A
Condição Existencialista na Sociedade Moderna
Parte 1: a inércia. Os
irmãos Coen costumam trabalhar com a realidade humana através
de um olhar pormenorizado sobre seus sentimentos. Especialmente no
que se refere à frustração. A proposta de análise
da obra está pautada em uma relação entre o existencialismo
de Kierkegaard, Heidegger a Sartre. Em um segundo momento, dialogamos
com o sociólogo Anthony Giddens, buscando perceber no filme
a relação entre a modernidade e a angústia do
homem moderno na obra. Ed Crane é um homem bastante reflexivo e insatisfeito com seu cotidiano, no entanto, aparentemente conformado, traduzindo a sensação de inércia que parece acentuar esse sentimento de ausência. O sentimento de passividade permeia a primeira parte do filme. Vivenciando um casamento insípido onde pouco importa se a mulher diz que o ama quando ele sabe estar sendo traído. Essa relação com a companheira deu-se de forma pouco passional, transcorrera de forma um pouco mecânica e mesmo descobrindo que a companheira lhe era infiel, foi incapaz de assumir uma atitude passional. Ao contrário, fingiu-se de ingênuo, simulando nada saber do caso que sua mulher alimentava com o comerciante para o qual a mesma trabalhava, Big Dave. Big Dave era um homem, cujos negócios prosperavam. Conversava eloqüentemente e contava piadas. Isto agradava a Doris, ficando patente aos olhos de todos, inclusive aos de Crane. A exceção era Ann, a esposa abastada de Dave. Parte 2: a liberdade A questão da frustração no trabalho foi o primeiro passo para o comportamento não ético. Após uma tentadora proposta de um suposto comerciante, cujo intuito era o de desenvolver uma depilação a seco. Ed Crane buscou dinheiro para realizar uma aliança comercial a todo custo. A traição cometida pela esposa rendeu-lhe grandes rendimentos financeiros. Pois Ed chantageou o patrão da esposa para que o mesmo lhe desse uma vultosa quantia em dinheiro. Em troca, manteria o sigilo para o marido traído e afastaria a verdade inconveniente da esposa ludibriada. A ética utilitarista nos remete a Maquiavel, em sua obra O príncipe, e a celebre frase “Os fins justificam os meios”. A racionalidade e frieza com que o personagem arquitetou o plano, enganando a todos em nome de sua afirmação pessoal, tendo como fulcro a realização profissional, conduz-nos a problemática capitalista da sociedade em questão, a norte-americana. Todavia, o Big Dave descobriu quem o estava extorquindo e tentou matá-lo. Todavia, em legítima defesa, Ed Crane é quem acabou por dar cabo à vida do comerciante. É nesse momento que a protagonista perde os limites, tornando-se um assassino.
Não obstante, sua mulher é acusada pelo crime. O que parecia uma acusação bastante plausível, tendo em vista que ela estava alterando os livros caixa. Desviando dinheiro da empresa para que o patrão pagasse a chantagem. Neste momento, ele resolve procurar o melhor advogado para libertar a inocente esposa. Em certo momento, decide assumir para o advogado a culpa do crime. Mas o advogado não acredita em sua culpabilidade. Porque verdade ou não, não é uma boa história. Joel Coen parece fazer uma alusão à “racionalidade” das provas científicas. Onde as coisas devem estabelecer uma lógica racional para serem aceitas. Durante esse momento de remorso, não pelo assassinato, mas, pela prisão da esposa, o protagonista encontra refúgio na música. Ouvindo uma jovem conhecida como Birdy que tocava piano clássico, ele resolve pela segunda vez dar sentido a sua vida. (a primeira foi a tentativa de mudar de ramo através do negócio de lavagem a seco.) Dessa vez como agente da garota. Esta, no entanto, não se sente tão entusiasmada com a carreira profissional. Mesmo assim, ele insiste em ajudá-la a ficar famosa. O que aponta para uma tentativa de sentir-se útil, reconhecido. E mesmo a garota estando pouco interessada na carreira, ele buscava com esse feito trazer alguma visibilidade social para sua vida. O que contrastava com seu ofício de barbeiro, que ele considerava como um fazer “mecânico”, pouco reconhecido socialmente. O que reflete a questão dos status das profissões. Durante todo o filme, Ed é conhecido como o barbeiro, o que o faz sentir-se como alguém desprestigiado. Quando este se apresenta ao suposto sócio do senhor Tolliver, e lhe promete conseguir o dinheiro. Este indaga: O barbeiro? Outra cena que revela este aspecto é quando Ed Crane conversa com o advogado de sua esposa e o mesmo afirma: “Eu sou o advogado. Você é o barbeiro. Você não sabe nada! Você não fala nada!” Isso mostra o desabono que representava exercer um ofício eminentemente manual. Ou seja, não era um trabalho que, em tese, exigisse capital intelectual mais elevado. Certo de que a pianista era um talento, resolve levá-la para um mestre em música clássica. Este lhe diz que a menina possui habilidades ordinárias e que lhe falta paixão e criatividade. Qualidades essenciais para um artista. A fala do mestre de música o deixou indignado. Desiludido com o diagnóstico da jovem, decide voltar para casa. Todavia, a viagem traria turbulências ocasionadas pela garota que começa a seduzir o barbeiro que ainda está no volante. Com a confusa situação, ocorre um acidente com o carro. O protagonista é condenado por um crime que não cometeu e fica preso até ser condenado à cadeira elétrica. Em seus últimos momentos, ele reflete sobre o malgrado de sua vida, e conclui que seu único arrependimento foi o de ter sido barbeiro.
O Existencialismo Corrente que surgiu em meados do século XIX, o existencialismo enfatizou o ser humano como indivíduo. Após a Segunda Guerra, contudo, essa corrente ganhou mais força. O filme também é ambientado no pós-guerra. A subjetividade é um elemento-chave, mais importante do que a objetividade. Durante as cenas que precedem o julgamento de Doris, o diretor faz uma crítica à objetividade. Mostrando que na realidade ela inexiste. E no âmbito legal isso é expresso quando o advogado Riedenshneider, elaborando a defesa de sua cliente adota a estratégia de denegrir a imagem da vítima. O então herói de guerra era construído como um homem envolvido em diversas confusões, que se casou por interesse e não havia lutado na Segunda Grande Guerra. O advogado adota o princípio da incerteza como defesa. “Quanto mais olhamos, menos temos certeza”. O que aconteceu de verdade? “Eu não sei. Eu não estava lá”. O que vai ao encontro de uma idéia existencialista. A verdade não pode ser conhecida. Só sabemos o que nossa existência nos permite. O homem se faz a si mesmo por meio de sua existência. Parte do preceito de que a realidade das coisas é incompreensível. Não existe um meio de alcançá-la. Portanto, não existem certezas. Se não existe um plano traçado para o homem na terra, ele é refém de sua liberdade. O que nos faz lembrar da frase do romance de Dostoievski: “Se Deus não existe tudo é permitido”. Essa liberdade é também um peso para o homem na medida em que implica em responsabilidade. No filme, o protagonista parece vivenciar a constante angústia da responsabilidade por seu destino. Produto da sociedade estadunidense, ele é impelido a ser um cidadão que vai dar tudo de si para ascender socialmente, “ser alguém”. Alcançar prestígio social é uma tarefa pela qual vale arriscar sua “alma”. A ausência de um Deus, ao mesmo tempo em que corresponde a um “vale-tudo”, constitui-se em uma afirmação que não há recompensa em outra vida. Então tudo que tem que ser feito deverá ser feito agora. Pensamento imediatista que aponta para a influência do filósofo alemão Heidegger. O que fica evidente no pensamento de Sartre. Não existe um padrão místico nas coisas do mundo. Se não existe uma ação divina ou nenhum movimento para o qual a humanidade naturalmente caminhe, como acreditava Hegel. O destino da humanidade, da vida na terra é responsabilidade do homem. O pensamento existencialista laico (o que exclui Kierkegaard) aponta para a angústia do mundo de possibilidades. Inclusive a possibilidade da injustiça e da infelicidade mesmo quando imerecida. Quando contrata o melhor advogado para defender Doris, Crane busca recomeçar sua vida. Agora ele escolheria uma profissão mais socialmente prestigiada, a de agente. Acompanharia Birdy, uma pessoa capaz de lhe dar “paz de espírito”. Um amor escolhido, uma profissão escolhida. Neste momento onde Ed decide tornar-se um ator social ativo, ele se pergunta: “Por que não pode dar certo? Por que não?” Ainda seguindo a idéia de que não há um plano para o mundo, estamos de certa forma, sujeitos ao caos que é a realidade. Quando o protagonista busca um novo começo. Desejando simplesmente ser feliz, a mão da tragédia invade sua vida em uma série de acontecimentos. Sua esposa enforca-se na prisão. O que se deve ao fato de estar grávida do amante. Seu cunhado que era o barbeiro principal cai em depressão e “afoga-se” na bebida. A mulher de Big Dave, aparentemente enlouquece. Acreditando que o marido fora abduzido por seres do espaço. (Até nesse caso, os irmãos Coen fazem uso do princípio da incerteza, quando Ed lê no jornal o caso Roswell, onde supostos objetos voadores não identificados foram supostamente visualizados.) Crane agora trabalha para pagar o banco, no qual contraiu dívidas para que não lhe tomassem a barbearia, seu meio de vida. Ele está só com seus fantasmas, preso em segredos e sem alguém para desabafar. O que aponta fortemente para o existencialismo, onde o mundo interior, as reflexões sobre a vida humana ocupam papel central nesse pensamento filosófico. Uma fala ilustrativa é quando Ed reflete sobre os acontecimentos acima narrados: “Eu era um fantasma. Não via ninguém. Ninguém me via. Eu era o barbeiro”.O que conclui ao som da a Sétima Sinfonia. O jogo do diretor utilizando a gestalt do preto e branco e Beethoven ao fundo, bem como a lentidão proposital do fundo (movimento de pessoas e carros) parece conduzir o espectador ao desespero do personagem.
Um dos momentos de elucubração de Ed se dá na parte final do filme. Quando este passa a duvidar de suas convicções. Acreditara sempre que ser um barbeiro consistia em saber cortar cabelo e que nisso não havia arte alguma. Até que surge um momento epifânico, olhando o cabelo de um cliente sendo cortado, percebe que ele sempre volta a crescer. Esse cabelo é parte de nós. E mesmo sendo podado constantemente, insiste em crescer, como a alma humana. Que apesar das desilusões e abismos não cessa de resistir. Decidido a fazer uso de sua liberdade, é podado no acidente com Birdy. Logo após, é preso e condenado pelo assassinato de Tolliver, o falsário que lhe aplicara o golpe. Este foi espancado até a morte e foi encontrada, junto a seu corpo, a pasta com os documentos da suposta sociedade com Crane. Mesmo não sendo verdadeira, a história é convincente. Ed teria obrigado Doris a roubar Big Dave para conseguir os 10 mil dólares para o estelionatário. Mesmo não tendo surtido efeito, a defesa do advogado é digna de nota. Nela Riedenshneider atribui a seu cliente as características do homem moderno. Ele era uma vítima, ele não possuía o perfil de assassino ganancioso. Era só um barbeiro. Ser um barbeiro implicava em uma inexorável invisibilidade social na experiência de Ed Crane. A Modernidade e a Angústia do "Eu". As novas formas de viver da sociedade moderna, longe das certezas da tradição, contribuem para o maior sentimento de insegurança. Essa falta de sentido tende a aumentar mais ainda a angústia humana. “O indivíduo se sente privado e só num mundo em que lhe falta o apoio psicológico e o sentido de segurança oferecidos em ambientes mais tradicionais”. (GIDDENS, 2002, p. 38) A modernidade está repleta de incertezas, e o “eu” está constantemente buscando novas identidades para melhor viver na modernidade. Contudo, bem ao estilo dos irmãos Coen, o personagem não consegue erigir ao “eu político”, proposto por Giddens (2002) como alternativa a crise de identidade da modernidade. O existencialismo e a idéia de que não existe um plano para o homem na Terra abrem caminho para o comportamento anômico. Como ocorre no caso da mulher e do próprio protagonista. Ambos são condenados por crimes que não cometeram. Apesar de tal desfecho, o barbeiro não parece estar indignado com a injustiça cometida. Nos momentos finais, sente falta da esposa. Afinal, se não eram amantes a muitos anos e se nunca conversaram muito, eram ambos cúmplices em sua solidão interior. E silenciosamente se faziam entender. Referência:
Ryanne
Freire Monteiro.
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