Dossier
Amizade: o perfume do humano
Elton Somensi de Oliveira
"Beleza
Americana" é o nome dado a uma espécie de rosa
que por um lado enche os olhos com sua beleza e perfeição,
porém, por outro, é desprovida de perfume. O filme parece
mostrar-nos a ausência desse perfume, que é o sentido
da vida que o encontro com o outro – que é também
um encontro com nós mesmos – proporciona. Fundamentalmente,
essa é a ideia que gostaria de explorar. E começaria
essa reflexão fazendo algumas considerações sobre
a pessoa humana, em relação à qual, podemos identificar
três características: individualidade, subjetividade
e alteridade (BARZOTTO, 2010). Por
individualidade se procura expressar que a pessoa é
um ser concreto. Quando falamos pessoa, não indicamos uma espécie
ou um gênero, mas um indivíduo: quando alguém
diz “Este é o Elton”, não está designando
uma essência ou uma natureza (homo sapiens sapiens), mas a existência
e, mais além, a subsistência (ou seja, existência
por si). Alguém concreto, diferente do Francisco ou da Teresa. Dessa
forma, afirmar a individualidade do ser humano significa
dizer que ele manifesta uma natureza humana, que é comum a
todos os seres humanos (homo sapiens sapiens) e uma personalidade,
que é própria de cada ser humano (este homo sapiens
sapiens). Assim, falar sobre uma pessoa não é falar
do ser humano, mas de algum ser humano, um ser concreto e real (Elton,
Francisco, Teresa). No
filme, as máscaras são tão espessas que as pessoas
parecem não conseguir chegar ao concreto, ao real. Temos apenas
fantoches, estereótipos revestidores de existências que,
assim, perdem seu sentido e apenas encarnam o mito americano de uma
felicidade instantânea e ao alcance das mãos. Para
mim, é paradigmática a esposa de Lester, Carolyn. Ela
vive o ideal do sucesso como corretora de imóveis. Ela é
a personificação dos manuais de sucesso e prosperidade
típicos dessa cultura americana. Um ideal lindo, mas sem perfume.
Nos eventos sociais, as aparências são fundamentais:
Lester deve agir como um marido exemplar. Mas é só aparência:
onde está a casa feliz e a família linda quando o sofá
é mais importante do que seu relacionamento conjugal?
Outra
característica da pessoa é a subjetividade,
que a designa como ser que não se identifica imediatamente
com a sua natureza. Desse modo, é próprio da pessoa
dispor de sua natureza; ela não é uma natureza, a pessoa
tem uma natureza. Por isso se diz que a pessoa é sujeito (subjectus
– o que está sob) e não objeto (objectus –
o que está diante). O ser humano é pessoa porque dispõe de sua natureza humana (animalidade, racionalidade, sociabilidade), realizando-a livremente: a pessoa é livre de sua natureza humana, ela “é sempre certo modo de realização livre da humanidade” (BARZOTTO, 2010). Eu não sou minha natureza humana, tampouco a natureza humana (homo sapiens sapiens) eu sou certo modo de realização livre da humanidade que se manifesta em mim. Esta é a grande revolução de Lester: parece ter percebido que dispõe de sua vida; algum perfume a preenche quando Ângela e Ricky Fitts cruzam seu caminho. Por um lado, o estímulo hormonal de Ângela, que desperta seu desejo e o faz dispor de sua animalidade, vivendo fantasias sexuais. Por outro, o estímulo social de Ricky – que se demite da condição de garçom, como alguém troca de roupa –, que desperta seu querer, fazendo com que disponha de sua racionalidade (a racionalidade ou alienação a que está submetido).
Na
primeira parte do filme, Lester não é pai, não
é marido, não é empregado, não é
vizinho, não é amigo... Pois não tem verdadeira
relação conjugal, paternal, de emprego, de amizade...
Lester sente, também, que não é pessoa, nada
tem propriamente sentido em sua vida. Na
segunda parte do filme, quando passa a ter uma nova atitude em relação
a sua filha, a sua esposa, a seu empregador, a seu vizinho etc., continua
sem efetivamente ter as relações mencionadas. Porém,
já se encontra em situação melhor, pois, enquanto
na primeira parte do filme ele e os outros eram obstáculos
para que isso acontecesse: ambos se objetificavam (abriam mão
de revelar sua subjetividade), nesse segundo momento ele passa a revelar
sua subjetividade; os outros, entretanto, ainda são, em boa
medida, obstáculos (objetificados), ainda são rosas
sem perfume. O
grande ápice do filme, na minha opinião, é o
momento em que Lester retoma definitivamente sua vida, “cai
em si”. Isso se dá, parece-me, quando finalmente encontra
a oportunidade de consumar seu desejo platônico em relação
a Ângela. Deparando-se com a “grande conquista”
de sua vida, para a qual vinha somando todos os seus esforços,
percebe que, na verdade, tal não era de fato algo que realmente
desejasse. Ângela não era algo a ser consumido, mas alguém:
também com problemas, também com máscaras. Quando
Lester reconhece (tem a experiência) da humanidade de Ângela,
experimenta sua própria humanidade. A rosa deixa que seu perfume
exale e revele sua verdadeira beleza. Poderíamos nos perguntar:
que tipo de relação é essa que, ao revelar o
outro, revelamo-nos? Como ter a experiência da condição
de pessoa? Como sentir seu (nosso) perfume, derrubar suas (nossas)
máscaras, abandonando uma beleza meramente plástica? Entendo
que responder a essas indagações nos leva à consideração
de três formas de relacionamentos (ou graus de sociabilidade),
que ora denomino: relacionamento de utilidade, relacionamento
de atuação e relacionamento de amizade. Estas
espécies são diferenciadas considerando três aspectos:
(1) os objetivos que motivam cada participante a estar na relação
e são responsáveis pela constituição e
manutenção da mesma; (2) o valor que cada participante
atribui à relação, o qual depende do valor que
cada participante atribui aos seus objetivos nesta relação;
e (3) o comprometimento existente entre os participantes da relação,
o que remete ao grau de interferência da realização
dos objetivos de um dos participantes na realização
dos objetivos dos demais. No relacionamento de utilidade, cada participante tem objetivos que são totalmente independentes dos objetivos dos demais e, assim, a relação existe e subexiste na medida de sua utilidade para a realização desses objetivos particulares. Em razão disso, a valoração do relacionamento é particular, tendo uma importância maior ou menor em decorrência direta do valor que cada atribui aos objetivos que procuram viabilizar por meio da relação. Por isso, também, o fato de um dos participantes alcançar seus objetivos, não interferirá nem implicará, necessariamente, a consecução dos objetivos dos demais.
Um
exemplo poderia ser a relação existente entre colegas
de trabalho ou entre as partes de um contrato. Tomemos o caso de um
contrato de compra e venda. Comprador e vendedor têm finalidades
distintas, mas precisam um do outro para atingir seus objetivos particulares;
por isso, fazem certas concessões e cumprem certas normas estabelecidas.
O valor que cada um atribui ao relacionamento não é
necessariamente o mesmo e depende diretamente da valoração
que atribuem àquilo que é objeto do contrato (para o
vendedor pode ser uma venda corriqueira em uma promoção,
com pequena margem de lucro; ao mesmo tempo em que, para o comprador,
pode ser a oportunidade de adquirir um bem há muito desejado).
Ademais, o fato de um alcançar seus objetivos não nos
permite aferir que o outro também os alcançou –
pode ocorrer, por exemplo, que ao final, o comprador tenha ficado
plenamente realizado com a consecução de seu antigo
sonho de consumo, ao passo que o vendedor tenha se obrigado a vender
o produto a um preço muito abaixo do mercado a fim de garantir
o capital de giro de seu estabelecimento comercial. Parece-me que este é o tipo de relação que predomina no filme. Esta é a beleza americana, sem seu perfume. Os personagens vivem juntos, contudo isolados uns dos outros, os quais são, no máximo, um espelho: coexistem. É assim a relação de Lester e Carolyn. É assim a relação entre eles e sua filha Janie – muito bem retratada nas refeições em família. Até a música é mera aparência!
Outra
espécie é o relacionamento de atuação.
Assim como no relacionamento de utilidade, as partes têm objetivos
particulares. A diferença está em que o objetivo principal,
neste caso, é a própria relação compartilhada:
o compartilhar a relação é o que faz com que
ela exista e subsista. Desse modo, no relacionamento de atuação
os participantes atribuem a mesma valoração à
ação: a coordenação de suas ações.
Podem ser exemplos deste tipo de relacionamento os casos em que vários
se reúnem para jogar futebol ou disputar uma partida de voleibol.
No filme, parece-me enquadrar-se nesta descrição o caso
entre Carolyn e Buddy Kane, quando se encontram à tarde: consomem-se. Por
fim, a última forma de relacionamento é o de amizade.
Nesta espécie, os objetivos não são meramente
particulares, tampouco se identificam apenas com o compartilhar o
relacionamento. O que motiva, fundamenta e garante a subsistência
desta forma de relação é, pelo menos em parte
e reciprocamente, o outro participante. Não há em comum
apenas o interesse em determinadas condições –
como no caso do relacionamento de utilidade –; e também
não subsiste simplesmente em razão dos participantes
compartilharem uma maneira comum de interpretar a realidade. Na amizade,
o que um quer para si, quer (pelo menos em parte) sob a condição
de que o outro também queira (e vice-versa). Ainda, o objetivo compartilhado entre amigos não é somente o bem resultante da colaboração ou coordenação bem sucedida, nem simplesmente o bem de dois projetos ou objetivos realizáveis em comum. O objetivo compartilhado entre amigos é o ter em comum a intenção de mútua realização como pessoas. Neste ponto, diante do sentido que possui, é a amizade se constitui na forma mais perfeita de relacionamentos humano: aqui se oportuniza a experiência da pessoa (do eu e do outro), na medida em que se reconhecem e se abrem reciprocamente. Acredito que esta é a atitude fundamental no relacionamento de amizade: a da abertura para o outro.
Neste sentido, uma relação contratual não precisa ser apenas uma relação de utilidade, na medida em que pode haver uma abertura latente à amizade (uma abertura ao outro). Da mesma maneira, uma atividade esportiva não precisa ser apenas um relacionamento de atuação, pode ser uma atividade onde se desenvolva um relacionamento de amizade. Também nada impede que, secundando (ou melhor, subordinando-se) ao interesse em relação ao outro, haja, nas relações de amizade, também relações de utilidade ou de atuação.
Gostaria
de referir também outra passagem, desta vez de Ricky. Aquela
quando mostra para Janie sua filmagem mais preciosa: a do saco plástico
ao vento. Diz ele: "Foi quando entendi que havia toda uma vida
por trás das coisas... e essa incrível força
benevolente, que me dizia não haver razão para ter medo.
Em vídeo não é a mesma coisa, eu sei. Mas me
ajuda a lembrar. Eu preciso lembrar. Às vezes, há tanta
beleza,no mundo. Que quase que não consigo suportar. E meu
coração parece que vai sucumbir..." Ricky
encontrou em um saco plástico o que não consegui encontrar
nas pessoas. Vale lembrar a dificuldade de relacionamento, a não
abertura dos outros em relação a ele – só
Janie teve uma atitude de abertura. É como se ele encontrasse
o humano (alguém) em algo (o saco plástico), já
que os demais (as pessoas) só possibilitavam algo. A experiência
do humano se deu em Ricky por meio do plástico. E, curiosamente,
as pessoas pareciam plásticas, sem perfume, mas de aparência
perfeita. A percepção da beleza das pessoas, que estão escondidas em uma beleza sem perfume. Creio que esta tenha sido a experiência que marca a todos eles na parte final do filme: o perfume do humano.
REFERÊNCIAS
Elson Somensi de Oliveira é Doutor em Direito pela UFRGS e professor da Faculdade de Direito da PUCRS.
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