“Amistad” de Steven Spielberg


(2001)

 

Um prego arrancado da madeira num ambiente escuro e chuvoso tendo como fundo o som de gemidos desesperados, marcam a ambientalização inicial do filme Amistad. O filme narra a história de um navio espanhol com escravos que, em 1839, sofreu um motim e foi dominado pelos africanos, mas desconhecem navegação e se vêem obrigados a confiar em dois tripulantes reféns, que os enganam e fazem com que, após dois meses, sejam capturados por um navio americano, quando desordenadamente navegaram até a costa de Connecticut.

Neste ponto, Amistad se transforma em um filme de tribunal. Os africanos são inicialmente julgados pelo assassinato da tripulação, mas o caso toma vulto e o presidente americano Martin Van Buren, que pretende ser reeleito, tenta a condenação dos escravos, pois agradaria aos estados do sul e também fortaleceria os laços com a Espanha, pois a jovem Rainha Isabella II alega que, tanto os escravos, quanto o navio, são seus e devem ser devolvidos. Mas os abolicionistas vencem, e no entanto o governo apela e a causa chega a Suprema Corte Americana. Este quadro faz o ex-presidente John Quincy Adams, um abolicionista não-assumido, sair da sua aposentadoria voluntária para defender os africanos.

Em primeira instância, provou-se que a tripulação negra era composta por indivíduos livres, seqüestrados e transportados da África à Cuba, em um navio português (Tecora). Como forma de burlar o tratado de 1817, entre Portugal e Inglaterra, em que se proibiu o tráfico de escravos para colônias espanholas, foram utilizados documentos falsos que certificavam a proveniência dos escravos de fazendas cubanas. Determinou-se que a tripulação do Amistad retornasse para a África, pois todos haviam nascido livres. O governo apelou para a Suprema Corte, composta por nove juízes, sete dos quais tinham ou haviam tido escravos. Em março de 1841, a suprema corte americana decidiu que todo ser humano tem direito, em casos extremos, de resistir contra a opressão e de usar força contra aniquiladora injustiça. Os africanos haviam utilizado esse direito contra a escravidão ilegal, considerada pelas próprias leis da Espanha e assim, estavam livres para ficar ou para retornar à África.

De forma geral, o filme faz alusão ao ideário americano de justiça e liberdade baseado no individualismo liberal burguês que legitima a propriedade e a diferença de posses, pois atribui ao indivíduo, ao esforço e iniciativa particular deste, o mérito pelo que possui. Nesse sentido, o “ter” é legitimado pelo mérito e o indivíduo encontra-se “livre” no mundo para fazer o melhor por si mesmo.


O liberalismo é uma doutrina que enfatiza a importância das liberdades individuais na composição de uma sociedade equilibrada. Para os liberais, os homens devem ser livres para agir conforme bem entenderem, crendo assim, ser possível promover a eficaz satisfação de suas necessidades. Apesar de estar presente no pensamento de homens de alguns países desde meados de século XVII, a teoria liberal é consistentemente formulada por Adam Smith no século XVIII, onde é apresentada a idéia de que cada um, buscando o melhor para si, estará promovendo o progresso da coletividade, fenômeno o qual é definido pelo autor como controlado por uma “mão-invisível”. É comum reduzir-se o paradigma liberal à célebre frase “laissez-faire, laissez-passer” (deixe fazer, deixe passar) tão utilizada pela burguesia comercial, mas o liberalismo tem implicações que ultrapassam esse princípio. A origem do liberalismo está ligada ao desejo de certos homens em limitar a interferência da Igreja e principalmente do Estado nas suas vidas e negócios particulares. Esta é a gênese do Estado Democrático Liberal que, com sua divisão tripartite dos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), é modelo básico ainda adotado pelos Estados contemporâneos.

Salvo exceções, o filme junta-se ao conjunto característico da cinematografia hollyoodiana, incapaz de romper com a binominalidade de sua forma burguesa de compreensão de realidade social, onde se apresenta a “revolta”, mas não a “revolução”. Ou seja, ao remeter ao indivíduo (nesse caso atribuído ao poder executivo e judiciário – retirando dos personagens o protagonismo na estória), não vai além de delimitar os binômios “mocinho-bandido”, “certo-errado”, “bem-mal”. E, como não poderia deixar de ser, em sua tradicional linearidade de decupação clássica, o bem vence o mal, a saber, a justiça (americana) de forma dissociada e independente, prevalece sobre os interesses do então poder executivo.

Amistad é imbuído de forte conteúdo político-ideológico que estrutura a estética de seu objeto. Mas afinal, que obra de arte não é política ou pode ser considerada neutra? Isto é, observando a característica imanente a toda obra que é a de realizar a síntese de seu tempo e por esse motivo, qualquer obra artística, por mais abstrata que seja, será necessariamente construída num determinado momento histórico e conforme as condições materiais concretas existentes e ao alcance de seu construtor. Em outras palavras, tanto seu conteúdo como sua forma serão elaborados e concretizados dentro de limitações espaço-temporais.. Em outras palavras, a arte sem ideologia é vazia, não tem ‘simbolismo’, um referente que a carregue de significado.

O uso do cinema como instrumento de propaganda ideológica não é novidade. A história do cinema é repleta desses casos. Desde o cinema revolucionário russo de Serguei Eisenstein, ou os filmes de "purificação da Alemanha", realizados pela máquina estatal de Hitler ou ainda nos diversos filmes realizados pela indústria cinematográfica norte-americana (em grande parte patrocinado pelo governo dos EUA), a exemplo do recente Pearl Harbor que, quase 80 anos após os clássicos de Eisenstein, chega às margens de justificar as bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki.


Muito além de tratar a questão da escravidão, o filme busca legitimar uma determinada compreensão do conceito de liberdade e democracia. Se liberdade resume-se meramente à igualdade política entre as pessoas (legado da revolução burguesa), pode-se então acreditar no chavão que o cinema norte-americano tem exaustivamente apelado para explicar sua ordem social: “Este é um país livre” – o que, obviamente, remete a todos os países que se encontram sob este mesmo modelo político-social.

Por outro lado, se formos capazes de ultrapassar esses conceitos (historicamente construídos), poderemos compreender que não somos (mundo ocidental) tão livres e democráticos assim. Aliás, liberdade é um termo bastante relativo. Somos livres para quê? Escolher entre Pepsi e Coca-Cola?

 

Arakin Monteiro,
é graduando em Ciências Sociais da UNESP-Marília
(2005)