusos e fracassados. Nesse contexto, é simbolicamente imprescindível “matar o pai”. A proibição do Parricídio e a proibição do Incesto, mesmo que só no plano do imaginário, parecem não suficientemente inscritas como Lei Primeva (Fundamental). Isso remete à imago da família americana, e, via de consequência, coloca em xeque a sociedade que se organiza a partir da superfície, das aparências e do sucesso econômico.

Essas características são bem representadas pelos Burnham e pelos Fitts. Duas famílias de coesão afetiva precária e de organização edípica confusa em que as noções de respeito, lei, transgressão e culpa não estão claramente definidas.

Ricky Fitts é um jovem com características esquizotípicas e perversas, que tem gosto pelos esconderijos. Um espelho do pai (...) e da mãe. Envolvido com drogas, parece não possuir consciência do projeto de morte que ela implica. À comunicação impossível com um pai instransponível abre-se para a escopofilia: perceber o mundo através de uma câmera invasiva que reduz a complexidade do universo a uma parte escotomizada da realidade, àquilo que está fora e, consequentemente, a única realidade que pode ser filmada. Sem empatia, incapaz de se colocar no lugar do outro, centrado no seu restrito e particular universo, é fruto do esmagamento afetivo que sofreu na infância com um pai tirânico e violento, o Coronel Frank Fitts.

Frank Fitts é nazista, espancador, autoritário, preconceituoso, e sobretudo falso disciplinador. Suas características, ao fim e ao cabo, mascaram o conflito identitário maior da homossexualidade. Ela vem escondida atrás da barreira do coronel viril protegido por uma instituição acima de qualquer suspeita. Além disso, possui traços paranóides e persecutórios. É danificador da sanidade mental da esposa, do filho e dos vizinhos. O desprezo e a repulsa pelos vizinhos gays, encontra nele seu próprio desejo, o que evidencia sua personalidade perversa. Assim, Frank mostra o que esconde e esconde o que mostra. É dentro do armário que guarda objetos nazistas como galardão. Veste a máscara da virilidade. Teme o que deseja e deseja o que teme. Esse aporético conflito sugere o único fim possível: violência e ódio; delírio e morte.

De outro lado, Bárbara triangulariza a família Fitts. Sua fisionomia é tão apagada e sem viço, que retrata a mais fiel incapacidade de se constituir como pessoa, eis que, oprimida pelo Coronel, apresenta-se como uma personagem absolutamente sem mímica: em todas as cenas que aparece choca a sua falta de mímica. Uma personagem hipomímica. Parece uma mulher de cera. Assim ela consegue transmitir apenas infelicidade. O rosto depressivo deixa transparecer “uma vida sem vida”, cuja esperança quem sabe esteja no seu desaparecimento completo. Não seria a vida a morte e o corpo o seu sepulcro?

 

Do ponto de vista psicanalítico, Ângela é a personagem mais curiosa e, paradoxalmente, mais fútil. Parece esférica, mas não é. Não parece plana, mas é. Dentre as camadas da superficialidade, ocupa a extremidade mais superficial. Musa das inspirações de Lester, é fulgurante e instantânea. Histeriforme. Seu desejo é o desejo do outro. Um objeto impossível. Lembra a lenda segundo a qual embaixo do arco-íris há um pote de ouro, mas quando o caminhante chega o pote dourado nunca está nesse lugar. Estará sempre em um lugar outro. Inacessível. Seu lugar é sempre um lugar da falta. Ângela é justamente essa refração. Existe onde não está e está onde não existe. Relata ter inúmeras experiências sexuais, quando, na sua verdade, tudo é fantasia. Sedução e mentira são características que a retratam bem. “Os caras sempre babam por mim.” Apesar de referir que o pior de tudo é ser comum, apresenta-se da forma mais comum possível. Tem beleza física, mas seus sentimentos não são verdadeiros: é uma rosa destituída de perfume, sem essência. Mas, para Lester, faz lembrar as rosas vermelhas. A fantasia dentro da fantasia. O engano dentro do ludibrio. Nesse arranjo, a felicidade é simplesmente impossível. Para Lester, porque já passou a sua vez. Para Ângela, porque apenas representa o que ela não é. Ela perfila a própria beleza americana, an impossible dream.

 

Entendimentos Psicodinâmicos

Lester, frustrado em sua vida sentimental e profissional, envolve-se na miragem do desejo impossível que está representado pela jovem Ângela, uma adolescente que aparece como a melhor amiga de sua filha. O desejo de Lester e suas fantasias sexuais com Ângela são os deslocamento do desejo sexual para com a filha: um Édipo invertido, imaturo, pueril, e, por óbvio, incestuoso. O mito é o nada que é tudo, disse Pessoa (2005) . Incita-o a ir em busca do tempo perdido: fazer ginástica, fumar maconha, ouvir conversas, comprar o carro dos sonhos, sentir-se jovem outra vez. Todos esses aspectos compõem um conjunto de defesas maníacas destinadas a negar o conflito maior, o envelhecimento e a morte. O desejo de amor, nesse aspecto, surge como um grito desesperado para dizer um infrutífero não-à-morte. Condenado à opacidade, o reflexo de Lester no monitor mostra que o homem é sempre menor quando está aprisionado, mas, para Lester, foi impossível reinventar-se.

 

 

Ao longo do filme, os momentos felizes são identificados pela imagem da rosa vermelha, linda e perfeita, mas destituída de perfume. A cena do jantar regulado, com música de fundo de elevador, não tem o perfume das rosas que exibe. Há uma denúncia da aparência e a falta da essência. A essência da rosa é o seu perfume: sem perfume, uma rosa simplesmente deixa de ser uma rosa para ser uma planta. Uma planta qualquer. Enfeita, mas não encanta. Não cheira nem exala. Assim também a família é visualmente linda, mas sem emoção, afeto e desejo. Não há graça nela. Se rosa é desejo, enquanto houver rosas tudo estará bem. Até o Cel. Fitts representará uma simples reação homofóbica, quando o problema está no medo de encontrar o homofóbico, não pelo lado de fora - nos vizinhos - mas pelo lado de dentro, em si mesmo. Então é preciso esconder na aparência da masculinidade aquilo que se manifesta através da homofobia do marujo.
Assim, será preciso expulsar Rick de casa como soldado desmembrado da tropa. Para resguardar a honra como imagem a qualquer preço, é necessário arrancar as insígnias. Enquanto tenta efetuar essa manobra interna de guerra com seus impulsos homofóbicos, o coronel tem o “dever” de expulsar o filho para manter escondido o ciúme. Ficará apenas o valor semântico de pai, uma vez que todo registro irá se apagar e, para isso, Lester terá de ser morto de verdade. Não importa: a culpa será sempre do outro. E Lester não conseguirá despertar do sono da inconsciência para as surpresas da vida. Já não havia mais essa possibilidade desde o começo.

A dança do saco plástico, filmada e idolatrada por Ricky, expressa um momento de transcendência. O sentido é uma atribuição do sujeito. Revela a condição privilegiada da arte como caminho da subjetivação. Possibilidade de expressão de alguma coisa ainda não nomeada. Ela não traz nenhum significado definitivo ou fechado, apenas sugere a busca de significação na medida em que o sentido passa e perpassa pelo que é sentido.

De fato, há vida atrás das coisas, e essa beleza é tanta que se torna insuportável de ser vivenciada enquanto incapaz de ser pensada e transformada. Somente o encontro com o ato criativo, e por isso mesmo capaz de transformar, permitirá a experiência estética da verdade, que será alcançada quando a banalidade, inscrita na versão burguesa do belo como consumo, for definitivamente derrotada, e o lugar-comum - sempre autoritário e opressor - for deposto para dar vez ao plural, latente e essencial. É o perfume da rosa.
Assim, é possível compreender como o filme inicia/termina com a morte de Lester. Sua vida já estava consumada. Do contrário, a vida teria de voltar a ser “normalizada” e, portanto, outra vez se tornaria a igual à morte.

 

Referências

MORIN, Edgar: Os sete saberes necessários à educação do futuro. Cortez, 2000.

PESSOA, Fernando. Obra poética. Editora Nova Aguilar. Rio de Janeiro, 2005.

 

Jorge Trindade é Pós-doutor em Psicologia Forense. Doutor em Psicologia.
Doutor em Ciências Sociais pela
Universidade de Lisboa.
Presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia Jurídica.
Professor Livre-docente da Universidade Luterana do Brasil.
Procurador de Justiça aposentado.

Laetitia Moraes Trindade é Estudante de Psicologia da PUCRS