A Falência da Razão Ocidental


"2001 - Uma Odisséia no Espaço" (Stanley Kubrick, 1968)
e "Apocalipse Now"
(Francis Ford Copolla, 1979)

 

 

O que possuem em comum essa ficção científica que levou o gênero (e com ele o próprio cinema) a outro patamar, e esse outro que é o mais bem realizado filme de guerra de todos os tempos? Além de ambos serem obras de grandes diretores e figurarem entre os melhores filmes de todos os tempos, ambos são filmes de gênero que ultrapassam os limites deste. Seus diretores procuram romper com a distinção muito marcada então entre um cinema autoral e um cinema comercial. As obras cinematográficas autorais seriam realizações orgânicas de um eu expressivo que escapariam a qualquer delimitação de mercado. Assim, obras de cineastas como Fellini, Godard, Truffaut, Pasolini, Renais, Antonioni escapariam a qualquer classificação de gênero ou por ser expressão de uma subjetividade singular ou por declaradamente se contrapor a limitações exteriores de cunho mercadológico. Partindo dessa concepção, a genialidade de um autor é medida pelo grau de sucesso que este alcança em construir um universo único e singular para o qual o público precisa cria novos instrumentais de compreensão. São obras que se constroem a partir do afastamento do lugar comum, e estabelecem com o público um pacto original, via linguagem. Não raro, essas obras não fazem sucesso de público, o que muitas vezes é usado para justificar seu brilhantismo.

Por sua vez tanto Kubrick quanto Coppola pertencem a outro gênero de cineastas (juntamente com Scorsese, Hitchcock, Billie Wilder), que não se furtam a fazer cinema para vender ao grande público, mas que nem por isso abrem mão de se colocar enquanto autor. Todos fazem filmes de gênero – a possibilidade de classificação é um requisito básico da indústria cinematográfica – estabelecendo já de início com o público uma via comum de entendimento. Não faltam em 2001 referências a um futuro de desenvolvimento tecnológico avançado, inteligência artificial, vidas em outros planetas, viagens intergaláticas e um especial cuidado com a verossimilhança próprio dos filmes de gênero. Em nenhum momento o filme deixa dúvidas de que estamos no futuro (e na pré-história). Não à toa o filme foi pensado em conjunto com Arthur C. Clark, consagrado autor de livros de ficção científica. Assim como em Apocalipse não irão faltar combates, inimigos, conflitos humanos, explosões e realismo. Ao mesmo tempo, o diferencial desses filmes está justamente naquilo que os afasta dos clichês dos gêneros, sendo cada um a seu modo um mergulho no interior da experiência humana e um questionamento de seus limites. Ambos fazem um cinema alegórico de gênero, que traz em comum, a partir de perspectivas distintas, a discussão sobre a falência do projeto Ocidental de racionalidade.

2001 – Uma Odisséia no Espaço (1968)

A primeira parte do filme se passa na pré história, onde nossos parentes mais próximos tem que se virar com problemas siamescos típicos, como fugir de predadores e lutar por território. A vida é retratada aqui como luta, e o futuro homem encontra-se até então em situação de desvantagem. É então que entra em cena o monólito negro, um instrumento de comunicação alienígena que será o ponto de sustentação do enredo. Emitindo estranhos ruídos (e nada poderia ser melhor do que a música esquisitona do Ligeti), o objeto acaba por fornecer aos primatas a chave da civilização: o instrumento, o domínio da técnica a partir da qual irá se constituir a noção de trabalho com a qual finalmente os primatas poderão se separar da natureza para se tornarem homens.

A descoberta da ferramenta possibilita um salto evolutivo sem precedentes, e que irá se desenvolver no filme em duas direções complementares. Munido desses instrumentos, os primatas podem transformar objetos naturais para lhe fornecerem funcionalidade humana e ao mesmo tempo subjugar as feras da quais tinham sempre de fugir. Transformação pelo trabalho e dominação da natureza: a ferramenta irá possibilitar ao homem um domínio sobre o mundo natural que fará dele seu senhor a partir de então. Quase que imediatamente, porém, e aí a tese principal do filme, esse avanço revela seu pólo negativo, e após matar o grande felino, o homem se volta contra sua própria espécie na luta territorial. O avanço técnico que permite o salto evolutivo criador da civilização imediatamente se torna instrumento de dominação que no limite irá separar os homens de seu próprio conceito. A técnica se constitui na negação do humano, e a civilização (seu avanço técnico) comporta em si a barbárie. Ao constituir seu conceito de civilização a partir da negação do natural, o homem passa a excluir o que há de natural em si mesmo, e a se separar do que existe de vida em si. Teriam os alienígenas previsto esse desdobramento?

 

Na seqüência o filme realiza o maior salto temporal da história do cinema e a ferramenta do primata vencedor se converte em uma nave espacial de última geração. O paralelismo é inevitável, e um momento é o desdobrar lógico do outro. Qual o tipo de humanidade foi construída partir daqueles princípios expostos na aurora do homem? Uma civilização estéril constituída por personagens que se afastaram do que neles havia de humano. Todos os homens de Kubrick em sua fase madura são cascas de civilidade (bem tipicamente ingleses), criaturas estéreis cuja gestualidade vazia se tornou ritual. Todos são Laranjas Mecânicas. Basta nos lembrarmos dos diálogos e movimentos de Barry Lindon, De olhos bem fechados, O Iluminado, 2001. São todos planejados para se esgotar neles mesmo, gestos interrompidos que são pura forma. Mas apesar de recalcada, a natureza reprimida em nome da civilização não desaparece, e Kubrick focaliza o momento exato em que ela retorna violentamente como horror, seja na figura de um computador assassino, de um surto psicótico de um pai de família ou de um baile dionisíaco absurdo.

O homem cria desse modo todo um mundo cuja conseqüência lógica é se tornar obsoleto e desnecessário. A tragédia não é que HAL está louco, mas sim que está certo. O ritmo demasiadamente lento do filme, principal motivo de reclamações contra esse, está plenamente de acordo com aquilo que pretende demonstrar. Nessa segunda natureza criada pelo homem, todas as coisas estão contra ele, que volta a se comportar como uma criança. Ele tem de reaprender a andar, a comer e até a usar o banheiro. Todas as funções importantes daquele mundo são controladas por HAL, que inclusive é o único a saber a real finalidade da missão. Tanto são desnecessários que a maior parte da reduzida tripulação permanecem hibernados. O homem é um ser completamente alienado, reduzido a função de técnico de manutenção, subjugado pelas ferramentas por ele mesmo criadas. A diferença deste filme com os muitos outros que trazem o tema da dominação do homem pela máquina é que esse não vai focalizar no embate entre o homem e seu opositor, mas em como esse mundo de negação do humano é humano a seu modo.

A personagem mais humanizada do filme, única preocupada com assuntos mais ligados ao campo das emoções, é o computador HAL. Em vários momentos o filme torna subjetiva a perspectiva do computador, como quando este é mostrado espiando a conversa dos dois astronautas. Sua “morte”, brilhantemente filmada, é o momento mais comovente do filme. Cada componente seu que é desligada é um retrocesso do homem em direção a ele mesmo. Não a toa, Dave enfrenta o todo poderoso HAL com uma simples chave de fenda, e ao final temos um retrocesso evolutivo que irá conduzir a parte final da história, o encontro do homem com o monólito negro em Júpiter. É nesse momento em que o homem está só consigo mesmo no espaço é que pode dar o próximo salto na evolução, a partir do reencontro com aquilo que havia sido colocado em segundo plano: ele mesmo. A natureza humana em seus momentos mais extremos, de vida e morte. Kubrick constrói assim uma obra de ficção científica negando alguns dos principais pressupostos do gênero. Desse modo, ao invés de frisar o avanço técnico do homem, ou a superioridade do homem frente a máquina, ele vai procurar demonstrar como o próprio avanço é já uma regressão, no sentido de que este passo a frente se dá na negação de uma dimensão que lhe é essencial. O que fica em aberto é se essa Odisséia da razão tem um caráter de necessidade ou foi fruto de uma falha de planejamento. Ou seja, tudo já estava dentro dos planos do monólito ou houve uma falha no percurso da humanidade que pode ser corrigida? Podemos ter esperanças no futuro?

Apocalipse Now (1979)

O fracasso do projeto de civilização do Ocidente é também tema do filme de Coppola. Mas aqui a discussão não se dá a partir da tecnologia (tema caro à ficção científica), e sim do absurdo da guerra do Vietnã. O filme conta a história do capitão Willard, que recebe missão de subir o rio rumo ao Camboja, em busca da trilha do coronel Kurtz, uma das mais brilhantes mentes do exército – o exemplar perfeito da racionalidade Ocidental – que aparentemente teria enlouquecido, se deixando adorar como a um Deus frente um exército formado por homens primitivos. A jornada do filme (e aí seu diferencial) será a um só tempo física, rio acima, e existencial, um mergulho no coração das trevas da mente humana e dos horrores da guerra. E a pergunta que ecoará por toda a história é: terá mesmo enlouquecido o general Kurtz, ou este finalmente encontrou o sentido oculto não só daquela guerra, mas de todo projeto de civilização do Ocidente. Pois seria ele outra coisa que não o desejo mal disfarçado de tornar-se Deus?

 

 


A medida em que o barco vai atravessando o rio, Willard vai cada vez mais compreendendo o dilema de Kurtz, e se descobrindo cada vez mais como um espelho desse. Pois a grande tragédia de Kurtz, que é a tragédia de toda a civilização, é que ele se converte num selvagem idólatra e pagão não por renegar a civilização, mas por levar o seu projeto e contradições até as últimas conseqüências. A narrativa é magistralmente conduzida por Copolla, que nos vai conduzindo no meio daquela guerra levado a cabo por jovens que não fazem a menor idéia do porque estão combatendo, seguindo generais que atacam movidos por um desejo de surfar, para quem a guerra muitas vezes se confunde com uma grande balada regada a sexo, drogas, rock n’ roll e morte. E quanto mais o barco avança para o interior do horror, mais selvagem (o condutor do barco é morto por uma flecha) e absurdo aquele universo se mostra. Em todos os lugares por onde passa Willard pergunta quem está no comando, e a cada avanço a gargalhada que serve de resposta se torna mais insana e deseperada. A medida em que o barco avança em meio a batalhas absurdas, a homens infantilizados que se matam pelos motivos mais banais, e que se tornam ainda mais horríveis porque não existem outras motivações, quanto mais o vazio e a ausência de sentido avançam rumo a um estado primitivo e animalizado, mais a figura de Kurtz vai revelando a Willard o quanto todo aquele horror possui um sentido, o quanto o horror faz parte do próprio projeto da humanidade. A barbárie que ele encarna é o próprio sentido da civilização.

 



A pergunta de Kurtz, como excelente oficial, é simples e direta: como podemos vencer a guerra? Para responder, existe uma pergunta anterior, e que é sua perdição: porque estamos lutando? A resposta que ele encontra e da qual se torna a encarnação (e por seu aspecto de revelação é que o exército precisa destruí-lo) é que o projeto da racionalidade construído a partir da negação da barbárie mítica conduz o homem à uma outra mitologia ainda mais violenta. As cenas iniciais do filme já contem todo seu desenvolvimento posterior. Uma floresta (natureza) é destruída por um conjunto de helicópteros (tecnologia) ao som de Jim Morrison berrando “This is the end”, na seqüência é sobreposto um plano em que Willard está olhando para o ventilador de teto, estabelecendo uma equivalência entre a destruição da guerra com o vazio do sujeito. Destruição do ser e destruição do mundo são colocados como equivalentes. Em dado momento Kurtz afirma: “Generais permitem que os jovens matem, mas não os deixa escrever fodam-se nos aviões, porque é obsceno”. A razão, em nome da decência, compactua com a morte. Kurtz, militar exemplar, quer desfazer a ambigüidade, pois só assim pode de fato vencer. Sua resposta é abraçar o horror, compactuar com o horror, deixando claro, afinal, do que se trata. Ao fim da jornada rio acima ficamos sabendo que todo aquele absurdo que acompanhamos não é a negação da razão, mas a realização máxima de seu projeto.

 

Acauam Silvério de Oliveira
Mestre em Teoria Literária e Literatura
Comparada pela Universidade de São Paulo

 

 

 


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