Dossier
"Beleza Americana": comentários psicológicos
Jorge Trindade Laetitia Moraes Trindade
Introdução
Caracterização Psicológica das Personagens
O
filme inicia com a seguinte sentença: “Meu nome é
Lester. Essa é minha vizinhança. Essa é minha
rua. Essa é minha vida. Eu tenho 42 anos e, em menos de um
ano, estarei morto. É claro, eu ainda não sei disso.
E, de certa forma, eu estou já morto.” Trata-se, sem
dúvida, de uma metáfora que, em certo sentido, remete
à expressão de Morin (2000) , segundo a qual “se
vive de morte”, assim como também pode-se “morrer
de vida”. Lester,
de uma forma ou de outra, desde o início está morto.
Ele personifica uma vida afetivamente seca. Seu imaginário
é pobre. Sua vida está marcada por um grande vazio existencial.
Sua monotonia, seu riso passivo e quase bobo, sem expressão
para nada-além, simboliza tudo aquilo que pode ser definido
como simplesmente comum e mediano. Sua postura é infantilizada
perante a esposa, Carolyn, assim como também se mostra inconsequente
com relação ao emprego, pouco usufruindo dos vínculos,
sempre escassos e superficiais, com sua filha Jane. Carolyn,
por sua vez, é uma mulher fálica, padronizada e matriarca,
que se sustenta por slogans e se deixa levar por aparências
e frivolidades. Lester vive curvado perante sua presença. Do
ponto de vista psicológico, ela apresenta mecanismos emocionais
de baixa densidade afetiva. É superficial, fantasiosa e de
cognição rasteira. Presa ao desejo do passado, produz
uma pseudoidealização do sucesso. Por isso, ao conhecer
um corretor de imóveis – o rei dos imóveis –
fica inebriada pelo mundo das aparências, estabelecendo um relacionamento
sem qualquer perspectiva a não ser a traição
como se Lester fosse a única fonte de todas as suas frustrações
como esposa, mãe e mulher.
Jane,
ao mesmo tempo confusa e frágil, está em busca de identidade
no espaço de uma família (e sociedade) afetivamente
ressentida. É uma adolescente cercada de conflitos por todos
os lados. Expressa sentimentos odiosos contra o pai, visto como “idiota”.
Parece mover-se pelo princípio do desejo primário e
de satisfação imediata: “Quero acabar com a raça
dele,” ela diz para o namorado, Ricky Fitts, que – de
modo francamente psicótico - propõe: “Quer que
eu mate ele para você?”. Jane, monossilabicamente como
convém, aceita: “Quero”. Uma adolescente que não
consegue responder as suas perguntas fundamentais, em meio a uma família
cujo relacionamento vai se degradando progressivamente. Os
aspectos vinculares apontam para o estabelecimento de uma dinâmica
familiar caótica, com papéis confusos e fracassados.
Nesse contexto, é simbolicamente imprescindível “matar
o pai”. A proibição do Parricídio e a proibição
do Incesto, mesmo que só no plano do imaginário, parecem
não suficientemente inscritas como Lei Primeva (Fundamental).
Isso remete à imago da família americana, e, via de
consequência, coloca em xeque a sociedade que se organiza a
partir da superfície, das aparências e do sucesso econômico.
Essas
características são bem representadas pelos Burnham
e pelos Fitts. Duas famílias de coesão afetiva precária
e de organização edípica confusa em que as noções
de respeito, lei, transgressão e culpa não estão
claramente definidas. Ricky
Fitts é um jovem com características esquizotípicas
e perversas, que tem gosto pelos esconderijos. Um espelho do pai (...)
e da mãe. Envolvido com drogas, parece não possuir consciência
do projeto de morte que ela implica. À comunicação
impossível com um pai instransponível abre-se para a
escopofilia: perceber o mundo através de uma câmera invasiva
que reduz a complexidade do universo a uma parte escotomizada da realidade,
àquilo que está fora e, consequentemente, a única
realidade que pode ser filmada. Sem empatia, incapaz de se colocar
no lugar do outro, centrado no seu restrito e particular universo,
é fruto do esmagamento afetivo que sofreu na infância
com um pai tirânico e violento, o Coronel Frank Fitts. Frank
Fitts é nazista, espancador, autoritário, preconceituoso,
e sobretudo falso disciplinador. Suas características, ao fim
e ao cabo, mascaram o conflito identitário maior da homossexualidade.
Ela vem escondida atrás da barreira do coronel viril protegido
por uma instituição acima de qualquer suspeita. Além
disso, possui traços paranóides e persecutórios.
É danificador da sanidade mental da esposa, do filho e dos
vizinhos. O desprezo e a repulsa pelos vizinhos gays, encontra nele
seu próprio desejo, o que evidencia sua personalidade perversa.
Assim, Frank mostra o que esconde e esconde o que mostra. É
dentro do armário que guarda objetos nazistas como galardão.
Veste a máscara da virilidade. Teme o que deseja e deseja o
que teme. Esse aporético conflito sugere o único fim
possível: violência e ódio; delírio e morte.
De outro lado, Bárbara triangulariza a família Fitts. Sua fisionomia é tão apagada e sem viço, que retrata a mais fiel incapacidade de se constituir como pessoa, eis que, oprimida pelo Coronel, apresenta-se como uma personagem absolutamente sem mímica: em todas as cenas que aparece choca a sua falta de mímica. Uma personagem hipomímica. Parece uma mulher de cera. Assim ela consegue transmitir apenas infelicidade. O rosto depressivo deixa transparecer “uma vida sem vida”, cuja esperança quem sabe esteja no seu desaparecimento completo. Não seria a vida a morte e o corpo o seu sepulcro?
Do ponto de vista psicanalítico, Ângela é a personagem mais curiosa e, paradoxalmente, mais fútil. Parece esférica, mas não é. Não parece plana, mas é. Dentre as camadas da superficialidade, ocupa a extremidade mais superficial. Musa das inspirações de Lester, é fulgurante e instantânea. Histeriforme. Seu desejo é o desejo do outro. Um objeto impossível. Lembra a lenda segundo a qual embaixo do arco-íris há um pote de ouro, mas quando o caminhante chega o pote dourado nunca está nesse lugar. Estará sempre em um lugar outro. Inacessível. Seu lugar é sempre um lugar da falta. Ângela é justamente essa refração. Existe onde não está e está onde não existe. Relata ter inúmeras experiências sexuais, quando, na sua verdade, tudo é fantasia. Sedução e mentira são características que a retratam bem. “Os caras sempre babam por mim.” Apesar de referir que o pior de tudo é ser comum, apresenta-se da forma mais comum possível. Tem beleza física, mas seus sentimentos não são verdadeiros: é uma rosa destituída de perfume, sem essência. Mas, para Lester, faz lembrar as rosas vermelhas. A fantasia dentro da fantasia. O engano dentro do ludibrio. Nesse arranjo, a felicidade é simplesmente impossível. Para Lester, porque já passou a sua vez. Para Ângela, porque apenas representa o que ela não é. Ela perfila a própria beleza americana, an impossible dream.
Entendimentos
Psicodinâmicos Lester, frustrado em sua vida sentimental e profissional, envolve-se na miragem do desejo impossível que está representado pela jovem Ângela, uma adolescente que aparece como a melhor amiga de sua filha. O desejo de Lester e suas fantasias sexuais com Ângela são os deslocamento do desejo sexual para com a filha: um Édipo invertido, imaturo, pueril, e, por óbvio, incestuoso. O mito é o nada que é tudo, disse Pessoa (2005) . Incita-o a ir em busca do tempo perdido: fazer ginástica, fumar maconha, ouvir conversas, comprar o carro dos sonhos, sentir-se jovem outra vez. Todos esses aspectos compõem um conjunto de defesas maníacas destinadas a negar o conflito maior, o envelhecimento e a morte. O desejo de amor, nesse aspecto, surge como um grito desesperado para dizer um infrutífero não-à-morte. Condenado à opacidade, o reflexo de Lester no monitor mostra que o homem é sempre menor quando está aprisionado, mas, para Lester, foi impossível reinventar-se.
Ao
longo do filme, os momentos felizes são identificados pela
imagem da rosa vermelha, linda e perfeita, mas destituída de
perfume. A cena do jantar regulado, com música de fundo de
elevador, não tem o perfume das rosas que exibe. Há
uma denúncia da aparência e a falta da essência.
A essência da rosa é o seu perfume: sem perfume, uma
rosa simplesmente deixa de ser uma rosa para ser uma planta. Uma planta
qualquer. Enfeita, mas não encanta. Não cheira nem exala.
Assim também a família é visualmente linda, mas
sem emoção, afeto e desejo. Não há graça
nela. Se rosa é desejo, enquanto houver rosas tudo estará
bem. Até o Cel. Fitts representará uma simples reação
homofóbica, quando o problema está no medo de encontrar
o homofóbico, não pelo lado de fora - nos vizinhos -
mas pelo lado de dentro, em si mesmo. Então é preciso
esconder na aparência da masculinidade aquilo que se manifesta
através da homofobia do marujo. A
dança do saco plástico, filmada e idolatrada por Ricky,
expressa um momento de transcendência. O sentido é uma
atribuição do sujeito. Revela a condição
privilegiada da arte como caminho da subjetivação. Possibilidade
de expressão de alguma coisa ainda não nomeada. Ela
não traz nenhum significado definitivo ou fechado, apenas sugere
a busca de significação na medida em que o sentido passa
e perpassa pelo que é sentido. De
fato, há vida atrás das coisas, e essa beleza é
tanta que se torna insuportável de ser vivenciada enquanto
incapaz de ser pensada e transformada. Somente o encontro com o ato
criativo, e por isso mesmo capaz de transformar, permitirá
a experiência estética da verdade, que será alcançada
quando a banalidade, inscrita na versão burguesa do belo como
consumo, for definitivamente derrotada, e o lugar-comum - sempre autoritário
e opressor - for deposto para dar vez ao plural, latente e essencial.
É o perfume da rosa.
Referências MORIN, Edgar: Os sete saberes necessários à educação do futuro. Cortez, 2000. PESSOA, Fernando. Obra poética. Editora Nova Aguilar. Rio de Janeiro, 2005.
Jorge
Trindade é Pós-doutor em Psicologia Forense.
Doutor em Psicologia. Laetitia Moraes Trindade é Estudante de Psicologia da PUCRS
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