“Luz de Inverno”, de Ingman Bergman
(Suécia, 1962)

 

 

Bergman sussurra contra Deus

 

 

Godard estava certo em dizer que o cinema tem a sorte de preservar-se algumas belezas. No contexto da guerra fria, em 1962, em plena crise internacional política, Luz De Inverno, segundo filme da "Trilogia do Silêncio" de Bergman, chegava às telas anunciando uma crise de fé entre um pescador oriundo das silenciosas cidades do norte da Europa e atônito por saber entre os noticiários que a China possuía uma bomba atômica e o pastor (Thomas) - o personagem central do filme - que, igualmente, está em crise moral com seu ofício.

Se pudéssemos restituir um fio condutor de Luz De inverno era teria um caráter (narrativo) teatral em cujas cenas têm seu desencadeamento de ação nos diálogos, longos diálogos aliás, com ritmos em que cada palavra pronunciada é uma tensão entre a palavra a seguir. Cada momento é decisivo pois eles refletem sobre o momento e sobre seu estado presente. Adiantamos que é um filme de poucos personagens, e também de pouca mobilidade espacial: quase todo o filme se passa no interior da igreja que cria uma sensação claustrofóbica. Quando se sai dessa jaula lúgubre não é para vultos alegres e sim para acompanhar o pastor que se dirige para lá das Colinas onde (o pescador) se matou. O silêncio da cena (o que ouvimos é apenas o barulho das águas) e a rapidez em relação ao corpo que começa a ser removido transmitem uma sensação de desajuste entre aquele que reflete o acontecimento e o fato consumado. Os enquadramentos do bosque e do lago são integrados a psicologia do personagem. Não há recursos de melodrama. Há apenas silêncio.

 



Luz de Inverno, como outros filmes de Bergman, aparentam serem lugares distanciados de tudo, do mundo moderno (quem imagina, por exemplo, que naquele tempo onde a fé cristã está em seu ápice, depois de voltar das cruzadas, o cavaleiro Antonius, de O Sétimo Selo, teria dúvidas sobre a existência de Deus). Parece que esse fim do mundo que é o mundo de Bergman é incomunicável com seu próprio mundo nas quais as pessoas vivem um outro tempo em suas vidas camponesas, nas vilas e províncias. Não obstante, parece a primeira vista um exagero o pescador estar alarmado por um acontecimento aparentemente distante: a China e sua bomba atômica. Exagero que logo se dilui, pois trata-se sobre a tragédia da possibilidade real da destruição do planeta. A modernidade e o progresso que mal se instalaram em todos os recantos do mundo chegam através das políticas internacionais catastróficas que acelera o (des)caminho da barbárie. O progresso é catastrófico na medida em que não forneceu um real progresso humano como sonhavam os iluministas.

A angústia do pastor e do pescador podem ser aparentemente as mesmas. Digamos assim: que tanto o pastor quanto o pescador estão em uma situação de desespero tamanho que questionam o inquestionável: a fé de Deus. (“Que imagem ridícula!” assevera o pastor quando olha para o cenário de Jesus em uma cruz).

Desse modo, em vez de aconselhar Jonas a recuperar sua fé o pastor lhe dá mais argumentos para o pescador distanciar-se de qualquer crença. Parece que não há mais escapatória, pois nem mesmo o sagrado fornece força de ação para continuar. Não é a toa que Thomas lhe conta que foi pastor em Lisboa durante a guerra civil espanhola. E que fechavas os olhos sobre o que estava acontecendo realmente. Recusava em nome de um Deus que, logo em seguida, quando solicitado a confrontar questões reais. logo se transformara em uma alga feia, “um Deus-aranha, um monstro”.

 

 


Qual Deus salvará? Qual final se anunciará? “Se pelo menos tivéssemos a verdade para acreditar ou se pelo menos pudéssemos acreditar” acrescenta Thomas.

O Pastor faz um pergunta em diálogo com o dostoevskiano: “Se Deus não existisse, isso faria alguma diferença?” Se para Dostoievski, tudo seria permitido, para o Pastor de Bergman: sim, a vida seria um alívio. Jonas sai perturbado. Em seguida, uma senhora avisa que Jonas Persson deu um tiro na cabeça com um rifle.

Todavia Bergman segue adiante em sua luta contra a odisséia de um Deus Todo Poderoso. A morte não o assusta, ao contrário, o anima para encontrar “provas” para situação emergencial da sociedade. O célebre diálogo entre o sacristão e o Pastor tem uma proposição que vai nessa direção. Para o sacristão após ler o Evangelho chegara à conclusão que o sofrimento de Cristo não foi um dos piores. Seu sofrimento físico durou apenas algumas horas enquanto muitas pessoas passaram (e passam) por dificuldades mais dramáticas. Nessa medida, sua acepção trata Cristo de modo mais profano que sagrado, o coloca como humano, imperfeito, cheio de incertezas, um Cristo mortal como o de O Evangelho Segundo São Mateus, de Pasolini. Assim pois, o sacristão acentua uma hipótese de que o próprio Cristo, também, teve dúvida da própria fé ao proclamar, antes de morrer, “Deus, meu Deus por que me abandonaste?”. Se até naquele que acreditamos, o senhor sob todas as coisas, estava descrente, por que nós não podemos nos permitir tal idéia? A crise de fé com qual é o motor do filme é mais pela possibilidade real de um apocalipse nuclear do que uma crise individual. Sem dúvida é um pessimismo que tem como de uma de suas fontes principais o existencialismo que, nessa época, estava em seu apogeu. Mas não nos esqueçamos que, para além disso, é uma crise geral dos padrões (bárbaros) civilizatórios que mesmo em temporalidades tão diferentes se combinam e criam ritmos desiguais na reprodução social do capital.

 

Deni Ireneu Alfaro Rubbo
Mestrando em Sociologia pela FFLCH- USP.

 


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