Dossier
“Beleza Americana ”,
de Sam Mendes

(EUA, 1999)

 

 

Amizade: o perfume do humano

 

 

Elton Somensi de Oliveira

 

 

"Beleza Americana" é o nome dado a uma espécie de rosa que por um lado enche os olhos com sua beleza e perfeição, porém, por outro, é desprovida de perfume. O filme parece mostrar-nos a ausência desse perfume, que é o sentido da vida que o encontro com o outro – que é também um encontro com nós mesmos – proporciona. Fundamentalmente, essa é a ideia que gostaria de explorar. E começaria essa reflexão fazendo algumas considerações sobre a pessoa humana, em relação à qual, podemos identificar três características: individualidade, subjetividade e alteridade (BARZOTTO, 2010). Por individualidade se procura expressar que a pessoa é um ser concreto. Quando falamos pessoa, não indicamos uma espécie ou um gênero, mas um indivíduo: quando alguém diz “Este é o Elton”, não está designando uma essência ou uma natureza (homo sapiens sapiens), mas a existência e, mais além, a subsistência (ou seja, existência por si). Alguém concreto, diferente do Francisco ou da Teresa.

Dessa forma, afirmar a individualidade do ser humano significa dizer que ele manifesta uma natureza humana, que é comum a todos os seres humanos (homo sapiens sapiens) e uma personalidade, que é própria de cada ser humano (este homo sapiens sapiens). Assim, falar sobre uma pessoa não é falar do ser humano, mas de algum ser humano, um ser concreto e real (Elton, Francisco, Teresa).
A experiência nos oportuniza conhecermos um e outro, pessoa humana e natureza humana, mas também há fatores que podem nos obscurecer um deles: ou pessoa humana ou natureza humana.

No filme, as máscaras são tão espessas que as pessoas parecem não conseguir chegar ao concreto, ao real. Temos apenas fantoches, estereótipos revestidores de existências que, assim, perdem seu sentido e apenas encarnam o mito americano de uma felicidade instantânea e ao alcance das mãos.

Para mim, é paradigmática a esposa de Lester, Carolyn. Ela vive o ideal do sucesso como corretora de imóveis. Ela é a personificação dos manuais de sucesso e prosperidade típicos dessa cultura americana. Um ideal lindo, mas sem perfume. Nos eventos sociais, as aparências são fundamentais: Lester deve agir como um marido exemplar. Mas é só aparência: onde está a casa feliz e a família linda quando o sofá é mais importante do que seu relacionamento conjugal?

 

Outra característica da pessoa é a subjetividade, que a designa como ser que não se identifica imediatamente com a sua natureza. Desse modo, é próprio da pessoa dispor de sua natureza; ela não é uma natureza, a pessoa tem uma natureza. Por isso se diz que a pessoa é sujeito (subjectus – o que está sob) e não objeto (objectus – o que está diante).

O ser humano é pessoa porque dispõe de sua natureza humana (animalidade, racionalidade, sociabilidade), realizando-a livremente: a pessoa é livre de sua natureza humana, ela “é sempre certo modo de realização livre da humanidade” (BARZOTTO, 2010). Eu não sou minha natureza humana, tampouco a natureza humana (homo sapiens sapiens) eu sou certo modo de realização livre da humanidade que se manifesta em mim. Esta é a grande revolução de Lester: parece ter percebido que dispõe de sua vida; algum perfume a preenche quando Ângela e Ricky Fitts cruzam seu caminho. Por um lado, o estímulo hormonal de Ângela, que desperta seu desejo e o faz dispor de sua animalidade, vivendo fantasias sexuais. Por outro, o estímulo social de Ricky – que se demite da condição de garçom, como alguém troca de roupa –, que desperta seu querer, fazendo com que disponha de sua racionalidade (a racionalidade ou alienação a que está submetido).


Por fim, a terceira característica da pessoa é a alteridade, por meio da qual se afirma que somente na relação com alguém se é pessoa. Assim como pai, professor, vizinho, parente ou cidadão, pessoa é um conceito relacional – manifesta a existência de outro, de mais alguém. Em razão disso, sem o outro, o indivíduo não consegue perceber-se como pessoa e, portanto, o ápice de sua existência fica comprometido. A realização da pessoa está em certo modo de se relacionar com o outro: a pessoa se apresenta como razão de ser (finalidade) da pessoa. Como diz a música: é impossível ser feliz sozinho.

Na primeira parte do filme, Lester não é pai, não é marido, não é empregado, não é vizinho, não é amigo... Pois não tem verdadeira relação conjugal, paternal, de emprego, de amizade... Lester sente, também, que não é pessoa, nada tem propriamente sentido em sua vida.

Na segunda parte do filme, quando passa a ter uma nova atitude em relação a sua filha, a sua esposa, a seu empregador, a seu vizinho etc., continua sem efetivamente ter as relações mencionadas. Porém, já se encontra em situação melhor, pois, enquanto na primeira parte do filme ele e os outros eram obstáculos para que isso acontecesse: ambos se objetificavam (abriam mão de revelar sua subjetividade), nesse segundo momento ele passa a revelar sua subjetividade; os outros, entretanto, ainda são, em boa medida, obstáculos (objetificados), ainda são rosas sem perfume.

O grande ápice do filme, na minha opinião, é o momento em que Lester retoma definitivamente sua vida, “cai em si”. Isso se dá, parece-me, quando finalmente encontra a oportunidade de consumar seu desejo platônico em relação a Ângela. Deparando-se com a “grande conquista” de sua vida, para a qual vinha somando todos os seus esforços, percebe que, na verdade, tal não era de fato algo que realmente desejasse. Ângela não era algo a ser consumido, mas alguém: também com problemas, também com máscaras.
A experiência daquela abertura de Ângela, que se despe de sua máscara, saindo de seu personagem (revelando timidamente, veladamente, pela primeira vez, sua virgindade), impõe a Lester uma nova forma de relacionamento com ela e desvela sua própria máscara, findando sua busca.

Quando Lester reconhece (tem a experiência) da humanidade de Ângela, experimenta sua própria humanidade. A rosa deixa que seu perfume exale e revele sua verdadeira beleza. Poderíamos nos perguntar: que tipo de relação é essa que, ao revelar o outro, revelamo-nos? Como ter a experiência da condição de pessoa? Como sentir seu (nosso) perfume, derrubar suas (nossas) máscaras, abandonando uma beleza meramente plástica?

Entendo que responder a essas indagações nos leva à consideração de três formas de relacionamentos (ou graus de sociabilidade), que ora denomino: relacionamento de utilidade, relacionamento de atuação e relacionamento de amizade.

Estas espécies são diferenciadas considerando três aspectos: (1) os objetivos que motivam cada participante a estar na relação e são responsáveis pela constituição e manutenção da mesma; (2) o valor que cada participante atribui à relação, o qual depende do valor que cada participante atribui aos seus objetivos nesta relação; e (3) o comprometimento existente entre os participantes da relação, o que remete ao grau de interferência da realização dos objetivos de um dos participantes na realização dos objetivos dos demais.

No relacionamento de utilidade, cada participante tem objetivos que são totalmente independentes dos objetivos dos demais e, assim, a relação existe e subexiste na medida de sua utilidade para a realização desses objetivos particulares. Em razão disso, a valoração do relacionamento é particular, tendo uma importância maior ou menor em decorrência direta do valor que cada atribui aos objetivos que procuram viabilizar por meio da relação. Por isso, também, o fato de um dos participantes alcançar seus objetivos, não interferirá nem implicará, necessariamente, a consecução dos objetivos dos demais.

 

 

Um exemplo poderia ser a relação existente entre colegas de trabalho ou entre as partes de um contrato. Tomemos o caso de um contrato de compra e venda. Comprador e vendedor têm finalidades distintas, mas precisam um do outro para atingir seus objetivos particulares; por isso, fazem certas concessões e cumprem certas normas estabelecidas. O valor que cada um atribui ao relacionamento não é necessariamente o mesmo e depende diretamente da valoração que atribuem àquilo que é objeto do contrato (para o vendedor pode ser uma venda corriqueira em uma promoção, com pequena margem de lucro; ao mesmo tempo em que, para o comprador, pode ser a oportunidade de adquirir um bem há muito desejado). Ademais, o fato de um alcançar seus objetivos não nos permite aferir que o outro também os alcançou – pode ocorrer, por exemplo, que ao final, o comprador tenha ficado plenamente realizado com a consecução de seu antigo sonho de consumo, ao passo que o vendedor tenha se obrigado a vender o produto a um preço muito abaixo do mercado a fim de garantir o capital de giro de seu estabelecimento comercial.

Parece-me que este é o tipo de relação que predomina no filme. Esta é a beleza americana, sem seu perfume. Os personagens vivem juntos, contudo isolados uns dos outros, os quais são, no máximo, um espelho: coexistem. É assim a relação de Lester e Carolyn. É assim a relação entre eles e sua filha Janie – muito bem retratada nas refeições em família. Até a música é mera aparência!


Essa era o relacionamento de Lester em seu primeiro emprego, na revista. O trabalho é apenas, permitam-me afirmar, meio de subsistência, status social, de dever ou fardo que carrega enquanto precisa – nem um segundo a mais. E assim como o trabalho é um peso, as relações de trabalho também o são, as pessoas são inimigos, são elementos desse ambiente a que Lester se submete para poder viver ou ter esperança de viver. Nestas condições, é impossível ser humano trabalhando, é impossível ter relações (propriamente ou plenamente) humanas trabalhando. É impossível ter experiências de relacionamentos pessoais dessa maneira. O trabalho não é digno, nem dignifica. É um meio, nada mais (talvez menos).

Outra espécie é o relacionamento de atuação. Assim como no relacionamento de utilidade, as partes têm objetivos particulares. A diferença está em que o objetivo principal, neste caso, é a própria relação compartilhada: o compartilhar a relação é o que faz com que ela exista e subsista. Desse modo, no relacionamento de atuação os participantes atribuem a mesma valoração à ação: a coordenação de suas ações. Podem ser exemplos deste tipo de relacionamento os casos em que vários se reúnem para jogar futebol ou disputar uma partida de voleibol. No filme, parece-me enquadrar-se nesta descrição o caso entre Carolyn e Buddy Kane, quando se encontram à tarde: consomem-se.

Por fim, a última forma de relacionamento é o de amizade. Nesta espécie, os objetivos não são meramente particulares, tampouco se identificam apenas com o compartilhar o relacionamento. O que motiva, fundamenta e garante a subsistência desta forma de relação é, pelo menos em parte e reciprocamente, o outro participante. Não há em comum apenas o interesse em determinadas condições – como no caso do relacionamento de utilidade –; e também não subsiste simplesmente em razão dos participantes compartilharem uma maneira comum de interpretar a realidade. Na amizade, o que um quer para si, quer (pelo menos em parte) sob a condição de que o outro também queira (e vice-versa).

Ainda, o objetivo compartilhado entre amigos não é somente o bem resultante da colaboração ou coordenação bem sucedida, nem simplesmente o bem de dois projetos ou objetivos realizáveis em comum. O objetivo compartilhado entre amigos é o ter em comum a intenção de mútua realização como pessoas. Neste ponto, diante do sentido que possui, é a amizade se constitui na forma mais perfeita de relacionamentos humano: aqui se oportuniza a experiência da pessoa (do eu e do outro), na medida em que se reconhecem e se abrem reciprocamente. Acredito que esta é a atitude fundamental no relacionamento de amizade: a da abertura para o outro.


Nesse sentido, o relacionamento humano – aquele em que efetivamente eu encontro o outro e, assim, me encontro, só se revela em uma situação onde a amizade é intencionada ou tornada possível pela abertura. Nessas circunstâncias, o fundamental do relacionamento humano não se resume à coexistência, mas implica um efetivo agir (ou abster-se de agir) em função, pelo menos em parte, da plena realização de cada um dos participantes do relacionamento.

Neste sentido, uma relação contratual não precisa ser apenas uma relação de utilidade, na medida em que pode haver uma abertura latente à amizade (uma abertura ao outro). Da mesma maneira, uma atividade esportiva não precisa ser apenas um relacionamento de atuação, pode ser uma atividade onde se desenvolva um relacionamento de amizade. Também nada impede que, secundando (ou melhor, subordinando-se) ao interesse em relação ao outro, haja, nas relações de amizade, também relações de utilidade ou de atuação.


Lester talvez não soubesse, ou apenas parcialmente soubesse, mas sentia falta do humano – de relações de amizade ou da possibilidade de que elas viessem a existir. A ausência do outro (do amigo, em sentido amplo) fez com que ele mesmo perdesse sua identidade. Ângela e Ricky despertaram nele a possibilidade desse perfume desconhecido: que é ele mesmo, que é o outro; a verdadeira beleza. Ele a encontra quando Ângela se revela, permitindo que, já morto, enxergue a vida com outros olhos: "...Mas é difícil ficar bravo, quando há tanta beleza no mundo. Às vezes eu sinto como se estivesse vendo-a de uma vez só, é demais, meu coração se enche como um balão prestes a estourar. Então, eu me lembro de relaxar, e parar de tentar agarrá-la, e então ela flui através de mim, como chuva. E eu não consigo sentir nada além de gratidão por cada pequeno momento da minha vidinha miserável. (falando de modo desprendido agora). Vocês não tem idéia do que eu estou falando, tenho certeza. Mas não se preocupem... um dia vocês terão".

 


É interessante considerar, também, que lembranças ele evoca nesse momento:
Eu sempre ouvi dizer que a sua vida inteira passa diante dos seus olhos como num flash, no segundo que antecede a sua morte. Primeiro: esse "segundo" não é só "um segundo". Ele se estica pra sempre, como num oceano de tempo. Pra mim, foi como estar deitado no acampamento de escoteiros, olhando estrelas cadentes... e as flores amarelas das árvores da nossa rua... ou as mãos da minha avó, e o jeito como a pele dela parecia pergaminho... a primeira vez que eu vi o Firebird novinho do meu primo Tony. E a Janie... e a Janie (Janie, sua filha, aparece duas vezes como imagens de sua memória. Na segunda vez, ainda criancinha, vestida de princesa). E... (palavras ditas com amor) Carolyn. (vemos uma foto de uma Caroline jovem e desprendida, gritando feliz, num parque de diversões; vemos uma foto da família de um tempo atrás - a foto que ele estava olhando no momento da sua morte). Acho que eu deveria estar muito irritado pelo que aconteceu comigo...

Gostaria de referir também outra passagem, desta vez de Ricky. Aquela quando mostra para Janie sua filmagem mais preciosa: a do saco plástico ao vento. Diz ele: "Foi quando entendi que havia toda uma vida por trás das coisas... e essa incrível força benevolente, que me dizia não haver razão para ter medo. Em vídeo não é a mesma coisa, eu sei. Mas me ajuda a lembrar. Eu preciso lembrar. Às vezes, há tanta beleza,no mundo. Que quase que não consigo suportar. E meu coração parece que vai sucumbir..."

Ricky encontrou em um saco plástico o que não consegui encontrar nas pessoas. Vale lembrar a dificuldade de relacionamento, a não abertura dos outros em relação a ele – só Janie teve uma atitude de abertura. É como se ele encontrasse o humano (alguém) em algo (o saco plástico), já que os demais (as pessoas) só possibilitavam algo. A experiência do humano se deu em Ricky por meio do plástico. E, curiosamente, as pessoas pareciam plásticas, sem perfume, mas de aparência perfeita.

A percepção da beleza das pessoas, que estão escondidas em uma beleza sem perfume. Creio que esta tenha sido a experiência que marca a todos eles na parte final do filme: o perfume do humano.

 

REFERÊNCIAS
BARZOTTO, Luis Fernando. Filosofia do direito: os conceito fundamentais e a tradição jusnaturalista. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010.
FINNIS, John. Natural Law and Natural Rights. 2ª Edição. Oxford: Oxford University Press, 2011.

 

 

Elson Somensi de Oliveira é Doutor em Direito pela UFRGS e professor da Faculdade de Direito da PUCRS.