“Como Enlouquecer seu Chefe”, de Mike Judge
(EUA, 1999)

 

 

“O insustentável peso do trabalho”

 

O título do presente artigo é a tradução luso-portuguesa para o filme Office Space, uma comédia norte-americana de 1999, escrita e dirigida por Mike Judge criador de “Beavis & Butthead” e co-criador da série “King of the Hill”. Baseado na série de caricaturas “Milton” do próprio Judge, no Brasil Office Space - que na tradução literal seria algo como “O espaço do escritório”, “espaço de trabalho” - ganhou a tradução de “Como enlouquecer seu chefe”, e deu ao filme, de antemão, o título supostamente ideal para a chancela de uma obra cinematográfica do gênero comédia, pois já anuncia previamente ao espectador o que esperar deste. A julgar por este ensaio, creio que o título lusitano O insustentável peso do trabalho, me soa mais confortável e também confere maior veracidade à narrativa tragicômica proposta pelo brilhante sarcasmo de Mike Judge. Neste breve ensaio sobre a obra em questão focamos nossas atenções para a personagem principal Peter Gibbons (Ron Livingston) e para a forma com que ele lida com seu trabalho de maneira geral, seja com seus companheiros de companhia, com ex e atual namorada (Jennifer Aniston), seja levando esse tedioso cotidiano à sua vida pessoal mesmo que de forma inconsciente. Sendo assim, neste pequeno ensaio crítico, buscamos apresentar alguns temas que possam ser de utilidade para uma crítica da sociedade burguesa na perspectiva do mundo do trabalho capitalista visto pela ótica do cinema.

Na Grécia antiga, a tragicomédia era um subgênero teatral que alternava ou mesmo misturava comédia, tragédia, farsa e melodrama, podendo ser encontrada em diversas peças, como por exemplo, o Alceste de Eurípides (485 a.C. - 406 a.C.), que, em razão do seu "final feliz" e pelo tom levemente humorístico de algumas passagens, é vista por alguns eruditos como um drama satírico ou uma tragicomédia - mais do que uma tragédia. Algumas peças de Shakespeare (1564 -1616), como O Rei Lear, tem muito da tragicomédia, de forma que a ironia e a comicidade contribuem para a maior riqueza de significados do texto. Porém é somente no século XX, com o teatro do absurdo, que a utilização do riso não necessariamente exclui a profundidade dramática, o que fez com que o cinema se apropriasse e utilizasse desse recurso tragicômico em muitos momentos de sua história como bem podemos nos lembrar do Carlitos de Charles Chaplin que usou o humor com maestria para satirizar a precarização do trabalho operário nas fábricas do início do século XX em seu famoso “Tempos Modernos”.

Mike Judge então se utiliza do recurso tragicômico para compor a narrativa de “O insustentável peso do trabalho” buscando ironizar a vida no trabalho de uma típica companhia de desenvolvimento de softwares durante o final da década de 90, focando na exaustão e na fadiga dos indivíduos que estão cheios do seu trabalho. Filmado em Austin e Dallas, dois pólos tecnológicos e computacionais do Texas nos Estados Unidos, o filme traça um quadro da ordinária vida dos trabalhadores da área de tecnologia da informação no país, representados através da figura de seu protagonista Peter Gibbons (Ron Livingston), que a certa altura da história, busca ajuda de um ‘hipno-terapeuta’ devido ao estresse ocasionado por seu trabalho tedioso e rotineiro. Peter passa então a sabotar seu trabalho, agindo da forma que bem entende, porém suas atitudes o levam a ganhar uma promoção, bem como a diversos desfechos mirabolantes na trama.

Faz-se importante entendermos o contexto o qual o filme foi idealizado e produzido. Peter e seus companheiros de profissão são funcionários da Initech - sigla esta que em determinado momento do filme, ficamos sabendo por meio do que se lê em uma faixa fixada ao fundo do saguão da empresa que significa “Iniciativa+Tecnologia = Initech” – uma empresa do ramo de Tecnologia da Informação (TI) que em seu momento atual, 1999, encarrega os programadores Peter Gibbons, Michael Bolton e Samir Nagheenanajar de cuidarem do problema “Bug do Milênio” ou “Bug Y2K” previsto ocorrer em todos os sistemas informatizados na passagem do ano de 1999 para 2000.

“Bug” é um jargão internacional usado por profissionais e conhecedores de programação, que significa um erro de lógica na programação de um determinado software. No final do século passado, todas as datas eram representadas por somente 2 dígitos, os programas assumiam o "19" na frente para formar o ano completo. Assim, quando o calendário mudasse de 1999 para 2000 o computador iria entender que estava no ano de "19" + "00", ou seja, 1900. Os softwares mais modernos, que já utilizavam padrões mais atuais, não teriam problemas em lidar com isso e passariam corretamente para o ano 2000, mas na época constatou-se que uma infinidade de empresas e instituições de grande porte ainda mantinham em funcionamento programas antigos, em função da confiança adquirida por anos de uso e em sua estabilidade. Para além disso, temiam-se os efeitos que poderiam ser provocados no hardware pelo sistema BIOS, caso este reconhecesse apenas datas de dois dígitos pois caso as datas realmente "voltassem" para 1900, clientes de bancos veriam suas aplicações dando juros negativos, credores passariam a ser devedores, e boletos de cobrança para o próximo mês seriam emitidos com 100 anos de atraso.

O temor causado pelo “Bug do Milênio” na época motivou uma renovação em massa dos recursos de informática (tanto de software como de hardware) e houve uma louca corrida para corrigir, atualizar e testar os sistemas antes que ocorresse a mudança do milênio. No entanto, houve poucas falhas decorrentes do “Bug do Milênio”, que se revelou quase inofensivo apesar de ter gerado uma onda de pânico coletivo, especialmente nos países nos quais os computadores estavam mais popularizados. O assunto gerou muita polêmica devido aos grandes lucros gerados para as empresas de informática, foi alvo de matérias copiosas na imprensa e deu origem a filmes como o caso deste que estamos tratando. Hoje, o “Bug do Milênio” é considerado como um dos casos registrados pela história de pânico coletivo vazio de fundamentos, uma versão moderna do "temor do fim do mundo" que acometeu os povos da Europa Medieval na virada do ano de 999 para 1000. Caso este male tivesse de fato ocorrido da forma como foi premeditado teríamos tido uma crise do capital financeiro que poderia desmoronar seus “castelos de areia”.

Esta mudança permanente das tecnologias da informação é um dos traços marcantes que reestruturaram o mundo do trabalho nos anos 90, o que criou organizações flexíveis e inventivas que buscaram adaptar-se a todas as transformações informacionais, dispondo sempre de um pessoal, dotado de capital intelectual, à frente dos concorrentes em termos tecnológicos. Tal atenção obsessiva à adaptação, à mudança, à flexibilidade assenta uma série de fenômenos que marcaram profundamente este período neoliberal.

 

 

 



Desgostoso e entediado com seu trabalho, após a breve seção com o ‘hipno-terapeuta’, o Dr. Swanson – o ator Mike McShane faz uma caricatura dos pseudo-terapeutas espalhados por aí – o protagonista Peter Gibbons cria mecanismos próprios de resistência para sabotar seu cotidiano de trabalho. Bendassolli (2009) nos diz que mesmo existindo uma completa submissão sugestiva sob outros aspectos, a consciência moral do trabalhador pode apresentar resistências. Isso se dá por certo conhecimento de que o que está acontecendo seja apenas um jogo, uma reprodução inverídica de outra situação muito mais importante na vida, levando-o ao tédio e à fadiga no trabalho.

Para a compreensão de tais mecanismos relacionados ao tédio de Peter referente ao seu trabalho, utilizamo-nos de explanações feitas pelo filósofo norueguês Lars Svendsen (2006), que nos diz que o tédio é um fenômeno que surgiu no período moderno porque, é nas sociedades modernas que se está cada vez mais difícil encontrarmos um sentido para a existência. Bendassolli (2009) fala que o tédio está ligado à dificuldade de o indivíduo encontrar motivos para agir. Refere-se à falta de propósito, à sensação de vazio existencial. Em termos psicanalíticos, é a ausência de investimentos em objetos externos ao sujeito. Ou seja, é como se nada que estivesse no mundo pudesse chamar a atenção do indivíduo, despertando seu desejo.
Fazendo divisa com a melancolia e a depressão, o tédio é um sentimento difuso, mas não necessariamente patológico. Ainda de acordo com Svendsen (2006), o tédio surge normalmente quando não podemos fazer o que queremos ou temos de fazer o que não queremos. Em ambos os casos, o que está em jogo no tédio é a irreconciliação entre prazer e obrigação.

Bendassolli (2009) prossegue dizendo que se, de um lado, o prazer é um estado de fruição e normalmente ocorre quando há uma coincidência entre desejo e realização (querer algo e consegui-lo), as obrigações, por outro, têm a ver com exigências alheias, não necessariamente condizentes com o que o indivíduo deseja ver realizado, como no caso de Peter que não adere às filosofias de gestão da Initech, pois não partilha das mesmas idéias que são perpetuadas nos corredores da empresa por meio das políticas burocráticas ‘non-sense’ de seu chefe Bill Lumbergh (Gary Cole) que ficam explícitas no filme com o exemplo jocoso dos “relatórios T.P.S.” que no filme, ninguém sabe exatamente para o que serve, muito menos o próprio Lumbergh, que apenas exige que tais relatórios devam conter novas capas de apresentação segundo memorando interno enviado aos funcionários. Na verdade um relatório T.P.S. (Testing Procedure Specification) é um documento usado em engenharia de software, em especial por um software de Garantia de Qualidade de grupo ou individual, que descreve os procedimentos de um teste e o processo deste teste.

Conseqüentemente, o tédio é a maneira de resistência a qual Peter se apercebe por reagir às obrigações externas, a estímulos previamente codificados e impessoais, por justamente não ter o poder para determinar o curso das coisas de acordo com sua própria vontade, ou então quando é demasiado frustrado por aquilo que Freud chama de princípio de realidade. Daí que o tédio, na descrição de Svendsen (2006), expressa a idéia de que dada situação ou a existência como um todo são profundamente insatisfatórias.

Desta forma, Peter decide então não ir mais ao trabalho. Quando vai chega atrasado, faz mudanças em sua mesa, veste a roupa que quer, sai para pescar no meio do expediente, e assume uma postura anti-hierárquica diante de seu chefe, o que envolve situações de ordem moral nesta clássica relação empresarial de dominantes-dominados. Embora a hierarquia seja o alvo favorito de Peter, ele também faz ataques inconscientes à planificação da Initech, retratada como uma companhia rígida e baseada em dados quantitativos frios, que não expressam a “verdadeira realidade” que ele busca, e a todas as instâncias associadas à autoridade, como seu chefe.

Dejours (1991) nos diz que as frustrações provenientes do pouco conteúdo significativo do trabalho toyotista, podem ser uma fonte de grandes esforços de adaptação. “É do contato forçado com uma tarefa desinteressante que nasce uma imagem de indignidade. A falta de significação, a frustração narcísica, a inutilidade dos gestos, formam ciclo por ciclo, uma imagem narcísica pálida, feia, miserável (...) a vivência depressiva condensa de alguma maneira tais sentimentos de indignidade, de inutilidade e de desqualificação, ampliando-os” (p. 49).

Durante o trabalho, vários elementos contam na formação do ideal de eu. No que diz respeito à relação do homem com o conteúdo “significativo” do trabalho, podem-se considerar, dois componentes: o conteúdo significativo em relação ao indivíduo, que é a significação da tarefa acabada em relação a uma profissão (noção de aperfeiçoamento pessoal); e o conteúdo significativo em relação ao Objeto em que o trabalho comporta, ao mesmo tempo, uma significação narcísica, onde ele pode suportar investimentos simbólicos e materiais destinados a um objeto exterior como o caso da produção assumindo funções sociais, econômicas e políticas.

 



Se na tradição greco-romana, a liberdade e o status de um homem eram medidos pela quantidade de ócio de que dispunha, onde ter ócio era ter liberdade para dedicar-se a atividades enobrecedoras e espiritualmente elevadas, conformes ao próprio espírito e inclinações, os homens que tratavam de (neg)ócios eram, literalmente, “negadores do ócio”. O que Peter faz em sua “sabotagem ao trabalho” é, portanto um retorno ao ócio greco-romano, pois ele nega o neg(ócio) para ter de volta o ócio primitivo.

Sabe-se que, com o advento do capitalismo, o trabalho se torna uma atividade enfadonha, árdua e penosamente repetitiva para a maioria dos trabalhadores. No tomo I do “O Capital”, Marx (1988) denunciou a alienação provocada pelo trabalho sendo esta a conseqüência de o indivíduo não encontrar qualquer sentido no trabalho que realiza tamanho estranhamento que tem com este. Nos "Manuscritos Econômico-filosóficos" (1844), Marx tratou deste "trabalho estranhado" como sendo a característica essencial da atividade do trabalho na sociedade capitalista. Para Alves (2006), na medida em que o processo de trabalho é processo de valorização, seja no espaço da fábrica ou no espaço do escritório, o trabalho aparece como trabalho estranhado (o homem que trabalha está alienado do produto e do processo da sua atividade de trabalho, além de estar alienado de si e dos outros). Esta é a condição do trabalho na sociedade burguesa e é por isso que no filme tal alienação das personagens não se dá apenas no ambiente interior da empresa, mas também na vida cotidiana e nas relações sociais, pessoais ou afetivas.

Assim, o problema que logo ficou claro para as empresas e seus “gestores” já no início do capitalismo industrial era como fazer as pessoas se engajarem em seu trabalho a despeito de este lhes causar profundo tédio e estranhamento cada vez mais profundo. Para Bendassolli (2009), seria difícil, senão impossível, extrair o quantum de produtividade necessário ao desenvolvimento capitalista sem o compromisso intenso dos funcionários (com os horários, a cadência das máquinas, as condições ambientais insalubres, as exigências bizarras e as excentricidades dos “gestores” etc.). Nesse ponto começou a se consolidar uma engenhosa estratégia anti-tédio no mundo capitalista ocidental: a idéia de que o trabalho é, dentre atividades humanas, a mais enobrecedora e importante, e de que as empresas são ambientes altamente ricos em cultura e significado. A Initech demonstra-nos partilhar desta concepção em diversas passagens do filme, como quando o chefe Bill Lumbergh em reunião coletiva para apresentação dos consultores contratados para avaliarem a empresa, diz aos “colaboradores” que se forem tomar uma decisão, devem sempre pensar conforme a faixa afixada no saguão da empresa “isto é bom para a companhia?” excluindo-se assim o pensamento singular das subjetividades.

É graças a esse sentido compartilhado, ao qual todos aderem que, cada um sabe aquilo que deve fazer sem que ninguém precise mandar. Imprime-se com firmeza uma direção, sem ser preciso recorrer a ordens, e o pessoal pode continuar a autogerir-se. Nada é imposto ao trabalhador, pois ele adere ao projeto. Para Boltanski (2009), a cultura e os valores da empresa, o projeto da empresa, a visão do líder, a capacidade do dirigente empresarial de “compartilhar seu sonho” são meios auxiliares que devem favorecer a convergência dos autocontroles individuais, controles exercidos por cada um sobre si mesmo, de modo voluntário, tendo todos mais probabilidade de permanecer coerentes entre si, visto que são inspirados por uma mesma fonte original, no caso de Peter, seu chefe e os consultores da empresa.

Neste sentido, a Initech enquadra-se como uma organização toyotista do trabalho capitalista que busca “capturar” o “fazer” e o “saber” de Peter e seus colegas, solicitando destes uma disposição intelectual-afetiva voltada para cooperar com a lógica da valorização. É com a presença dos Bob´s, os consultores que são chamados para avaliarem o trabalho desempenhado na Initech, que notamos a afirmação da política toyotista da empresa que visa, portanto essa captura da subjetividade de Peter e seus companheiros de trabalho, tendo como objetivo uma integração do pensamento dos “colaboradores” aos interesses da empresa, como se ambos fossem portadores de interesses comuns.

 



Tais ferramentas de gestão utilizadas pelas empresas toyotistas de trabalho se valem da mobilização do que, em psicanálise, é chamado de ideal de eu. Trata-se de simplificar ao máximo, daquilo que temos de alcançar de qualquer modo para nos sentirmos completos, realizados. Bendassolli (2009) diz que a dinâmica do ideal de eu é ditada por estratégias como a transação em que a organização promete compartilhar com o indivíduo seu sucesso.
É o caso quando Bob Slydell (John C. McGinley) e Bob Porter (Paul Willson), os dois consultores contratados por Bill Lumbergh, são introduzidos na história com o intuito de avaliarem os desempenhos dos trabalhadores da Initech. Normalmente a literatura da gestão capitalista coloca a figura dos consultores de empresas como “gurus” recheados de cursos e especializações, dotados de um saber incontestável e que geralmente têm as respostas para todo tipo de problema relativo à organização da empresa toyotista. No filme em questão, os consultores são postos da mesma forma que os encontrados nas literaturas gerenciais, porém em nenhum momento sabemos de onde eles vêm, o que de fato atesta seus saberes e são ironicamente colocados como profissionais débeis, de pouca capacidade de simbólica, ignorantes e também sempre dispostos a gozarem do sofrimento alheio por meio das demissões de alguns funcionários.
“Bob´s - os consultores”: Bob Slydell (John C. McGinley) e Bob Porter (Paul Willson)

Segundo Gaulejac (2007), a maioria destes manuais de gestão desenvolve o pressuposto de que a organização é um conjunto de fatores em interação um com os outros, ressaltando-se um fator que apresenta problemas particulares: o “fator humano”. Daí a colocação em prática de um departamento especializado para lidar com este fator, chamado de “recursos humanos”, que tem suas características específicas bem expressas pelos dois consultores do filme. Conforme visto na atuação destes consultores, este “recurso humano” – o trabalhador - torna-se então um objeto de conhecimento e preocupação central da diretoria o que faz com que esta solicite os serviços “especializados” dos consultores. O triunfo da ideologia da gestão necessita de tais agentes para se legitimar e que buscam constantemente uma interpretação do trabalhador enquanto um agente ativo do mundo produtivo de forma que os improdutivos são rejeitados, como os casos dos amigos de Peter: Michael, Samir, Tom e Milton.

Portanto, o papel dos consultores na Initech vai de encontro com a idéia que a literatura gerencialista tem de “gestão de pessoas”, implicando em disseminação de valores, sonhos, expectativas e aspirações que emulem o trabalho flexível. Como vemos com o desfecho da trajetória de Peter na Initech, não se trata apenas de administrar recursos humanos, mas sim, de manipular talentos humanos, no sentido de cultivar o envolvimento de cada um com os ideais (e idéias) da organização.
A conclusão à qual os consultores chegam ao caso de Peter, é compatível com os ideais da nova empresa capitalista que busca homens idealistas e anseia pela juventude que trabalha, tendo em vista que os jovens operários e empregados têm uma plasticidade adequada às novas habilidades emocionais (e comportamentais) do novo mundo do trabalho. Sendo assim, Peter é o único dos funcionários da Initech que entra na sala para a reunião com os consultores de maneira desinteressada e lhes diz que se cansou de seu trabalho, pois não encontra mais sentido e motivações em fazê-lo. Os consultores passam por cima das opiniões do chefe de Peter, Bill Lambergh e encantam-se com ele por sua ousadia e sinceridade decidindo promovê-lo.

O trabalho de Peter é apreendido por ele então como um objeto social ou um fato social que faz parte de seu mundo e que ele têm de construir um repertório de significados mesmo sem querer fazê-lo. Bendassolli (2009) diz que o conjunto de crenças e conhecimentos sobre o trabalho influencia nas atitudes e posicionamentos que o indivíduo têm em relação a ele. Com isso, Peter passa a compreender seu trabalho não mais como algo do qual ele necessite para sua sobreviência, mas propõe uma inversão de papéis a partir da avaliação feita pelos consultores onde, agora é o seu locus de trabalho que necessita dele.
Ora, se dissemos acima que o tédio de Peter se dava por não encontrar motivações em seu ambiente exterior, a partir de então nosso protagonista abandona seu ideal de ego e o substitui pelo ideal do grupo, corporificando-se na figura de um líder, exemplo a ser seguido segundo Bob´s, os consultores. A escolha dos consultores pela promoção de Peter explica-se pelo o que Freud (1996) nos diz sobre a seleção do líder em um grupo, que é comumente facilitada por circunstâncias que envolvam que esse líder possua qualidade típicas dos indivíduos interessados sob uma forma pura, clara e particularmente acentuada, necessitando somente fornecer uma impressão de maior força e de mais liberdade de libido. Ou seja, por enfrentar os pressupostos culturais da Initech é que Peter é visto pelos consultores como este Ego Ideal.

O Ego Ideal, segundo Costa (1991) é dotado de um pensamento onipotente e de todos os poderes soberanos investidos narcisicamente tendendo a preservar a “imortalidade do ego” e aquilo que ele imagina ser a sua “essência”, no presente. Este ego ideal não reconhece o sujeito como sujeito da falta, tentando a todo custo manter “íntegra a representação da unicidade e continuidade do sujeito”, só aceitando um outro na medida em que este se apresenta como uma “reedição inflacionada de um traço de sua forma passada ou presente, isto é, um outro idêntico” (p. 120) logo, narcísico.
Peter Gibbons após sua promoção muda de postura tornando-se o Ego Ideal.

É guiado por esta imagem constitutiva do Ego Ideal que Peter, acossado por sentimentos de “impotência/desamparo” frente à realidade externa, desinveste sua libido dos ideais e dos objetos e aciona os mecanismos de autodefesa, refugiando-se neste ego narcísico. Por outro lado, o recurso ao Ego Ideal utilizado por ele consiste numa saída que envolve uma renúncia do enfrentamento da realidade e um fascínio por um “objeto-engodo” – no caso, o não-trabalho - que o encerra num pseudo-estado a-conflitivo mediante o processo de “idealização” deste novo caminho tomado.

A partir de então, Peter assume seu novo cargo dentro da Initech, o que não significa que tenha conseguido romper com o sistema do capital, mas sim tornar-se o funcionário “flexível” tão enaltecido pelas empresas toyotistas. Contudo, Peter permanece com sua revolta contra a companhia e propõe a seus colegas recém-desempregados, Michael e Samir uma sabotagem no sistema financeiro da empresa por meio de um vírus de computador criado e implantado por Michael que roubaria centavos das transações financeiras da companhia.

Após algumas desventuras no plano arquitetado pelos três cientistas da computação, Peter retorna a seu estado de ideal de eu como um ser que tem o desejo de uma vida digna e com um trabalho que lhe traga significado. Desta forma, o filme tem um desfecho original colocando uma vitória pessoal de Peter frente ao Sistema representado pela Initech, pois nas palavras do próprio protagonista, “A Initech é errada. A Initech é uma corporação má”.

Antes de concluirmos este ensaio faz-se necessária incluir a participação da personagem “Milton” (Stephen Root) que além de ser o título original das tiras animadas criadas por Judge e que inspiraram Office Space, é também a personificação do trabalhador já acometido por patologias muito provavelmente oriundas desta forma de organização e de divisão do trabalho da empresa toyotista. O exótico Milton é um funcionário da Initech que foi despedido há cinco anos antes do tempo em que se passa o filme, só que devido a problemas no setor financeiro da companhia ele continuou indo ao trabalho e a receber seu salário normalmente. Milton apresenta uma fala difusa, déficit de atenção quando alguém se refere a ele durante um diálogo e tendências psicóticas ao sempre reproduzir a mesma fala: “eu poderia colocar fogo nesse prédio”. A história de Milton não nos é contada durante o filme, porém somos incitados a pensar que seu estado físico-mental atual é resultado das pressões psicológicas que ele tenha sofrido durante sua vida dentro da Initech, bem como por conta de seu processo de pseudo-demissão.

Enfim, guiado por Bob´s, os consultores, Bill Lambergh decide apenas cortar o salário de Milton, mas deixá-lo trabalhando para sua própria diversão, bem como dos consultores. Sendo esse o fator “gota d´agua” para Milton este decide finalmente atear fogo à Initech. O episódio incendiário é comemorado por Peter quase como a um gozo, que também o vê como uma forma de “redenção” devido ao roubo que haviam feito com o vírus de Michael. Sobre as ruínas da Initech, Peter vê outra oportunidade de encontrar um trabalho que lhe confira um significado pessoal indo trabalhar recolhendo os destroços da empresa ao lado de seu vizinho Lawrence (Karl Driedich Bader).

Por fim, as considerações aqui feitas sobre “O insustentável peso do trabalho” não esgotam a possibilidade de surgirem outros elementos para diferentes análises do mesmo, podendo, através de outros olhares, serem apreendidas novas pistas que auxiliem na compreensão da sociedade burguesa e do sócio-metabolismo do capital.

Referências Bibliográficas
ALVES, Giovanni. Cinema e Trabalho – O mundo do trabalho através do cinema. Londrina: Editora Praxis, 2006.
BENDASSOLLI, Pedro Fernando. Psicologia e Trabalho – apropriações e significados. São Paulo: Cengage Learning, 2009.
BOLTANSKI, Luc, & CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. Tradução Ivone C. Benedetti; revisão técnica Brasílio Sallum Jr. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
COSTA, Jurandir Freire. “Narcisismo em tempos sombrios”. In: Tempo do desejo: sociologia e psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1991.
DEJOURS, Cristophe. A Loucura do Trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez-Oboré, 1991.
FREUD, Sigmund. “Psicologia de grupo e análise do ego”, Volume XVIII. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.
GAULEJAC, Vincent de. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. São Paulo: Ed. Idéias e Letras, 2007.
MARX, Karl. O Capital – Crítica da Economia Política, Livro 1, Editora Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1988.
SVENDSEN, Lars. Filosofia do Tédio. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
SOBOLL, L.A.P., BENDASSOLLI, P.F. (orgs.). Clínicas do Trabalho. São Paulo: Atlas, 2011.

 

Bruno Chapadeiro Ribeiro é Psicólogo pela UNESP – Assis. Durante a graduação fundou o Projeto “Cine CAPSIA – a linguagem cinematográfica como associação livre” vinculado ao Centro Acadêmico de Psicologia da UNESP - Assis. Atualmente é Mestrando em Ciências Sociais pela UNESP - Marília com a pesquisa: “Trabalho e Gestão através do Cinema”; atuando também com o Projeto “Tela Crítica” da mesma universidade.
E-mail: brunochapadeiro@yahoo.com.b
r