Poder,
Dominação e Legitimidade
A representação do poder está para a sociedade assim como o peso das instituições sobre a vida de seus convivas. Na descrição de Raymond Aron, em seu brilhante ensaio no qual pretende fazer, em cerca de 80 páginas, uma síntese do pensamento de Max Weber, poder significa “a probabilidade de um ator impor sua vontade a outro, mesmo contra a resistência deste” (ARON, 2002). Contrariamente, a dominação “é a situação em que há um senhor; pode ser definida pela probabilidade que tem o senhor de contar com a obediência dos que, em teoria, devem obedecê-lo” (ARON, 2002). Poder e dominação, nas palavras conclusivas de Raymond Aron: A diferença entre poder e dominação está em que, no primeiro caso, o comando não é necessariamente legítimo, nem a obediência forçosamente um dever; no segundo, a obediência se fundamenta no reconhecimento, por aqueles que obedecem, das ordens que lhes são dadas. (ARON, 2002) Duas formas diferentes de reagir a situações semelhantes, em que a própria definição de poder, entendido na chave weberiana de compreensão sociológica, isto é, compreender a sociologia através do sentido das ações de seus indivíduos e sua própria concepção subjetiva sobre elas, é a que mais legitima o caráter humano de sua diversidade. Não é, portanto, espantoso ter escolhido como tema deste artigo uma análise sobre a constituição tradicional e despótica da representação das máfias italianas tão bem narradas no livro do escritor americano Mario Puzo e filmada magnificamente por seu conterrâneo famoso Francis Ford Coppola. Juntos, Puzo e Coppola compuseram 10 horas de uma trilogia intitulada The Godfather (O Poderoso Chefão no Brasil, O Padrinho em Portugal), no intento de reproduzir a relação inter e extrafamiliar das máfias italianas que assolaram os Estados Unidos nas décadas de 40 e 50 e até alguns anos após esse período. Uma lição de cinema, montagem, fotografia e, sobretudo, atuação.
Dentro de cada sociedade surgem conflitos entre grupos, partidos e indivíduos. O universo de valores a que cada um de nós acaba aderindo é uma criação ao mesmo tempo individual e coletiva. Resulta da resposta da nossa consciência a um meio, ou a uma situação. Portanto, não tem cabimento transfigurar o sistema social existente e atribuir a ele um valor superior ao da nossa própria escolha. Este último é, talvez, criador do futuro, enquanto o sistema que recebemos representa a herança do passado. (ARON, 2002) Perfeitamente integrado ao sistema, anos após sua chegada aos Estados Unidos, Vito Corleone tem em vista já uma família formada e seu império econômico e moral constituído, em parte pelo poder que exerce sobre seus associados e subordinados (os primeiros, jornalistas, políticos, policiais; os segundos, capangas, amigos da família e amigos de favores), em parte sobre o próprio sistema familiar. É então aí que, amparado ora no domínio de técnicas e experiências reconhecidas pelos poderosos e por seus associados, ora reconhecido como a tradição viva da família que é sustentada pelo dinheiro juntado pelos Corleone e por uma fidelidade mais tradicional que exatamente carismática, que na figura de Vito Corleone misturam-se, dentro da tipologia da dominação, a dominação racional (os subordinados e associados) e a dominação tradicional (os filhos, netos, esposas). Não se considera, pois, que o Don goze de dominação carismática porque ninguém o pôs na posição que ocupa: ninguém o vangloria por seus feitos, nem todos gostam do que ele faz e também nem todos são autorizados a questionar o motivo de seus feitos. A obrigação de permanecer na família é tradicionalmente uma obediência, uma ação racional em relação a valores e ocasionalmente a fins. Não lhes resta outra opção, simplesmente. No sentido a que o próprio Max Weber alude em seu Economia e Sociedade: Obediência significa, para nós, que a ação de quem obedece ocorre substancialmente como se este tivesse feito do conteúdo da ordem e em nome dela a máxima de sua conduta e isso unicamente em virtude da relação formal de obediência, sem tomar em consideração a opinião própria sobre o valor ou desvalor da ordem como tal (WEBER, 2004).
Desse modo, a relação do chefe da máfia com seus familiares, e a legitimidade que a conferem os seus, repousa sobre laços familiares tradicionalmente estabelecidos e mantidos sob a égide dos laços de parentesco que determinam a continuação da família e de sua educação rígida. Em suma, “Denominados uma dominação tradicional quando sua legitimidade repousa na crença na santidade de ordens e poderes senhoriais tradicionais. (...). A ele se obedece em virtude da dignidade pessoal que lhe atribui a tradição” (WEBER, 2004). Fazendo dessa ordem patriarcal os parentes seus súditos, eles diferenciam-se dos subordinados pela não obrigatoriedade em se submeter a tarefas. Os parentes constituem causa e motivo em si. Nesse caso, Vito é somente um “senhor pessoal”, e não um “superior”. Tais ordens do Padrinho não possuem o caráter oficial das repassadas à camada burocrática dos servidores e subordinados, elas se amparam no conteúdo próprio sentimental e na crença no sentido e alcance das ordens, isto é, por mais encrencado que o Padrinho esteja, os familiares, por uma ligação sentimental, estarão com ele. A ação de Vito como senhor pessoal, nos dizeres de Weber, é a de uma “ação do senhor materialmente vinculada à tradição” quando age conforme os limites de sua própria condição de Padrinho zeloso dos princípios éticos e morais da família. Isto é, não há o acordo oficial e formal da dominação legal. Nas palavras de Max Weber: A natureza efetiva do exercício de dominação está determinada por aquilo que habitualmente o senhor (e seu quadro administrativo) podem permitir-se fazer diante da obediência tradicional dos súditos, sem provocar sua resistência. Essa resistência, quando surge, dirige-se contra a pessoa do senhor (ou servidor) que desrespeitou os limites tradicionais do poder e não contra o sistema como tal (“revolução tradicionalista”). (WEBER, 2004) Ainda em referência à dominação tradicional e influência do chefe sobre a família, vale ainda se referir à ordem como patriarcal, mas não gerontocrática, uma vez que, na própria sucessão do Padrinho Vito Corleone, o escolhido, Michael Corleone (Al Pacino, em atuação fantástica), era o filho mais novo e até então desinteressado pela ‘cosa nostra’ dos Corleone, a despeito dos outros irmãos, sedentos por sentar-se no trono maior da família. Max Weber faz referência às relações entre patriarcalismo e gerontocracia e sua legitimidade sobre a tradição dos súditos no seguinte trecho: O decisivo é que o poder, tanto dos gerontocratas quanto dos patriarcas, no tipo puro, se orienta pela idéia dos dominados (“associados”) de que essa dominação, apesar de constituir um direito pessoal e tradicional do senhor, exerce-se materialmente como direito preeminente dos associados e, por isso, no interesse destes, não havendo, portanto, apropriação livre desse direito por parte do senhor. (WEBER, 2004) Considerando ainda que a dominação tradicional não isenta subordinados e capangas do próprio Vito ou Michael Corleone de uma adesão fanática a seu chefe, tanto a ponto de os laços formais se quebrarem em virtude de uma relação mais pessoal e direta (o ofício do ‘conselheiro’, ou ‘consiglieri’, que tem uma relação mais próxima com a família e o próprio chefe, pode ser essa exceção entre os subordinados), o sociólogo faz menção a um quadro administrativo semelhante à da guarda pessoal do Padrinho: “Ao surgir um quadro administrativo (e militar) puramente pessoal do senhor, toda dominação tradicional tende ao patrimonialismo e, com grau extremo de poder senhorial, ao sultanismo.” (WEBER, 2004). Entretanto, as relações formais e legais são mais do que insistidas, sobretudo na orientação de Vito Corleone ao entregar seu lugar ao filho Michael. A relação do Padrinho com as outras famílias e seus subordinados e associados é, enfim, de um poder moral, financeiro e institucional muito forte, organizado segundo códigos de conduta, normas e leis formais rígidas e determinadas para ser baseado em dominação tradicional ou carismática. Somente uma burocratização que se estende ao consiglieri (conselheiro do Padrinho), isolando toda a família do processo, que os subordinados garantem uma coesão necessária ao denso trabalho de encobrir fatos e comprar testemunhas. A legitimidade do Padrinho, nesta acepção, baseia-se na experiência acumulada e técnica adquirida com o passar dos anos. Há uma dominação racional, assim, por parte do Padrinho com seus subordinados e deles com os associados (jornais, políticos, juízes), uma vez que, para cada setor, há uma relação diferente, uma racionalização das capacidades e deveres distintos, e que pode ser observada nessa definição sobre a administração burocrática: Administração burocrática significa: dominação em virtude de conhecimento; este é seu caráter fundamental especificamente racional. Além da posição de formidável poder devida ao conhecimento profissional, a burocracia (ou o senhor que dela se serve) tem a tendência de fortalecê-la ainda mais pelo saber prático de serviço: o conhecimento de fatos adquirido na execução das tarefas ou obtido via “documentação”. (WEBER, 2004)
Embora altamente burocratizada a relação entre O Padrinho e seus associados, as relações do senhor da máfia com os subordinados (capangas, amigos de favores, ajudantes) recai em uma interface entre dominação legal e tradicional, haja vista que tanto se aproximam do conceito de dominação tradicional no que ele pressupõe de mais sagrado e enraizado na alma dos sujeitos, como também há acordos formais e uma distinção de reconhecimento oficial do chefe da máfia mais do que tradicional. Isto é, o Don nomeia, mas os subordinados, por reconhecimento de competência e do conhecimento na técnica do crime e cooptação, optam por servir a Don Corleone em vez de Don Tomazzino, Don Tattaglia ou Don Buzzini. Certo é que Don Corleone exige de seus subordinados uma postura e competência burocrática que não se vê em relação a seus familiares (na verdade, somente alguns filhos têm autorização para envolver-se na cosa nostra, dos outros se exige distanciamento), e que Weber descreve em poucas linhas o caráter desses funcionários: “são pessoas livres; obedecem somente às obrigações objetivas de seu cargo; são nomeados e não eleitos, em uma hierarquia rigorosa de cargos; têm competências funcionais fixas.” (WEBER, 2004). Sobre este quadro administrativo e burocrático dos subordinados, é ainda oportuno uma definição mais abrangente do próprio caráter da dominação legal, em diferenciação ao conceito de dominação tradicional já tratado no presente texto: O tipo mais puro de dominação legal é aquele que se exerce por meio de um quadro administrativo burocrático. Somente o dirigente da associação possui sua posição de senhor, em virtude de apropriação ou de eleição ou de designação da sucessão. Mas suas competências senhoriais são também competências legais. O conjunto do quadro administrativo se compõe, no tipo mais puro, de funcionários individuais. (WEBER, 2004) Mario Puzo e Francis Ford Coppola conseguiram com O Poderoso Chefão construir uma rica hierarquia de poderes, dominações e legalidades, imersas no livro e no filme no formato da relação das máfias com o dinheiro, das máfias entre elas, das máfias com seus associados e dos subordinados e familiares com a composição dessas ordens criminosas. Logo, a pluralidade de temas que procurei catalisar para fazer deste artigo o mais proveitoso possível se restringiu à composição interna e mantenedora dos Corleone, através da dominação que a figura indispensável do Padrinho, o Don, o Poderoso Chefão têm sobre os parentes, subordinados e associados (o que mantêm a estabilidade interna). A síntese do poder e da dominação já se encontra presente no próprio título do livro e do filme. O sentido que a narrativa fluente do roteiro dá a quem o percebe é de continuidade dessas relações ora frias, ora quentes, entre dominadores e dominados, poderosos e poder instituído. Subentende-se não um fim, mas uma continuação que subsiste nas relações humanas, nas ações sociais dos sujeitos que perenizam instituições e conceitos, sacralizam costumes, educam seus filhos para um mundo por eles criado ou a tudo isto se opõe. Indispensável é o conceito de Georg Simmel acerca das chamadas sociações e seu caráter perpetuador das relações humanas e dos contributos por ela gerados. Segundo este autor, o caráter fundador da unidade social é o conflito entre opositores, as relações sociais que geram conflitos, debates e, apesar de separar os indivíduos no tempo e espaço, mantém a coesão social e perpetuam os feitos destas mesmas relações através de tudo que foi produzido e debatido com elas: Estado, igreja, famílias, instituições. E não é difícil, no filme em questão, perceber que há uma oposição de interesses entre o Padrinho e os que resistem à ordem estabelecida, sem voz ou não dentro da família. Simmel, em consonância com o raciocínio sobre as dominações de Max Weber, assim se manifesta sobre a unidade social que efetiva tais dominações através do tempo: O que mais comumente coloca o problema da permanência própria dos grupos sociais é o fato de que eles se mantêm idênticos a si próprios, ao passo que seus membros ou se alteram ou desaparecem. Dizemos que é o mesmo Estado, o mesmo exército, a mesma associação, que existe hoje e que já existia há dezenas e, talvez, centenas de anos atrás; entretanto, entre os membros atuais do grupo, não há, entre eles, um que seja o mesmo de outros tempos. (...). A união espiritual dos homens triunfa sobre sua separação no espaço. (SIMMEL, 1983) Algo, entretanto, percebe-se do futuro a que cada Don se destina, depois de o substituto já escolhido e a família entregue em mãos seguras: o ostracismo, a velhice, o relegado posto de conselheiro distante em uma fazenda no longínquo Estado da Sicília. Procurados por outros Padrinhos ainda em atividade, chefes de famílias com dúvidas sobre como proceder em uma atitude deveras arriscada para conquistar o sucesso planejado (os chefões viajam milhas de distância em aviões particulares somente para se consultar com um desses), esses Dons prostrados, já quase falecidos (a maioria em cadeira de rodas), entregam-se às lembranças de sua atividade como Poderoso Chefão e preocupam-se em passar essa habilidade técnica e destreza moral para os que chegam à sua presença. A consulta assemelha-se a uma relação de pai para filho, do velho para o novo, do experiente para o inexperiente, da dominação passada entre pai, padrinho e apadrinhado geração a geração. Talvez essa mesma a grande razão de serem chamados Padrinhos. Referências bibliográficas: ARON,
Raymond. As etapas do pensamento sociológico. 6 ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
João
Matias de Oliveira Neto, estudante graduando em Ciências
Sociais
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