“O Estomâgo ”, de Marcos Jorge
(Brasil, 2008)

 

 

 

O ser humano, como qualquer animal, tem algumas necessidades vitais, como repor suas energias e a reprodução, ou em outras palavras, comer e fazer sexo. Teoricamente, o homem conseguindo atender essas necessidades, tem o básico para começar a engendrar sua vida. Mas, o que acontece quando se acrescenta o fator "prazer" a essas atividades? E se a partir de então, criarmos uma serie de fatores políticos e sociais, que vão desde uma relação amorosa até a estrutura hierárquica dentro de uma cela de cadeia? É a ideia a ser explorada dentro do longa-metragem brasileiro "Estômago".

O filme "Estômago" tem como temática central a estrutura de poder, e sua relação com o espaço em que ocupam os indivíduos influenciados, tanto o dominador quanto o dominado. Neste caso, a estrutura de poder tem dois eixos, no caso a gastronomia e o sexo, que no decorrer da trama, vai ser incisiva para mostrar quem come quem.

A narrativa mostra a vida de Raimundo Nonato, retirante nordestino que chega a uma grande cidade a procura de uma oportunidade melhor. Ao chegar à cidade, Nonato vai à procura de suprir sua necessidade básica, a alimentação, mesmo sem dinheiro. Acaba chegando o bar de Seu Zulmiro, -um bar comum de centro de uma grande cidade, como é citado no filme, um bar onde só tem mosca e bêbado - aonde contando com a boa vontade do sujeito, acaba pedindo duas coxinhas para comer e é surpreendido quando este o cobra pelos quitutes. Este então propõe a Nonato, que limpe a cozinha para saudar a divida, e acaba ganhando um lugar para passar a noite, um quartinho nos fundos do boteco. Na manhã seguinte, seu Zulmiro vendo que o sujeito fizera o serviço bem feito, propõe a Nonato que ele trabalhe ajudando na cozinha, em troca de comida e teto, e o ensina a preparar pastel e coxinha.

Nonato então começa a fritar salgados no boteco, e não é que suas coxinhas fazem um grande sucesso? O bar então se torna um lugar muito movimentado, e o grande sucesso se deve as coxinhas de Raimundo Nonato. A partir de então, ele começa a ganhar prestigio pelos frequentadores do bar, entre eles Iria, uma prostituta que se diz apaixonada pelas coxinhas, e que então vai começar uma relação com Nonato, e Seu Giovanni, expert em gastronomia e dono de um restaurante da região (o "Bocaccio"), que surpreso com a coxinha que Nonato preparou, acaba o contratando para trabalhar em seu restaurante. O retirante aceita, vendo a boa oportunidade que surgira, pois antes trabalhava para comer, uma espécie de trabalho compulsório, e agora além de salário, vê que pode conseguir uma boa oportunidade para aprender e complementar seus conhecimentos sobre gastronomia. A relação com esses dois personagens será de grande importância para a condução da trama.

Ao chegar ao restaurante, Nonato se vê num ambiente totalmente diferente do que ele trabalhava até então: é um ambiente limpo, com um leque de opções para cozinhar, desde panelas, facas, temperos, entre outros instrumentos gastronômicos. Tendo como mestre Seu Giovanni, Nonato começa a aprender novas lições sobre a cozinha, desde conhecimentos sobre vinhos, o ponto de cozimento do macarrão, e até alguns elementos por ele desconhecido, como por exemplo, o sofisticado queijo gorgonzola, que para ele é queijo mofado cheio de bolor, e também o valor artístico da comida, tão apreciado na alta gastronomia.

Sua relação com Iria, começa com ela o admirando pelas suas coxinhas. Nonato passa de um simples funcionário de boteco para um cozinheiro de prestígio. A partir daí, Nonato e Iria começam uma relação, a principio como uma troca de favores, pois ela, que diz gostar muito de comida e não sabe cozinhar, troca seu serviço sexual pelos alimentos produzidos por Nonato. Algo que acaba juntando os dois, pois cada um sente um imenso prazer pelo que o outro pode propiciar ao outro.

Nonato começa a se apaixonar por Iria, apesar de não ser respondido à altura, - inclusive em um momento chega a ter um beijo na boca negado por ela, dizendo que aquilo não é ético – e pede ela em casamento, a qual só aceita um noivado.

Num primeiro momento, essa é a história de Raimundo Nonato, aprendiz e ajudante num restaurante e apaixonado por uma prostituta.

Mas a história de Nonato é contada, num segundo momento, a partir do presidio onde ele está recolhido. Ao chegar ao presídio, Nonato começa a imaginar outro nome para assumir. Ele se chamava Nonato antes de chegar à cadeia. Mas apenas o nome Nonato, o cozinheiro, não era muito adequado para se utilizar num presidio. Ele então teve que assumir o nome de "Nonato Canivete", nome ligado ao crime que ele cometeu.

Nonato surpreende a todos na cela, dizendo que é cozinheiro. Ali, durante o almoço, é servida uma comida de péssima qualidade. Ele então é intimado por Bujiú, o chefão da cela, para cozinhar para os companheiros. Com isso, Nonato sobe um degrau da hierarquia dentro da cela. Dentro da hierarquia, estão Guentaí, Boquenga, Seqüestro, Valtão, Magrão, Lino e o dono do xadrez, Bujiú. Bujiú é superior na escala hierárquica. Nonato então ganha um novo nome, Alecrim.

E com a sua arte de cozinhar, que Alecrim vai ganhando prestigio dentro da cadeia, deixando de ser um simples retirante, para ganhar prestigio entre os presos, e vai subindo dentro da hierarquia. Ele que dormia no chão, vai para o beliche de baixo, depois para o beliche do meio, tudo devido ao prazer que sua comida traz para aqueles que a comem.

 



Sua habilidade com a alimentação é tão grande, que Bujiú, ao ficar sabendo da transferência de Etcetera para a cadeia, pede que Alecrim faça um banquete para agradar o bandido, que segundo ele, é um cara de muito prestigio e poder. E dentro desse banquete, o futuro de Alecrim pode ser decidido.

Basicamente, a historia de Raimundo Nonato pode ser resumida a essa série de acontecimentos, porem, vão existir fatos marcantes na trama, que serão alvo da analise por aqui proposta.

Quando Nonato vai trabalhar com Zulmiro, este aceita uma condição de trabalho miserável, vende sua mão de obra em troca de comida, sem obter lucro nem liberdade nenhuma. Uma cena se torna marcante, quando, logo na passagem da primeira cena para a segunda, Seu Zulmiro fecha as portas de ferro do Bar, causando um grande barulho e em seguida, na cena seguinte, quando o portão da cadeia é aberto para Nonato entrar, o barulho é muito semelhante, o que faz uma analogia ao estado de aprisionamento de Nonato, num primeiro momento preso a sua condição miserável tendo de aceitar qualquer trabalho para se manter vivo e depois de ser impedido de exercer sua liberdade jurídica social.

Outro fator é o reconhecimento social de Nonato devido a qualidade da comida que prepara - isso ocorre tanto na rua quanto na cadeia. Ele deixa de ser um simples funcionário do bar para se tornar ajudante de um restaurante de prestigio, devido ao fato de saber preparar com um grande talento um prato relativamente simples, a coxinha. O mesmo ocorre na cadeia, quando ele deixa de ser um mero presidiário nordestino para de tornar cozinheiro de prestigio na cadeia.

O sexo é tido como uma necessidade fisiológica aliada ao prazer, como a alimentação. É nesta ideia que o papel de Iria ganha importância, pois o sexo é explorado como uma forma de troca entre os dois profissionais, tanto o profissional do sexo quanto o profissional da cozinha. Iria vê em Nonato, uma forma de atender suas necessidades com grande prazer em troca de algo que do prazer ao seu “companheiro”, Nonato vice-e-versa, e esse prazer, vai ganhando uma importância no que tange a aproximação dos dois, tendo em vista que de clientes eles começam uma relação mais próxima, chegando a Nonato propor o casamento dos dois. Uma cena marca muito essa relação do prazer da gastronomia com o sexo. Na cena, Nonato penetra Iria, e ela esta comendo um prato de macarrão. São as duas formas de prazer representadas numa cena, marcada pelo intenso prazer dos dois.

A respeito da dominação pelo poder, temos, em três momentos, relações hierárquicas. Num primeiro momento, temos a relação de Zulmiro com Nonato, que numa analise marxista, temos a submissão do operário ao dono do meio de produção, porem, se pensarmos dentro dessa lógica, simbolizaria um desenvolvimento produtivo pouco evoluído, pois se assemelha a submissão do sistema feudal, onde o camponês usava a terra do senhor feudal para produzir para o dono da terra e uma mínima parte que sobrava era sua subsistência, não havia salário e o servo estava preso a terra. O mesmo acontece com Nonato nesse momento.

Num segundo momento, Nonato é submisso a Seu Giovanni no restaurante, mas neste caso vemos uma relação onde podemos fazer uma analogia às corporações de oficio, onde existia um mestre, que detinha os instrumentos e ensinava seus empregados o trabalho, o preparando para um dia exercer este trabalho de maneira plena. Neste caso, a relação é fortalecida pelo fato de Nonato já ganhar um salário pelo seu trabalho.

E num terceiro e ultimo momento, a submissão de Nonato – já Alecrim – dentro da cadeia, onde a analise da hierarquia de poder se assemelha ao sistema de poder proposto por Maquiavel em O Príncipe, onde o príncipe domina seu território a partir da força (nesse caso a fortuna). Além do mais, Bujiú dentro da cela, é visto como um ser de poderes absolutos, onde nenhum preso se rebela contra ele, tendo em vista que as punições serão severas. Mas Nonato se inclui e ascende nessa hierarquia, através do prestigio que tem com os presos devido a sua gastronomia, tanto que ele sai do grau mais baixo dentro da hierarquia, e devido ao respeito dos presos, chega ao grau mais avançado da hierarquia abaixo de Bujiú, que seria o beliche de baixo, e isso, ainda na lógica de Maquiavel, se deve a Virtú.

 



Há um fato marcante na vida de Nonato, tanto que será o motivo que ele ira parar na cadeia. Uma semana antes do noivado com Iria, ele acaba se deparando com Seu Giovanni servindo um jantar para ela, em um dia que o restaurante deveria estar fechado. Nonato se sente enciumado, mas o ódio só toma conta dele quando ela depois de comer, ela beija apaixonadamente a boca de Giovanni, - o que ela até então tinha negado a Nonato – e a leva para o quarto dos fundos para transar. Nonato então, num ataque de fúria, invade a adega do restaurante, e abre o vinho Sassicaia, que segundo seu mestre, é um dos melhores vinhos do mundo, toma em poucos goles a garrafa toda, vai até o quarto e acaba matando os dois a facadas, e depois, corta um bife da nádega de Iria, e prepara um prato. Esse ato tem a influencia de Seu Giovanni, que diz a Nonato, que o filé mignon, que é o melhor do boi, corresponde a bunda na mulher, ou seja, o melhor. O instinto assassino de Nonato neste caso parece motivado por um sentimento doentio de ódio, e não algo premeditado, calculado.

Diferente de Seu Giovanni, Bujiú foi morto por Nonato de modo totalmente diferente. Utilizou outro método: envenenamento e não facadas. As causas que motivaram os assasinato também diferem: o primeiro (Seu Giovanni e Iria) devido a algo que mexeu profundamente com seu sentimento; e o segundo, apesar do rancor por muitas coisas que Bujiú fez a Alecrim, a morte dele teve um caráter político, porque a intenção era assumir o poder dentro da cela.

O final se da por Nonato já no beliche de cima, refletindo sobre o patamar político que alcançou, ele pensa na vulnerabilidade do poder, e de como passou de dominado até dominador. A morte de Bijiú impõe um novo tipo de dominação dentro da cela, antes era a força, e agora, bem ou mal, existe um apoio da massa ao chefe, mesmo que durante o banquete a Etcetera, Alecrim tenha mostrado aos companheiros que estavam ajudando-o a cozinhar, um pouco de sua força, em nenhum momento mais, usou este método para se impor e ser reconhecido. O fato de ninguém saber que foi ele quem matou Bujiú manter um caráter de um poder brando, sem demonstrar qualquer perigo aparente aos companheiros de cela.

Então, vemos que socialmente construído, existe uma hierarquia que tange as relações tanto pessoais quanto sociais. E como toda hierarquia, tem de existir tanto um dominador quanto um dominado. Essa dominação se da por diversas maneiras, como a força física, o poder econômico, e o principal na trama, dominação pelo talento reconhecido. Talento esse, que faz com que uma necessidade fisiológica seja atendida de forma prazerosa, a ponto desse prazer se tornar algo vital em algumas situações. O filme retrata como quando as necessidades são atendidas, isso da certo poder a aquela que proporciona essa sensação.

O sistema digestivo acaba no reto e na bunda, e o seu começo é a boca. O estomago é o meio. Analogicamente, a comida dá-nos prazer. Engolindo-a e digerindo-a, devolvemos o seu resto ao mundo, ou seja, o poder, aqui representado em forma de dejeto humano, ou seja, merda.


Rafael Kokol Pinto é graduando em ciências sociais na UNESP-Campus de Marília