“O Invasor”, de Beto Brandt
(Brasil, 1998)

 

 

A “classe-média” “à beira de um ataque de nervos

 

 


A partir da década de 90, sob o poder hegemônico dos EUA (Consenso de Washington), o Brasil passa a ser palco de “experiências neoliberais”. Dentro de um contexto de “financeirização do capital”, com a vitória de Fernando Collor de Mello nas eleições de 1989, o Brasil passa a ser ainda mais um espaço propício para a disseminação dos interesses de mercado e o desmantelamento do público. A “era neoliberal” marca o desenvolvimento e a ampliação de acontecimentos desastrosos: fome, doenças, privatizações, violência e corrupção endêmicas, desemprego estrutural, refluxo dos sindicatos revolucionários, os professores abandonam teorias e esperanças revolucionárias, os teatros e cinemas são fechados ou entram para dentro dos shopping centers (o Teatro Oficina, importante grupo teatral paulistano luta para não ser transformado em mercado pelo Grupo Sílvio Santos). O “neoliberalismo” exige individualismo radical: tudo pago e uma enorme facilidade em acolher bancos, empresas e outros crimes do capital, agora globalizados.


A marca das empresas? Ganhar dinheiro e, como as mudanças nunca são só na economia, conforme Giovanni Alves, após os “anos Collor” percebe-se ainda mais a vida ser constituída a partir de elementos intrínsecos do capital, é produzida historicamente uma “sociabilidade neoliberal”: relações humanas contaminadas por interesses privados. “Financeirização da vida”. O outro serve na medida em que eu vou ganhar. O que eu vou ganhar com isto? O que você vai ganhar? Numa sociabilidade fundada na propriedade privada, que exige subalternidade e frieza nos cálculos, estreita-se os espaços para valores como solidariedade, para a lógica “neoliberal” o que vale é o lucro, o resto o mercado resolve, o resto os burgueses “neoliberais”, ainda mais idiotas, calcula, pensa, pesa e elimina ou cria uma organização não-governamental para lucrar com a miséria da maioria da população do país.

 


Segundo Robert Kurz em “Os últimos combates” (1997), muitos vínculos sociais são rompidos em todas as classes sociais, “tanto o efetivo processo econômico quanto a ideologia neoliberal tendem a dissolver as relações humanas na economia” (1998:145). Conforme Kurz, o economista norte-americano Gary S. Becker, Prêmio Nobel em 1992, desenvolveu a hipótese de que o comportamento humano, em épocas neoliberais, é orientado pela relação custo-benefício. Mas é claro que as sociedades vitimadas pelo pensamento “neoliberal” não foram efetivamente homogeneizadas, o levante de Chiapas, no México (1994), com o Exército Zapatista de Libertação Nacional é visto por muitos como uma resposta a esta ofensiva globalizada do capital. No Brasil tem-se ainda o MST, MTST, Movimento Quilombola etc.

“O Invasor” (2001), de Beto Brant, com roteiro de Marçal Aquino, Beto Brant e Renato Ciasca ( baseado em novela homônima de Marçal Aquino), focaliza o mundo das empresas neste momento de “financeirização do capital” e algumas de suas conseqüências sociais, no momento em que as relações humanas são levadas ao limite da contabilidade. Coletivos organizados para derrubar a propriedade privada não aparecem no filme, o que temos são três engenheiros, sócios de uma construtora de sucesso em São Paulo, “Araújo & Associados”, Estevão Araújo (George Freire), Gilberto Vialli (Alexandre Borges) e Ivan Soares (Marco Ricca), amigos há mais de quinze anos (desde os tempos de faculdade), se desentendem nos negócios por conta de um grande projeto.

Estevão, sócio-majoritário da construtora, não quer participar de negócios com o governo: “Ivan, tem sempre alguma falcatrua no meio. Você entra numa concorrência e já sabe que as cartas estão marcadas”. Estevão não quer ter que pagar propina para vencer a concorrência e continuar pagando para conseguir as verbas. “Eu nunca quis isso, Ivan. Se outras empreiteiras topam, não é problema meu”. Gilberto e Ivan contratam Anísio (Paulo Miklos), um matador de aluguel com planos de ascensão financeira. Anísio simula um assalto e mata Estevão e Silvana, sua esposa.

 

 

São amigos, mas antes são sócios, donos de uma construtora em São Paulo. “Negócio é negócio” e “amizade é amizade”. Para Robert Kurz, “sob a pressão da concorrência no mercado, o empresário é obrigado a obedecer, em todas as decisões, à racionalidade monetária” (1998:183). Estevão precisa morrer, trata-se de um estilo de gerir empresas, sua morte “não é um erro casual, mas resultado necessário do sistema de mercado” (1998: 187). Para as leis do mercado não se trata de monstruosidade, mas de Administração de Empresas. A partir deste ponto de vista “neoliberal”, uma amizade como a de Estevão, que impede o florescimento de outras vantagens não vale nada, porque a velocidade vertiginosa desta economia não permite sentimentalismo. “Bestialização das relações sociais” (1997197). Estevão é prejuízo numa sociedade que prioriza a redução de custos sem levar em conta quem ou o que deve ser reduzido. Estevão e Silvana foram eliminados para o livre fluir dos negócios.

Ivan e Gilberto parecem formar uma dupla de sucesso nas paradas “neoliberais”. Filhos de famílias “classe-média” puderam fazer valer o direito de estudar conforme o “manual para o menino branco de ‘classe-média’ ser gerente ou patrão”: escola particular, enciclopédias, cursinho pré-vestibular, leite com “Toddy”, tapinha nas costas, Universidade etc, expressam a conhecida antítese trabalho forçado de um lado, trabalho intelectual medíocre do outro. São engenheiros de sucesso num país miserável e sem leis! De um lado os funcionários da “Araújo & Associados”, do outro, nossa dupla dinâmica nada sertaneja formada para ganhar dinheiro, custe o que ou quem custar. Carro novo, casa nova, roupas bonitas, mulheres bonitas, drogas caras, não parecem interessados em contestar o estado atual das coisas que os favorecem economicamente. Será que eles apóiam o movimento dos sem-teto? São contra a propriedade privada? Ivan e Gilberto produzindo moradias alternativas para a classe trabalhadora? Ivan e Gilberto, produto e expressão de uma “sociabilidade neoliberal”, são assassinos, jovens assassinos da “classe-média”.

Num percurso muito diferente de diretores como Walter Salles, Fernando Meirelles e cia, diretores mais comprometidos com os ideais das classes dominantes, Beto Brant em “O Invasor” trata justamente dos crimes cometidos pelas “classes altas”, crimes geralmente ocultados pelos meios de comunicação de massa e até pela polícia! (são sócios na prostituição, nas fraudes, no tráfico internacional etc.). Neste percurso não muito usual, “O Invasor” de certa forma contribui para retirar o véu que cobre os “ricos”, observa os que “olham de cima”, que freqüentam teatros e mandam matar quando é preciso ou quando dá vontade. Não gostou da cara do jardineiro? Muito feio? Os ricos podem matar na hora! Muito raramente eles apertam o gatilho, só quando dá vontade, mas em geral, como em tudo, preferem que os outros façam o serviço sujo. Gilberto e Ivan contrataram Anísio.

 

 

Gilberto, engenheiro de formação, atua na construção civil e na prostituição: “Diversificação de negócios. É a onda do momento”. Exerce de forma exasperada sua liberdade de indivíduo monetário aparentemente livre, racional e democrático, Gilberto parece viver no “melhor dos mundos possíveis”. Assim como todos, busca a felicidade, mas de forma mais realista, tem como ponto de partida o imediatismo, não parece interessado em não atuar em conformidade com os mandamentos do capital globalizado. Gilberto não pode se “dar mal”, e quem pode numa sociabilidade neoliberal que estimula o acúmulo de moeda? É casado e parece ser um pai atencioso.


Assim como as mortes de Estevão e Silvana não foram erros casuais, Gilberto também não é nenhuma anomalia, ele é mais um empresário e não foi o primeiro e nem será o último empresário que contrata um matador de aluguel para resolver alguns negócios, este é o meio em que ele vive, foi assim que lhe ensinaram. Assim como muitos empresários ele também acredita que “quem não faz, leva”, sabe como funciona estes negócios: “Se a gente bobear, ele põe no nosso rabo. È só uma questão de oportunidade”. Segundo Robert Kurz, “somente por meio dessa lógica econômica pôde nascer um mercado totalizado, no qual empresários voltados ao lucro concorrem entre si e no qual dependem de sua capacidade de ‘ganhar dinheiro’” (1997:186). Mas Gilberto é “classe-média”, está mais próximo da miséria do que gostaria, sua construtora é lucrativa, mas não é a maior construtora do País, seu carro é novo mas não é blindado, pode até comprar um revólver mas não é acompanhado por dezenas de seguranças armados, está lançado na dura e miserável realidade “neoliberal”, é obrigado a percorrer as ruas de São Paulo com seu carro novo e desprotegido, ele também pode ser “assaltado” como Estevão, ele também pode ser encontrado morto num terreno baldio. Gilberto quer ser “Elite” (como construir uma fortuna sem cometer crimes?), precisa estar na capa da revista “Forbes”, eleito o homem mais rico do país. Gilberto não inspira revolução.

Ivan, também nascido e criado em berço “classe-média”, parece perdido. É casado com Cecília (Chris Couto), freqüenta festas, fuma, bebe, transa, mas não sabe muito bem ao certo. Participou da negociação com Anísio mas não tem certeza se Estevão realmente tem que morrer. Ivan parece em crise. Rastejante, automático, flexível, incerto, parece uma “bolha especulativa” que a qualquer momento vai explodir de desespero. Ivan se “financeirizou”, parece meio “estranho”, meio abatido, meio “abstrato”. Ele também está mais próximo da realidade do que gostaria, ela insiste em invadir a vida de Ivan, insiste em mostrar que os tempos de juventude acabaram, ele não pode mais chamar pelo pai quando estiver com muito medo do escuro, Ivan agora é um assassino, pagou pela morte de Estevão, não pode voltar atrás. Ivan parece triste. Parece não saber ao certo o que fazer com o dinheiro que ganhou, o amor não se concretiza, o sonho de felicidade prometido pela burguesia parece falso, a vida lhe parece estranha, Ivan está perdido, tem um revólver, um carro novo e algumas doses. “Este é o meu garoto!”.

 

Beto Brant não nos apresenta um filme cheio de esperanças, da “classe-média” ele não espera nada ou espera só o pior; seus personagens estão envolvidos com o crime até o pescoço: gerentes e patrões na prostituição, na compra de armas, assassinatos, fraudes, etc. “O Invasor” nos dá uma idéia de um mundo onde os valores do capital são cada vez mais globalizados: vida em estado de calamidade burguesa. Indivíduos calcados na propriedade privada procuram desesperadamente manter as coisas como elas estão. Gilberto não está interessado em solidariedade, Ivan está perdido demais para pensar nisto.


Um pouco diferente de alguns filmes produzidos neste contexto “neoliberal”, como os premiadíssimos “Central do Brasil” (1998), “Cidade de Deus” (2002), “Carandiru” (2003) e “Tropa de Elite” (2007), “O Invasor” não olha a periferia da janela do apartamento. Apesar de ser uma produção “classe-média” realizada através do concurso para filmes de baixo orçamento e seu elenco ser facilmente associado à Rede Globo: Malu Mader, Alexandre Borges, Mariana Ximenes, Marco Ricca, Chris Couto, “O Invasor” não vai só na “função”, só interessado em pegar umas drogas ou gravar algumas cenas e “sair fora”, não se enquadra neste tipo de cinema cujo tema é a pobreza e o objetivo é ganhar dinheiro e se possível ganhar o Oscar. Não parece ser um filme totalmente comprometido com os interesses das burguesias e suas máfias. “O Invasor” não parece ser um filme racista. Sabotage, rapper dedicado e importante figura do Hip Hop, assassinado em 24 de Janeiro de 2003, participou de uma das cenas do filme, na elaboração dos diálogos do personagem Anísio e da trilha sonora, ao lado de grupos como Pavilhão 9 e Tolerância Zero. A periferia está mais próxima do que a “classe-média” gostaria.

 

Fábio Nunes Silva é graduando em ciências sociais da UNESP-Marilia