Ensaios Tela Crítica

 

“O Filme como Objeto de Estudo das Ciências Sociais"

 

 

Odirlei Dias Pereira

 

Pela estrada enquanto eu passo
0 cinema é só ilusão
Vou chorando pelo campo
No meio do temporal

("Chorando no Campo" -Lobão)


A fronteira entre realidade ficção vem se tornando cada vez mais estreita. O cinema tem a potencialidade de transgredir os limites entre o real e o imaginário- Ele reílete lutas, vitórias, derrotas, sonhos e esperanças, desvenda fantasias, angústias, injustiças e felicidades refletidas de uma sociedade. Casa assim o real com o imaginário, estabelecendo uma relação de cumplicidade dentro e fora da tela com o espectador. Mas até que ponto o cinema é realidade ou ficção? O cinema estaria retratando a realidade tal como ela se apresenta? Ou pelo contrário, o cinema não seria nada mais que a construção de uma realidade feita pelas mãos dos cineastas, que articulam os fatos reais segundo sua visão ideológica e particular frente aos acontecimentos?

O cinema está intimamente ligado ao imaginário das pessoas: ele pode construir fatos e transformar a maneira de se ler a história. O advento do cinema criou a possibilidade de fazermos uma leitura "imaginada" da sociedade e da história, onde tudo estaria ao alcance do nosso olhar. A possibilidade de olhar o passado com os olhos do presente tornou-se possível. Na sala de projeção, o espectador se transmuta nos protagonistas do filme que assiste, toma para si o corpo e a alma de seus heróis, e com isso pode viajar no tempo e no espaço, sem correr qualquer risco. Então, o filme cinematográfico passa a ser a mais perfeita "imitação da vida", onde idealizamos a realidade e vemos nossos sentimentos mais íntimos externalizados por meio de imagens e sons.

Na ficção cinematográfica, junto com a câmera estou em toda a parte e em nenhum lugar, em todos os cantos, ao lado das personagens, mas sem preencher espaços, sem ter presença reconhecida. Em suma, o olhar do cinema é um olhar sem corpo. Por isso mesmo ubíquo, onividente. Identificado com esse olhar, eu espectador tenho o prazer do olhar que não está situado, não está ancorado, vejo muito mais e melhor. (XAVIER, 1988, p. 370).

A multiplicidade das fontes de informação, das mídias (jornais, revistas, televisão internet ete), dos filmes coloca hoje novos obstáculos à inteligibilidade dos problemas histórico-sociais posto que cada um produz diferentes elementos de conhecimento os quais raramente são colocados em relação uns com os outros. As relações existentes entre as ciências sociais e o cinema são relativamente recentes, pois datam do surgimento deste, há aproximadamente um século. Durante estes anos alguns conceitos fundamentais foram fixados acerca dessa relação, e não podem ser ignorados pelo pesquisador que toma a obra fílmica como objeto de estudo. Um dos eixos principais das teorias cinematográficas é entender o filme como "documento histórico socialmente construído" e também como um discurso sobre os "fatos do passado", ou mesmo de acontecimentos contemporâneos que presenciamos em nossas vidas.

O realismo criado pelo cinema é poderoso o suficiente para nos fazer esquecer que estamos frente a imagens criadas ideologicamente, ele nos faz acreditar que o que estamos vendo é expressão última da realidade. Há o esquecimento que estamos frente a uma "realidade" que é construída ideologicamente. Uma questão a ser considerada, durante a análise de uma obra fílmica, diz respeito à relação passado (entendido como período histórico que o filme pretende representar) e presente (momento histórico da produção da obra) contida no filme. Qualquer representação do passado existente no filme está intimamente relacionada com o período em que este foi produzido. Por exemplo, a escolha de um tema histórico e a forma como ele é representado em uma película são sempre ditadas por influências do presente.

Para tanto, basta lembrarmos da relação passado (fato histórico recriado) e presente (momento da feitura do filme) existente no filme Alexander Nevsky de Sergei Eisenstein. Não seria o retorno ao século XIII (durante um episódio histórico no qual a "grande" Rússia é atacada de surpresa pelos cruéis exércitos teutônicos — isto é, germânicos —, conseguindo, no entanto, defender-se graças à mobilização popular, rechaçando os alemães e consolidando sua força) um instrumento ideológico que visava claramente agir sobre a consciência dos indivíduos do seu tempo? Ou seriam pura e simples coincidência as semelhanças entre as conjunturas político-militares de 1938, momento de produção do filme e o século XIII representado pelo filme? A resposta nos parece bastante clara e pode ser comprovada pelos próprios fatos que se seguiram à finalização do filme: ele foi censurado até 1941, por Stalin, em consequência da assinatura de um pacto de não agressão entre Rússia e Alemanha, porém com a invasão alemã ao território russo em 1941, Stalin ordenou que o filme fosse exibido, com a intenção de inspirar a população russa a resistir a invasão.

Portanto, o filme, seja qual for, pode ser encarado como testemunho da sociedade que o produziu, como sendo seu reflexo — não direto e mecânico — das ideologias, dos costumes e das crenças, mas muitas vezes de maneira metafóricas ou mesmo alegóricas. Como não enxergar, por exemplo, tratando-se da produção cinematográfica brasileira, elementos da ideologia da esquerda brasileira nas primeiras obras do movimento cinemanovista, em início dos anos 60? Como por exemplo, o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (Br, 1964), de Glauber Rocha, ou ainda como não percebemos a subordinação do homem pobre rural ao proprietário de terras no filme Vidas Secas (BR, 1963), de Nelson Pereira dos Santos? Ou, em outro exemplo, mais contemporâneo, como não percebemos a atmosfera imperialista presente em filmes hoollywoodianos como, por exemplo, os filmes Bambo produzidos em fins da década de 80, ou ainda Pearl Harbor, de 2001.

Uma reflexão sobre a relação entre cinema e ciências sociais deve, portanto, considerar que o filme é um documento, que além de mostrar imagens reconstruídas do passado, traz, em sua forma (montagem, posicionamento das câmeras, música, ritmo, enquadramento etc) marcas indeléveis do período em que é produzido. Além do posicionamento ideológico junto à escolha dos temas presentes nas obras cinematográficas, temos a montagem que, ainda segundo o teórico e cineasta russo Sergei M. Eisenstein é a principal ferramenta do diretor. Assim, um dos traços específicos do cinema, por ser uma arte de combinação e organização das imagens e dos sons, é a montagem. Por meio dela, os planos de um filme são organizados obedecendo a uma ordem e uma duração específica. O espaço central que a montagem ganha na teorização sobre a arte cinematográfica se dá uma vez que essa organização dos planos fílmicos obedece a um certo sentido e não outro, considerando que esta organização pode ser variável.

É ainda Eisenstein quem associa ideologia e montagem. O cineasta soviético considerava que na montagem se encerram as formas ideológicas e um filme novo não poderia prescindir de uma forma nova de construção. Esta tese foi levada às últimas consequências pelo próprio cineasta que acabou inaugurando um método de montagem para tratar os conflitos de forma dialética e deixá-los explícitos em seus filmes. Outro método de se "montar" um filme consiste na desvalorização da montagem, operando o apagamento do trabalho do diretor, construindo uma "imagem realista", recurso muito explorado pelo padrão hollywoodiano de se fazer cinema.

Esta perspectiva encontra suporte nos textos do teórico francês André Bazin (1918-1958) onde o autor entende o cinema como "janela aberta para o mundo", ou seja, vemos o mundo por meio de uma janela que apesar de ser uma imagem limitada e parcial expressaria o "real". Poderíamos observar uma parte do todo, e isto determinaria o espaço do filme, o que acaba confundindo o universo fílmico com a realidade concreta. Para ele, a câmera ao fazer a filmagem de determinada cena, assume o olhar humano e, com isto, teria a potencialidade de captar o real. Portanto, a imagem fílmica seria capaz de evocar uma imagem, um espaço semelhante ao real.

Para Bazin, o "mundo real", a "realidade", é ambígua, portanto, a vocação "ontológica" do cinema consistiria na reprodução exata desse real e, portanto, o cineasta deve se esforçar ao máximo para captar essa mesma ambiguidade. Assim o cinema deve "reproduzir o mundo real em sua continuidade física e factual", onde a função essencial do filme é mostrar os eventos representativos da "realidade concreta" e não deixar que o espectador veja o trabalho do diretor no filme. O objetivo principal do filme seria criar a ilusão que estamos vendo eventos reais que se apresentam a nós como eventos do cotidiano e que, apesar de serem mostrados em "fragmentos", nos dão a impressão de continuidade e homogeneidade.

Indo à contramão da concepção que Bazin faz do cinema, Eisenstein exclui toda a consideração sobre um suposto 'real', que seria possível de ser capturado pelo filme. Para ele, o real não teria interesse algum fora do sentido que atribuímos a ele, fora da leitura que o diretor faz do real. Assim, o cinema é concebido por Eisenstein como uma ferramenta de leitura do real. Como observa Aumont (1995) "o filme não tem como tarefa reproduzir o 'real' sem intervir sobre ele, mas, ao contrário, deve refletir esse real, atribuindo a ele, ao mesmo tempo, um certo juízo ideológico" (p. 79).

Com essa abordagem que Eisenstein faz sobre o cinema, a obra fíímica aparece em conformidade com as teses políticas em evidência no momento em que um filme é produzido, ao contrário de Bazin para quem o critério da verdade pode ser obtido por meio da captação das imagens do real, uma vez que esta "verdade" está no real.

Assim, Eisenstein considera o filme não como uma representação do real, mas como discurso ideológico: esse discurso articulado por meio da montagem e teria a tarefa "influenciar", "moldar", "modelar" o espectador frente às ideias passadas pelo filme. O que preocupa Bazin é quase unicamente a reprodução fiel e "objetiva" de uma realidade que carrega todo o sentido em si mesma, enquanto Eisenstein só concebe a obra fílmica como discurso articulado, que se sustenta por uma referência figurativa do real.

Concordando com a tese de Eisenstein, de que o cinema produz ideologia, lembramos que para aumentar ainda mais a capacidade de verossimilhança com a realidade, os filmes com frequência se ambientam em determinadas épocas históricas e criam pontos de conexão com um "discurso comum" já existente sobre tal fato, assim, o filme "finge" submeter-se à realidade com o intuito de tornar sua ficção verossímil. E é por aí que o filme se transforma em veículo para a ideologia, como já citamos, a título de exemplo, a obra ShmcaÂlexander Nevski, feito em 1938 pelo próprio Eisenstein.

A indústria cinematográfica, a distribuição do filme, a forma de produção etc. estão intrinsecamente mergulhadas nos conceitos económicos, sociais, culturais, políticos e ideológicos vigentes no país e no tempo em que um filme é produzido. E isto faz com que a obra fílmica torne-se objeto de estudo para as ciências sociais. O cinema pode ser concebido como o veículo das representações que uma sociedade tem de si mesma, porém, para se extrair esse "conteúdo" do filme, é necessário que o pesquisador social tenha uma boa leitura da história sócio-cultural do momento e do país em que a película é produzida. E só por meio dessa complexa relação entre a obra e o meio social que podemos torná-la como representação de uma sociedade.

É bom salientar que se a sociedade exerce influência sobre a produção cinematográfica, a recíproca também é verdadeira. A ação exercida pelo cinema nos espectadores é um fato inquestionável. Tomar conhecimento desse mecanismo é fundamental para o trabalho analítico, visto que boa parte do conteúdo do filme, sobretudo no cinema dito comerciai, é ditada pelos gostos e pelas expectativas do público que, por sua vez, é influenciado pelos filmes, numa relação recíproca e, porque não dizermos, dialética. Cabe, então, ao pesquisador, buscar, detectar e diferenciar esses elementos. Mas essa tarefa, por vezes árdua e tortuosa, só pode ser realizada parcialmente, visto que o significado mais totalizante de uma película apenas pode estar presente nela própria. Com isso, quando o pesquisador social toma a obra fílmica como objeto central de estudo, ele se depara frente a impossibilidade de uma análise total e perfeitamente acabada, visto que sua análise só é alcançada por meio de hipóteses.

Dessa forma, entendemos que a obra cinematográfica é suscetível a abordagens muito diversas, uma vez que não existe uma única teoria sobre cinema, ao contrário, existem várias teorias que correspondem a cada uma dessas abordagens possíveis do filme.

O valor documental de cada filme está relacionado diretamente com o olhar e a perspectiva do "analista". Um filme diz tanto quanto for questionado. São infinitas as possibilidades de leitura de cada filme. Algumas películas, por exemplo, podem ser muito úteis na reconstrução dos gestos, do vestuário, do vocabulário, da arquitetura e dos costumes da sua época, sobretudo aquelas em que o enredo é contemporâneo à sua produção. Mas, para além da representação desses elementos audiovisuais, elas "espelham" as crenças, esperanças e utopias da sociedade que o produziu, incluindo se aí sua ideologia, como já observava Eisenstein em sua obra.

Para o melhor aproveitamento do caráter documental do filme, é necessário que o pesquisador, o "analista", saiba dissecar os significados "ocultos" (porém presentes: não se trata de caminhar na via das elucubrações e especulações) existentes na película. O método de investigação consiste, simplificadamente, em buscar os elementos da realidade através da ficção, e desta forma pensar e entender a sociedade que o produziu.



Bibliografia

AUMONT, J. et ai. A Estética do Filme. Tradução Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 1995.
EISENSTEIN, S. M. Montagem de Atrações. In: XAVIER, I. (Org.) A experiência do Cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal: 2003. (a)
_________________ Da literatura ao cinema: uma tragédia americana. In: XAVIER, I. (Org.) A experiência do Cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal: 2003.
__________________Método de realização de um filme operário. In: XAVIER, I. (Org.) A experiência do
Cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal: 2003. (b)
__________________Novos problemas da forma cinematográfica. In: XAVIER, I. (Org.) A experiência do
Cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal: 2003. (d)
TOLENTINO. C. Ap. F. "Sobre a Arte como atitude intelectiva". Texto apresentado para exame de qualificação junto ao IFCH/Unicamp, mimeo, 2006
XAVIER, I. Cinema: Revelação e Engano. In. O Olhar. Org. NOVAES, A. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
_________________________________ O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

 

Odirlei Dias Pereira foi mestrando em ciências sociais na UNESP-Campus de Marilia.
Texto elaborado em 30/11/2005 para disciplina de graduação “Sociologia Contemporânea”,
ministrada pelo Prof. Dr. Giovanni Alves.