“A Conversação ” de Francis Ford Coppola
(EUA, 1974)

 

 

 

A linguagem áudio-visual é, por excelência, uma linguagem do mundo moderno – (e já chegamos a uma época em que esta linguagem é cada vez mais produto de máquinas de informáticas ou cibernéticas que penetram e motivam horizontes da vida social como um todo).

O cinema é no presente um grande sistema simbólico de produção e reprodução de conteúdos acerca do mundo. Bem sabemos, ele tanto desperta e realiza reflexões intelectuais e estéticas como pode servir para a apropriação, homogeneização e controle dos comportamentos dos indivíduos.

Ansiamos aqui construir um ensaio crítico a partir da análise fílmica da obra “The Conversation”, produzida por Francis Ford Coppola. Nossa oportunidade é, acima de tudo, lançar questões sobre a questão da técnica no mundo contemporâneo através das provocações que suscitam uma ‘leitura’ aprofundada do filme.

O filme de Coppola, da maneira como interpretamos, exibe uma marca cada vez mais própria da contemporaneidade: a da razão utilitarista e tecnicista que dirige os indivíduos. Uma racionalidade limitada ao pensar científico-tecnológico traz o problema do comando humano de suas dimensões morais e existenciais. Coppola é, desde os primórdios, sensível às profundidades dos impasses que a modernidade acarretou ao homem. Quem acompanhou sua filmografia pôde assistir a filmes como “O Selvagem da Motocicleta” (Rumble Fish), de 1983, ou “Apocalypse Now”, de 1979, que fortemente expressam, por assim dizer, o tema da crise moral-política da modernidade e as irracionalidades presentes nela. Coppola admirava e foi considerado “produtor executivo” do filme “Koyaanisqatsi: Life out of Balance” (EUA, 1982, Godfrey Reggio): um dos mais indicados filmes para a reflexão sobre a tese do “determinismo tecnológico”.

Se as novas tecnologias, como pensam os filósofos contemporâneos, autorizam colocar a distinção entre máquinas e seres vivos – humanos ou não – em um nível de mera questão de semântica, isto expõe problemas filosóficos em diversos campos como da ética, estética, antropologia (possivelmente seria melhor dizer em todos os campos da filosofia...). Na verdade, a filosofia, desde o início do século XX, dirige questões filosóficas a respeito de temas como o racionalismo tecnológico, a tecnocracia e a decadência cultural e ética, a produção de simulacros, de realidades virtuais e de diversas transformações espaços-temporais que alteram as formas de consciência humanas. Estamos aqui ponderando sobre o que encontramos em pensadores como Spengler, Simondon, Marcuse, Stiegler, Heidegger, Virilio, Deleuze, Ortega y Gasset, entre outros.

“The Conversation” é, sem dúvida, uma grande base para pensar a relação homem-máquina. E a tarefa de análise do drama fica bem mais interessante e difícil se explorada neste aspecto. Tanto o roteiro como os temas tratados são intencionalmente complexos para levantar muitas facetas. O diretor não lança mão de trabalhar e unir uma tensa trama investigativa com um personagem introspectivo e em crise com seu papel social ‘sujo’: o de um grande detetive privado. O resultado é um genial e convincente filme (ao ponto de gerar atitudes interpretativas do universo temático atingido: coisa constante em obras-primas). Reiteramos então a vontade de interpretá-lo, sem tomarmos tempo demais para contar a ‘sinopse’ para quem não assistiu o filme.
A década de 1970 marca, talvez, o apogeu e a crise do mundo da ‘espionagem’. The Conversation está imerso no centro de uma questão histórica dos EUA – os grandes escândalos de espionagem (como o de Watergate) são dessa época. E o envolvimento (de diferentes formas) de eminentes políticos e empresários no mundo da espionagem ajudou a trazer a nossa sensação moderna de que “nada é mais privado”. De que há, por exemplo, um grande ‘negócio’ para o capitalismo tornar as “coisas íntimas” cada vez mais expostas, expressas – colocando os estilos de vida na moda.


Relembremos um pouco o drama. Harry Caul (Genne Hackman), o espião protagonista do filme, vive em uma esfera de fragilidade psicológica e social degradante. E Coppola introduz com inteligência e dramaticidade a crise ética experimentada pelo espião. Harry é um bem-sucedido e famoso entre os seus pares. Este profissionalismo e respeito entre seus companheiros de trabalho tornavam-o, pois, imerso na ignorância de qualquer questionamento a respeito de seu trabalho.

Tudo muda quando ele descobre os “motivos” (na realidade, suposições, pois este será um grande mistério) da investigação de um casal de jovens em uma praça pública da qual ele foi contratado. Coppola, em cenas magistrais, cria uma espionagem em praça pública. Aparelhos tecnológicos diversos – radares, câmeras, captadores de vozes, gravadores – produzem uma atmosfera da espionagem logo no início do filme. Uma equipe, comandada pelo espião Harry, realiza com sucesso a captura de diálogos do casal Ann (Cindy Willians) e Mark (Frederic Forrest) na praça abarrotada de pessoas!

A rotina do cuidadoso espião em suas pesquisa e tratamento dos materiais coletados é mostrada de forma sutil. Coppola, como que seduzido pela trama ‘policial’ e, aparentemente, inspirado por obras como “Blow-up” e “Psicose” (de Antonioni e Hitchcock, respectivamente) desmiuça a vida profissional e íntima do personagem dentro de um suspense crescente. O espião passa a fazer confidência, a buscar redenções e, principalmente, a tentar interromper o possível assassinato do casal – em meio a uma situação em que ele próprio também já está sendo vigiado...

A gravação da conversação de Ann e Mark traz revelações aterradoras. Ann é filha do grande empresário que contratou a espionagem. E Harry passa a crer na “inocência” e “consciência política” de Ann e Mark. Uma tempestuosa autocrítica fica cada vez mais explícita. A “conversação” que entra vertiginosamente na cabeça de Harry é a seguinte:

Ann: Oh look, that's terrible.
Mark: He's not hurting anyone.
Ann: Neither are we.
Ann: Oh God! Every time I see one of those old guys, I-I always think the same thing.
Mark: What do you think?
Ann: I always think that he was once somebody's baby boy...and he had a mother and a father who loved him. And now, there he is, half-dead on a park bench and where is his mother or his father or his uncles now? Anyway, that's what I always think.

Ann: Oh, olhe, isto é terrível [olhando para um mendigo].
Mark: Ele não está machucando ninguém.
Ann: Nem nós.
Ann: Oh, Deus! Todas as vezes que vejo um desses velhos, eu - eu sempre penso a mesma coisa.
Mark: O que você pensa?
Ann: Eu sempre penso que ele foi uma vez algum garotinho... e ele tinha uma mãe e um pai que o amava. E agora, lá está ele, quase-morto em um banco de praça e onde está sua mãe e seu pai ou tios agora? Pois bem, é isso que eu sempre penso.


Na exposição dos valores e individualidade de Harry, temos a revelação de suas manias, crenças religiosas, falência amorosa e solidão. Coppola é persuasivo. Deixa claro um forte olhar crítico ao processo de degradação do indivíduo na metrópole moderna. O desvelamento da ‘alma’ deste personagem dentro da cultura urbana americana torna-se um dos pontos altos do filme: é o olhar de Copolla frente à destruição de valores humanos como preço do progresso material no espaço urbano.

 

 



Não obstante, o filme enreda, in crescendo, a tensão espiritual do espião e sua experiência desgostosa de estar sendo também espionado. A incoerência de seu mundo individual e social é totalmente despida quando ocorre a derradeira e patética confissão de Harry em uma Igreja católica. Ele quer se justificar assim ao padre: “Padre, eu não sou responsável... É o meu trabalho... Mas as pessoas se machucam pelo que faço. Eu peço perdão”. Harry Caul vive em um mundo em que seus valores ético-religiosos não podem mais ser apresentados sem contradição com seus atos. A inesperada cena em que Harry está na uma Igreja e se dirige ao padre para realizar sua confissão traz uma fala que também é significativo destacar. Ela é a seguinte:
“Bless me Father for I have sinned. Three months since my last confession. I - these are my sins. Took the Lord's name in vain on several occasions. On a number of occasions, I've taken newspapers from the racks without paying for them. I've - deliberately taken pleasure in impure thoughts. I've been involved in some work that I think, I think will be used to hurt these two young people. It's happened to me before. People were hurt because of my work and I'm afraid it could happen again and I'm - I was in no way responsible. I'm not responsible. For these and all my sins of my past life, I am heartily sorry”.

“Perdoe-me, Padre, pois eu pequei. Três meses desde minha última confissão. Eu – isto são meus pecados. Falar o nome de Deus em vão muitas vezes. Em inúmeras ocasiões, eu peguei jornais de bancas sem pagar. Estive – deliberadamente tomado de prazer por pensamentos impuros. Estive envolvido em alguns trabalhos que eu penso, eu penso que vai machucar estes dois jovens. Isto aconteceu comigo antes. Pessoas se machucaram por causa de meu trabalho e estou com medo que isto aconteça de novo e eu – eu não fui o responsável. Eu não sou responsável. Por este e todos os meus pecados de minha vida, eu de coração peço perdão”.

Temos então o que nos tenciona a enfatizar nesta análise fílmica: a forma inconsciente com que Harry encara sua profissão. Ele quer entender a si mesmo como sendo igual as suas máquinas modernas: um meio, um instrumento, que não define nenhuma finalidade ou ato moral em si, e, por conseguinte, não tem qualquer responsabilidade pelo que venha a ser feito com o produto de seu trabalho. O espião vive na ilusão de ser um “técnico”, isto é, na posição de uma simples utilidade maquínica, e não um ser humano. Isto parece ser o que Coppola trabalha mais sensivelmente.

É interessante lembrar aqui a crítica exposta por Herbert Marcuse na obra “A Ideologia da Sociedade Industrial”. Ele é quem melhor sentenciou que o mundo objetivado (da racionalidade científico-tecnológica) separa-se e contrasta com o mundo subjetivado (dos valores). Nesta separação e contraste: bem e belo, paz e justiça “não podem ser extraídos de condições ontológicas ou científico-racionais; não podem, logicamente, invocar para si validez e realização universais” (MARCUSE, 1978, p. 143). Em última instância, concluía Marcuse, a sociedade industrial traz a dependência à “ordem objetiva das coisas”. E o controle social se resolve através do meio tecnológico: ele é introjetado não apenas através da tecnologia, mas como tecnologia, servindo-se a-politicamente e legitimado “racionalmente” (idem, p. 154).

Para Harry, o status da técnica é da neutralidade. Está cego ao “valor político” dela, dando às costas para o trabalho “sujo” em que ele acaba realizando para a sociedade (e devemos nos perguntar aqui: há algum ato de espionagem que seja justo?). A sorte é que, como em todo bom filme, não há esteriotipações, escatologias e formalismo. Não obstante, o personagem se mostra de uma constituição humana ímpar, o que provoca a conivência nossa com a tragédia de Harry. Coppola atinge, aliás, a expressão não-forçada, natural que prende e sensibiliza o público.

 

Cada vez mais constante é nosso encontro com a figura de um Harry. Com certeza, não somente na espionagem. Onde mora a Ética? A cegueira dos indivíduos ou a resignação sempre põe a resposta para um ‘lugar da ética’ longe de nosso mundo.

Contudo, no que diz respeito a espionagem, um discurso dispersa o filme. Se a década de 1960 foi, talvez, os ‘anos de ouro’ da espionagem nos EUA, a década de 1970 foi os de decadência. Foram também os anos da disseminação da espionagem para dentro dos EUA. Isto é, não mais restrita para fins geopolíticos estatal. Apareceram escândalos de todos os tipos: lavagem de dinheiro, lobbies, abusos e oportunismos diversos na administração pública. A espionagem foi quase sempre – como é ainda hoje – a fonte de “captura” das denúncias.

Com a modernidade-técnica, muita coisa mudou depois do imaginário ocidental criado pelo personagem literário clássico Sherlock Holmes, de Conan Doyle, escrito no século XIX, passou a figurar o imaginário ocidental. O detetive ‘particular’ hoje não tem mais o arquétipo de um genioso e excêntrico cientista que segue pistas com uma lupa, mas está bem mais próximo de uma “profissão” da modernidade como qualquer outra. Há, sem dúvida, uma história muito interessante a respeito da inserção do detetive na vida social, no século XX: na sociedade de controle e vigilância como a nossa. Podemos lembrar, por exemplo, como a proliferação das formas de investigação da CIA (Central of Intelligency Agency), durante a Guerra Fria, trouxe, na sociedade americana, dispositivos de investigação da vida social e íntima, com avançados e variados recursos tecnológicos. As cenas do “Workshop” no filme expõem impetuosamente isso.

Diga-se, de passagem, que o filme de Coppola nos deixa claro, por exemplo, que se em tempos atrás um poeta como Castro Alves poderia declamar que “a praça é do povo, como o céu é do condor”, hoje tal poeta já teria suas dúvidas. O filme é uma sutil crítica à sociedade de controle, que vigia o outro, que faz o inquérito e antecipação de julgamentos... Mostra, enfim, que o problema maior desta sociedade é a crise ética. E esta não irá se resolver com mais supervisões, câmeras, escutas telefônicas etc. O resultado de Harry é a frustração, o descrédito, o instinto de destruição, o desapego e a solidão.

Bernard Stiegler (2004), filósofo contemporâneo francês, merece menção aqui. É ele, pois, que investe na formulação crítica de que as atividades industriais criam tecnologias que apropriam, controlam e homogeneízam os comportamentos. Vivemos em um tempo em que consciências são determinadas por uma hiper-industrialização que controla tudo. A fabricação, reprodução, diversificação e segmentação das necessidades de consumo são ditadas. E a perda generalizada da subjetividade e caráter humanos é reinante. As máquinas, como previa Gilbert Simondon (1989), criam uma hipertelia própria no mundo moderno: as partes se autonomizam e quanto mais uma parte é usada mais ela se desenvolve em detrimento de qualquer outra subordinação. O problema é o homem estar cego para isso.

Harry é, enfim, vítima da vigilância eletrônica que ele próprio disseminou e agora desnuda sua vida privada. Se a “invasão de privacidade” é uma constante, o voyeurismo que há hoje nos espaços urbanos e virtuais não é outra coisa que senão a expressão da solidão radical de cada um de nós, tal como escrevia, em seus termos, Hanna Arendt. Ficamos à procura de compensarmos a desumanização e falta de afeto. Não mobilizamos, contudo, a capacidade de reflexão e aproximação crítica em relação à situação vivida. Não é à toa que a obra de Saramago, “Ensaio sobre a cegueira”, diz muito sobre o nosso tempo.

Cinemas como os de Coppola não deixam dúvidas: uma das grandes questões da Modernidade é a indefinição da responsabilidade social na implementação de novas tecnologias. A “ética da responsabilidade” dos escritos filósofos de Hans Jonas (1999) nos alerta para isso. Ética que vai além da busca individual de satisfação, que ultrapassa as idéias de felicidade estritamente materiais e egoístas – que pode preserva, pois, as condições futuras de felicidade em sociedade e cuidado com o mundo.

A que se notar, por fim, a divina trilha do compositor David Shire e de Jazz que, ao fundo, reforça toda a profundidade que o filme constitui. É com música de Jazz que, ao fim do filme, o detetive mostra toda a sua sensibilidade e a afirmação de que algo ‘muito horrível’ acontece em sua vida – uma verdadeira tragédia que envolve a destruição de seu próprio mundo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SIMONDON, Gilbert, 1989 [1959], Du mode d'existence des objets techniques. 2° edition, Paris: Aubier.

MARCUSE, Herbert, 1978 [1964], A ideologia da sociedade industrial. O homem unidimensional. 6° edição, Rio de Janeiro: Zahar Editores.
JONAS, Hans, 1999, Por que a técnica moderna é um objeto para a ética. Tradução de Oswaldo Giacoia Jr. In: Natureza Humana: Revista Internacional de Filosofia e Práticas Psicoterápicas. São Paulo, v. 1, n. 2, p. 407-420.
STIEGLER, Bernard, 2004, “Contribution à une théorie de la consommation de masse. Le désir asphyxié, ou comment l’industrie culturelle détruit l’individu”. Archives LE MONDE, Juin 2004. Acessado em 9/06/2008. http://www.monde-diplomatique.fr/2004/06/STIEGLER/11261.

 

Ednei de Genaro
Mestrando em Sociologia Política pela UFSC (2008)