“O
Invasor”, de Beto Brandt
A
“classe-média” “à beira de um ataque
de nervos
“O
Invasor” (2001), de Beto Brant, com roteiro de Marçal
Aquino, Beto Brant e Renato Ciasca ( baseado em novela homônima
de Marçal Aquino), focaliza o mundo das empresas neste momento
de “financeirização do capital” e algumas
de suas conseqüências sociais, no momento em que as relações
humanas são levadas ao limite da contabilidade. Coletivos organizados
para derrubar a propriedade privada não aparecem no filme,
o que temos são três engenheiros, sócios de uma
construtora de sucesso em São Paulo, “Araújo &
Associados”, Estevão Araújo (George Freire), Gilberto
Vialli (Alexandre Borges) e Ivan Soares (Marco Ricca), amigos há
mais de quinze anos (desde os tempos de faculdade), se desentendem
nos negócios por conta de um grande projeto. Estevão, sócio-majoritário da construtora, não quer participar de negócios com o governo: “Ivan, tem sempre alguma falcatrua no meio. Você entra numa concorrência e já sabe que as cartas estão marcadas”. Estevão não quer ter que pagar propina para vencer a concorrência e continuar pagando para conseguir as verbas. “Eu nunca quis isso, Ivan. Se outras empreiteiras topam, não é problema meu”. Gilberto e Ivan contratam Anísio (Paulo Miklos), um matador de aluguel com planos de ascensão financeira. Anísio simula um assalto e mata Estevão e Silvana, sua esposa.
São amigos, mas antes são sócios, donos de uma
construtora em São Paulo. “Negócio é negócio”
e “amizade é amizade”. Para Robert Kurz, “sob
a pressão da concorrência no mercado, o empresário
é obrigado a obedecer, em todas as decisões, à
racionalidade monetária” (1998:183). Estevão precisa
morrer, trata-se de um estilo de gerir empresas, sua morte “não
é um erro casual, mas resultado necessário do sistema
de mercado” (1998: 187). Para as leis do mercado não
se trata de monstruosidade, mas de Administração de
Empresas. A partir deste ponto de vista “neoliberal”,
uma amizade como a de Estevão, que impede o florescimento de
outras vantagens não vale nada, porque a velocidade vertiginosa
desta economia não permite sentimentalismo. “Bestialização
das relações sociais” (1997197). Estevão
é prejuízo numa sociedade que prioriza a redução
de custos sem levar em conta quem ou o que deve ser reduzido. Estevão
e Silvana foram eliminados para o livre fluir dos negócios. Ivan
e Gilberto parecem formar uma dupla de sucesso nas paradas “neoliberais”.
Filhos de famílias “classe-média” puderam
fazer valer o direito de estudar conforme o “manual para o menino
branco de ‘classe-média’ ser gerente ou patrão”:
escola particular, enciclopédias, cursinho pré-vestibular,
leite com “Toddy”, tapinha nas costas, Universidade etc,
expressam a conhecida antítese trabalho forçado de um
lado, trabalho intelectual medíocre do outro. São engenheiros
de sucesso num país miserável e sem leis! De um lado
os funcionários da “Araújo & Associados”,
do outro, nossa dupla dinâmica nada sertaneja formada para ganhar
dinheiro, custe o que ou quem custar. Carro novo, casa nova, roupas
bonitas, mulheres bonitas, drogas caras, não parecem interessados
em contestar o estado atual das coisas que os favorecem economicamente.
Será que eles apóiam o movimento dos sem-teto? São
contra a propriedade privada? Ivan e Gilberto produzindo moradias
alternativas para a classe trabalhadora? Ivan e Gilberto, produto
e expressão de uma “sociabilidade neoliberal”,
são assassinos, jovens assassinos da “classe-média”. Num percurso muito diferente de diretores como Walter Salles, Fernando Meirelles e cia, diretores mais comprometidos com os ideais das classes dominantes, Beto Brant em “O Invasor” trata justamente dos crimes cometidos pelas “classes altas”, crimes geralmente ocultados pelos meios de comunicação de massa e até pela polícia! (são sócios na prostituição, nas fraudes, no tráfico internacional etc.). Neste percurso não muito usual, “O Invasor” de certa forma contribui para retirar o véu que cobre os “ricos”, observa os que “olham de cima”, que freqüentam teatros e mandam matar quando é preciso ou quando dá vontade. Não gostou da cara do jardineiro? Muito feio? Os ricos podem matar na hora! Muito raramente eles apertam o gatilho, só quando dá vontade, mas em geral, como em tudo, preferem que os outros façam o serviço sujo. Gilberto e Ivan contrataram Anísio.
Gilberto, engenheiro de formação, atua na construção civil e na prostituição: “Diversificação de negócios. É a onda do momento”. Exerce de forma exasperada sua liberdade de indivíduo monetário aparentemente livre, racional e democrático, Gilberto parece viver no “melhor dos mundos possíveis”. Assim como todos, busca a felicidade, mas de forma mais realista, tem como ponto de partida o imediatismo, não parece interessado em não atuar em conformidade com os mandamentos do capital globalizado. Gilberto não pode se “dar mal”, e quem pode numa sociabilidade neoliberal que estimula o acúmulo de moeda? É casado e parece ser um pai atencioso.
Ivan, também nascido e criado em berço “classe-média”, parece perdido. É casado com Cecília (Chris Couto), freqüenta festas, fuma, bebe, transa, mas não sabe muito bem ao certo. Participou da negociação com Anísio mas não tem certeza se Estevão realmente tem que morrer. Ivan parece em crise. Rastejante, automático, flexível, incerto, parece uma “bolha especulativa” que a qualquer momento vai explodir de desespero. Ivan se “financeirizou”, parece meio “estranho”, meio abatido, meio “abstrato”. Ele também está mais próximo da realidade do que gostaria, ela insiste em invadir a vida de Ivan, insiste em mostrar que os tempos de juventude acabaram, ele não pode mais chamar pelo pai quando estiver com muito medo do escuro, Ivan agora é um assassino, pagou pela morte de Estevão, não pode voltar atrás. Ivan parece triste. Parece não saber ao certo o que fazer com o dinheiro que ganhou, o amor não se concretiza, o sonho de felicidade prometido pela burguesia parece falso, a vida lhe parece estranha, Ivan está perdido, tem um revólver, um carro novo e algumas doses. “Este é o meu garoto!”.
Beto Brant não nos apresenta um filme cheio de esperanças, da “classe-média” ele não espera nada ou espera só o pior; seus personagens estão envolvidos com o crime até o pescoço: gerentes e patrões na prostituição, na compra de armas, assassinatos, fraudes, etc. “O Invasor” nos dá uma idéia de um mundo onde os valores do capital são cada vez mais globalizados: vida em estado de calamidade burguesa. Indivíduos calcados na propriedade privada procuram desesperadamente manter as coisas como elas estão. Gilberto não está interessado em solidariedade, Ivan está perdido demais para pensar nisto.
Fábio
Nunes Silva é graduando em ciências sociais
da UNESP-Marilia |