“Roger e Eu”, de Michael Moore
(EUA, 1999)

 

 

 

O primeiro documentário escrito e dirigido pelo polêmico Michael Moore, lançado em 1989, "Roger e eu" – Roger & me – já apresenta fortes e interessantes características sarcásticas, denunciando e criticando alguns aspectos da realidade da sociedade em que vivemos. Buscaremos aprofundar tal realidade concreta, ao caminhar para além das reflexões e debates proporcionados por algumas passagens do filme Pode-se afirmar que a escolha da trama passa pela história de vida do diretor, já que o mesmo viveu durante muitos anos na cidade de Flint, em Michigan – por sinal, cidade extremamente agradecida à empresa General Motors – onde sua família trabalhara. Diante da decisão da empresa e consequentemente do anúncio do fechamento de onze indústrias, a cidade sofreria a redução de 30.000 empregos. Michael Moore apresenta, portanto, sua saga para encontrar e dialogar com Roger Smith, presidente da General Motors (GM), saga esta em que os personagens fornecem seus nomes ao título do documentário e na qual são apresentadas as drásticas conseqüências no cotidiano de Flint.

A dinâmica das relações sociais no capitalismo

Em uma das frustradas tentativas realizadas para encontrar o presidente da empresa – Roger Smith – Michael Moore se dirige a um clube onde o acesso ao segundo andar seria uma área restrita O ambiente se configura enquanto uma propriedade particular, desta forma, sua equipe deveria retirar-se do local. Esta passagem nos abre a possibilidade de um debate acerca da propriedade privada.

A materialização das relações vigentes na sociedade capitalista passa pela propriedade privada dos meios de produção e pela expropriação da força de trabalho alheia, dividindo, dessa maneira, duas classes fundamentais com interesses antagônicos. De um lado, a burguesia, dona dos meios de produção, que busca a obtenção do lucro ao explorar o proletariado, situado no outro extremo. Podemos sintetizar tal caracterização a partir da contribuição de Karl Marx & Friedrich Engels (1848), ao explicitarem que a transformação da natureza em produtos para o necessário consumo da humanidade – sejam eles comida, vestuário ou automóveis como no caso da GM – é realizada pelos trabalhadores, que recebem um salário de seus patrões. Entretanto, o salário pago aos que efetivamente produzem não se refere à totalidade de sua jornada de trabalho. Tal quadro faz com que haja um excedente da produção dessas mercadorias, que são alijadas do verdadeiro produtor e expropriadas pelos burgueses, configurando a extração de mais-valia e a materialização de seu objetivo inerente à lógica capitalista.

 



É possível notarmos, portanto, que a lógica desse modelo possibilita a concentração de riqueza nas mãos de um pequeno grupo, enquanto as desigualdades sociais se alastram e prejudicam a maior parte da sociedade. São apresentadas no filme as “reações” dos trabalhadores demitidos. Uma dessas se refere a um amigo do cineasta, onde este pratica fundamentos do basquetebol na quadra de um hospício – local aonde o ex-funcionário da GM se destina. A situação de Flint – que durante diversos anos auxiliou com sua força de trabalho local o crescimento da GM – a cada dia que passa, fica ainda mais calamitosa, com restrição da coleta de lixo, cortes no orçamento, emigração da população e imigração de ratos. O porta-voz da GM, Tom Kay, ao ser questionado por Moore, argumenta que uma corporação trabalha visando ao lucro; faz o que for preciso para obtê-lo, pois sua natureza não é honrar a cidade natal.

Ao longo da trama, identificamos como o antagonismo entre as classes, revestido pela contradição entre a produção social e a apropriação capitalista, se consubstancia, fazendo com que os ricos fiquem mais ricos e os pobres ainda mais pobres (ENGELS, 2004). No momento em que Roger Smith recebe um aumento de 2 milhões em seu salário, metade da população de Flint vive com seguro social. Parte dos abastados da cidade realiza um almoço de luxo, fornecendo conselhos simplistas. Dizem que é preciso olhar toda situação pelo aspecto positivo, ao passo que contratam um pequeno grupo da população pauperizada para atuar como estátuas humanas no luxuoso evento, farto de comidas e bebidas caras. Enquanto a GM realiza seu Programa de Natal, 1800 trabalhadores vão para casa, demitidos, carregando as flores que receberam – seria uma simbologia do ritual de levar flores aos defuntos no momento de seu enterro? Durante o discurso do presidente em sua mensagem anual, explicitando que a experiência nos exige tudo, que a época de Natal impulsiona o calor do companheirismo, com peru na mesa, valores como generosidade e perdão, defendendo que se abram os corações livremente, famílias são despejadas de suas casas na véspera da data natalina.

Certamente a prática é o critério da verdade e a citação da dama de ferro Margareth Thatcher de que o país é livre, a nosso ver, apenas referenda os fundamentos liberais conservados e adaptados ao neoliberalismo. Este último pode ser analisado enquanto um paradigma econômico e político inicialmente associado a Reagan e Thatcher. Principal tendência da política e da economia globais nas duas últimas décadas, representa os interesses imediatos de investidores demasiadamente ricos e de um minúsculo número de empresas, consistindo em uma diversidade de políticas e processos “que permitem a um número relativamente pequeno de interesses particulares controlar a maior parte da vida social com o objetivo de maximizar seus benefícios individuais” (CHOMSKY, 2004, p. 7). Seus objetivos relacionam-se às táticas para superar e adiar a crise do capitalismo, crise esta durante a qual eclode “em explosões violentas a contradição entre a produção social e a apropriação capitalista” (ENGELS, 2004, p. 72).

É mais-valia pra lá; é desemprego e violência pra cá

A classe dominante se apóia no aperfeiçoamento das máquinas e na existência de um exército industrial de reserva de trabalhadores para garantir maiores taxas de lucro, realizando demissões, retirando direitos historicamente conquistados etc. Para Friedrich Engels (2004), ao passo que a maquinaria é melhorada, uma massa de trabalho humano se torna supérflua, trazendo

consigo a substituição de milhões de operários manuais por um número reduzido de operários mecânicos, seu aperfeiçoamento determina (...) a criação de uma massa de operários disponíveis que ultrapassa a necessidade média de ocupação do capital, (...) um exército de trabalhadores disponíveis para as épocas em que a indústria trabalha a pleno vapor e que, nas crises que sobrevêm necessariamente depois desses períodos, é lançado às ruas, constituindo (...) um regulador para manter os salários no nível baixo correspondente às necessidades do capitalista. (ENGELS, 2004, p. 69-70).

 


Aumentam-se as taxas de lucro e, concomitantemente, aumentam-se as taxas de desemprego, este impulsionando um quadro de crescimento da violência, a qual surge e se fortalece a partir da realidade estrutural do sistema e não de maneira natural.
Um dos poucos moradores de Flint com seu emprego seguro, o delegado da polícia é o responsável pelos despejos de moradores com aluguéis atrasados. Este comenta que enxerga a fábrica como uma prisão e que não possui uma relação pessoal com seus melhores amigos no momento em que exercia sua função ao despejá-los de suas casas. Nota-se o papel exercido pela polícia de garantir o direito de propriedade, ou seja, de garantir a ordem e a vigência do Estado capitalista, independente dos rumos e dos destinos que tomarão os desalojados, sem perspectiva de empregos para garantir suas moradias. Com o fechamento de mais empregos, a cidade adquire um clima de barbárie diante de uma violência exacerbada. A identificação do grande problema oriundo do recorde de homicídios – pasmem! – é a ausência de celas nas penitenciárias. Os gestores da cidade constroem uma cadeia maior, com direito à festa de inauguração, na qual a classe alta pagava ingressos para visitar o interior do prédio, se divertir nas celas e usar materiais, como uniforme e cacetetes da polícia, antes que o espaço fosse destinado aos perturbadores da ordem, dignos de prisão. Diante do quadro de desemprego estrutural e do aumento de mortes, a GM e o sindicato possuem a brilhante ideia de treinar os empregados para serem carcereiros dos ex-colegas, tentando suavizar a forma de coerção e punição.

Pão e circo

Atualmente, vivenciamos no Brasil, a título de ilustração, os tempos de mega-eventos esportivos, junto à criminalização da pobreza e aos despejos de moradores para adequar o espaço urbano às necessidades do capital. Vivemos a disseminação de valores dominantes e a bestialização dos telespectadores por meio da ação midiática em seus telejornais, novelas e reality shows. E ainda pudemos assistir a um falso regionalismo, quando durante o episódio da divisão dos royalties do petróleo, o governador do Rio de Janeiro foi às lágrimas e convocou a população para atos – enquanto a maior parte do bolo ficava nas mãos de pequenos grupos.

Podemos comparar situações deveras semelhantes ocorridas na cidade de Flint, há mais de vinte anos e expostas no documentário. Bob Eubanks vai até a cidade para apresentar um dos programas do Jogo dos Recém-casados, lançando mão de piadas e brincadeiras altamente machistas e opressoras para a população se entreter. Com diversas lojas fechadas e cidadãos desempregados, é promovido o Grande desfile com a presença da Miss Michigan 1988. A Prefeitura de Flint, agente político da classe dominante, paga um cachê de 20 mil dólares para o Reverendo Robert Schüller discursar frases e expressões de efeito como “Yes, We Can” na presença de 20 mil pessoas na arena; evento este articulado com a General Motors, pois quem apresentasse o crachá da empresa pagava meia-entrada. O famoso ator responsável pelas propagandas televisivas dos produtos da GM também visita a cidade, e, ao ser interrogado por Michael Moore acerca de quem seria a culpa pela situação de Flint, afirma que não há culpados, pois na sociedade livre, capitalista e democrática, as coisas mudam, sendo que aqueles trabalhadores sem futuro na fábrica, agora possuem o próprio negócio. São variadas as iniciativas de entretenimento para a população, impossibilitando a mesma de perceber a lógica cruel e desigual que se ergue a partir das raízes estruturais do capitalismo.

Quando a revista Money publica uma matéria considerando Flint o pior lugar para se morar, uma comoção pública acontece e é promovida uma queima de diversos exemplares das revistas. Ou seja, direciona-se a ira e a revolta da população para a matéria, simplificando e escamoteando as causas que fizeram com que a cidade fosse paulatinamente degradada.

Estado burguês e sindicatos pelegos

Com papel histórico e significação própria, órgão de dominação de classe, criando uma ordem para legalizar e consolidar a submissão de uma classe por outra, “o Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados” e reciprocamente sua existência “prova que as contradições de classes são irreconciliáveis” (LENIN, 2005, p. 28). A partir dessa conceituação, é possível depreender a ação dos governantes intrinsecamente relacionadas aos interesses da burguesia, classe dominante no Estado burguês.

Uma sequência de obras faraônicas é realizada pelas autoridades locais em Flint, gastando boa parte de seus recursos para serem aplicados nessas ações e certamente favorecer alguns grupos empresariais responsáveis pelos ramos da construção e afins, demonstrando quais são as prioridades dos governantes. Ao invés de utilizar os recursos para garantir condições dignas de vida para a população, como moradia, saúde, educação, emprego etc., na capital do desemprego, injetam-se 13 milhões de dólares para erguer um hotel que estimularia a economia turística, sendo também construída uma parada de ônibus denominada Water Street Pavillion. Com aproximadamente 100 milhões de dólares investidos, ocorreu a construção do Parque Temático AUTOWORLD, no qual uma das atrações, chamada “Eu e meu amigo”, era – proposital e contraditoriamente? – um trabalhador ao lado de um robô. Seis meses após as iniciativas, o hotel faliu e foram fechados as lojas e o parque.

Para tornar a situação ainda mais complicada para a classe trabalhadora, o presidente do sindicato é amigo da gerência da General Motors, como relata um dos trabalhadores da fábrica. Isso demonstra já as práticas de cooptação das lideranças com o objetivo de desorganizar a classe para os enfrentamentos e frear suas lutas para garantia de seus interesses como aumento de salários, melhorias das condições de trabalho ou até mesmo a resistência para que não ocorressem as demissões. A título de comparação, temos acompanhado no Brasil recentemente situação semelhante após a ascensão de Lula/PT ao poder, período em que antigos instrumentos de luta dos trabalhadores e da juventude como a Central Única dos Trabalhadores e a União Nacional dos Estudantes, respectivamente, que se transformaram em correias de transmissão das políticas governamentais no seio de suas bases.

Só a luta muda a vida

Com diversas questões instigantes para serem problematizadas, Roger e eu é um documentário que ilustra a perversidade inerente à lógica de incessante busca pelo lucro presente no capitalismo. Em diversos momentos, o irreverente e persistente Michael Moore se aproxima do presidente da GM, Roger Smith, mas não consegue questioná-lo diretamente a ponto de obter respostas acerca da situação de Flint por meio de suas palavras.

Todavia, o mérito do cineasta consiste em possibilitar que seja articulada uma diversidade de debates relacionados ao sistema capitalista. Podemos utilizar o documentário para refletirmos acerca da e questionarmos a ordem vigente, bem como para apontarmos caminhos necessários de organização da classe trabalhadora, de maneira independente e oposta à burguesia, objetivando a ruptura com o capitalismo e o estabelecimento de uma sociedade onde todos possuam os mesmos direitos e os mesmos deveres, uma sociedade comunista que havemos de alcançar

quando houver desaparecido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, portanto, o antagonismo entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho se converter não só em meio de vida, mas na primeira condição da existência; quando os indivíduos, ao se desenvolverem em todos os seus aspectos, desenvolverem também as forças produtivas e fluírem com todo o seu caudal os mananciais da riqueza coletiva, só então será definitivamente ultrapassado o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: “De cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo suas necessidades” (MARX, 1984, P. 13).

REFERÊNCIAS

CHOMSKY, Noam. O lucro ou as pessoas? Neoliberalismo e ordem global. 4 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. São Paulo: Instituto José Luiz e Rosa Sundermann, 2004.
LENIN, Vladimir Ilitch. O Estado e a Revolução. São Paulo: Instituto José Luiz e Rosa Sundermann, 2005.
MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. Rio de Janeiro: Ciência e Paz, 1984.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 1848. Disponível em http://www.marxists.org Acesso em 01-dez-2007.

 

*Texto escrito a partir da palestra realizada no dia 22 de abril de 2010 pelo autor
no Grupo de Trabalho Temático sobre o filme, durante o
X Encontro Regional de Estudantes de Educação Física da Regional II (RJ, ES e MG),
ocorrido na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, na cidade de Seropédica.

 

Gabriel Rodrigues Daumas Marques
Professor de Educação Física das redes municipais do Rio de Janeiro e de Macaé
Mestrando em Educação (PPGE-UFRJ)