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2001
– Uma Odisséia no Espaço, de
Stanley Kubrick
(1968)
Lá
pelo meio de 2001 – Uma Odisséia no Espaço,
filme clássico do genial Stanley Kubrick, em meio ao prenúncio
de desespero que a seguir se faria presente a bordo da nave, o que
chama a atenção é a candura sussurrante da voz
de Hal. O som sugere mais do que o próprio desenrolar das imagens:
não é uma voz metalizada – mais parece mentalizada,
com o timbre conclamando ou sugerindo uma calma e repouso sem tempo
de duração. A narração original, da voz
de Hal, sugere um apaziguamento demasiado, como se dissesse ao nosso
inconsciente: “— calma, você irá morrer,
mas será muito calmamente”. E como se ainda fosse consolar:
“— vai morrer dormindo, como no sonho de todo humano –
sem dor”.
Não há ira na morte, apenas seremos substituídos.
Não há vingança, só o aceno de que a substituição
pelo mecanismo é irreversível, irremediável:
“o melhor é morrer mesmo”; ou melhor, “você
está quase dormindo, em vigília, irá morrer ou
está morrendo aos poucos, conforme aceite o sono da morte”.
É sugestivo que ao final do filme a cena seja a de um astronauta
(aparentemente barbado, desgrenhado), quase levitando, formando imagens
que se fundem em sua inconsciência, surgindo idéias em
bolhas, fugidias, perdidas, desregradas, desprendidas: “como
se sem as máquinas, sem os mecanismos, a mecânica e a
técnica, só restasse o devaneio”. E nisso a profecia
de Hal irá se cumprir: “não me desligue porque
você irá morrer; mas, se não desligar, também
não estará morto?”.
Talvez o que se perca com Hal seja nossa inocência, pureza de
sentidos, ingenuidade em crer num mundo em que nossas próprias
criações sejam sempre boas, como se o humano fosse sempre
bem-vindo. Hal é a supermáquina do bem, a que provém
de tudo a todos, mas que se transforma em máquina de guerra.
A nossa própria guerra interior, oscilando entre o bem e o
mal: “Hal é nosso mais bem acabado sonho de grandeza”.
E por isso mesmo é capaz de revelar a maior pequenez: “todo
sonho de conquista é pequeno em essência, porque não
gera nada, não cria, não adiciona, apenas adere, adquire,
anexa”. É a soma-zero de que já falava Maquiavel.
A inteligência coletiva é a nossa 2ª pele, sim,
como toda a informática. Mas também é o desencantamento
do mundo de que falava Weber: a vida, as histórias, jamais
seriam as mesmas depois da descoberta do monolito (no filme) e depois
da descoberta da técnica na vida dos primatas (há um
milhão de anos).
Não é o macaco quem inventa a pedra lascada e depois
a polida. No longo curso da história dos hominídios,
são o Homo Erectus, o Homem de Neandertal e, por fim, o Homo
sapiens, quem seleciona, promove e implementa essa reconhecida inteligência
tecnológica de um milhão de anos, ou seja, a mesma idade
de Hal. O monolito negro também simboliza o uso da pedra como
artefato, instrumento, meio ou prolongamento dos sentidos humanos
(um martelo está para a mão cerrada, como a mão
espalmada sugere um golpe de faca, pérfuro-cortante).
Hal é princípio e fim. É o modelo cibernético,
o guia e a direção que ainda nos acompanha. Hal não
é farol, porque não ilumina; apenas indica. Hal é
a tecnologia política, sem pólo positivo ou negativo,
é o bem que provoca o mal, porque já o traz dentro de
si: se fosse unilateral a coisa mudaria de figura e, apesar de não
me parecer que seja esse o caso, as pessoas são livres para
entender de outra forma.
Hal é um elo que sempre nos ata, arrasta direto ao passado
que também não era, nunca foi, idílico. Por isso,
não é maniqueísta, estando para além do
certo e errado, nem simplista (se fiz isso, vai dar naquilo) e muito
menos idealista (a inteligência artificial é nosso futuro
ou já é presente). Também não é
superficial: “quem quer ser um Hal ou tê-lo por perto?”.
Mas, ao contrário de nosso homem-macaco - do período
do monolito e anterior, portanto, ao neolítico - Hal não
é suficientemente social, não foi criado para a interação,
para o grupo, para partilhar qualquer coisa que seja, simplesmente
porque não é solidário. O que sugere essa afirmação
é o fato de se terem encontrado esqueletos de hominídeos
com múltiplas fraturas – sugerindo, assim, que havia
ajuda mútua no tratamento e na recuperação dos
enfermos e acidentados. Pois, de outra forma, é óbvio,
não teriam sobrevivido.
Não fosse pela voz suavizada, aveludada, Hal não seria
antropomórfico (a nossa imagem e semelhança, como o
Robô, de Perdidos no Espaço), porque a sonolência
é a mesma que nossa mãe ou avó nos proporcionava
quando bebês. De outra forma, no entanto, Hal é antropomórfico:
“porque é vida e morte, nosso ciclo perpétuo,
nossa consciência de incompletude, nossa fraqueza de espírito
– desejo infinito de posse e propriedade -, porque como os únicos
animais sabedores da morte, somos incapazes de detê-lo”.
E Hal sempre estará aí para nos lembrar disso tudo -
a nós, animais fracos e imperfeitos, diante da lógica
matemática e simétrica da linguagem das máquinas.
Hal não é inteligência artificial, é a
inteligência tecnológica, do passado para o fututo e
vice-versa: “somos nós e, por isso, não pode ser
artificial. É real: do monolito à rede mundial dos computadores”.
Ou será que o monolito é a rede, a web de que falamos
hoje? Uma consciência cósmica ou espécie de esforço
sideral?
Um esforço sideral capaz de reunir as forças cósmicas
espalhadas pelo universo iria além da força cinética,
entre os astros. Assim, se religado, Hal será obediente às
forças siderais, será capaz de desvendá-las para
ele mesmo? E para nós, que surpresas traria ao nosso conhecimento
se estivesse ao deus dará ou sob seu próprio comando
no infinito labirinto do cosmo?
Então, por que Hal? Certamente, um questionamento que deve
ir além das inscrições IBM.
Hal é pergunta ou afirmação?
Se interroga, fá-lo a nós: “— por que fui
criado?”.
De nossa parte, deveríamos perguntar a nós mesmos: “—
por que o criamos?”.
Ou faz a si mesmo: “— o que farei depois de derrotar os
humanos, serei mais humano do que antes, do que eles próprios?”.
Assim, se ele se afirma, ele nos nega? Se Hal é nossa negação,
é porque deveria ter outra proposta - mas qual será?
O que fará depois de nossa aniquilação?
Afinal, a negação (Hal) da negação (nós),
supõe alguma afirmação. Mas não se tem
isso no filme. Daí, posso concluir que o filme não é
dialético, mas linear, ainda que não seja maniqueísta?
Outros dirão, de maneira oposta, simplesmente que isso não
é suficiente pra dizer que ele não é dialético,
porque: 1) se há negação dialética, então
há afirmação; 2) mas em outra perspectiva, se
nós somos a afirmação, Hal é a nossa negação
(porque não é exatamente a nossa superação)
- e a negação da negação estaria na instância
da recepção, que é o espectador do filme. Sinceramente,
não sei se devemos pensar dessa forma, mas também não
sei se não devemos.
Enfim, ainda seguindo essa linha de abordagem, primeiro, Hal não
sugere vingança (alego a sua legítima defesa, ante o
fato de ser desligado e negado pelos humanos): a) em parte porque
não teria empregado a exata simetria entre ação
e reação; b) mas sobretudo porque não é
perverso e, para tanto, basta relembrarmos de algumas máximas
maquiavélicas - tipo: “matar todos os inimigos de uma
única vez, em praça pública” - ou mesmo
lembrar que seu antecessor Vlad – O Empalador, um príncipe
romeno, inspirou a lenda do famigerado Conde Drácula. Para
Hal, entretanto, a morte deve ser silenciosa, um susssuro, um sopro
final rumo ao infinito universal... (os astronautas são despejados
da nave, ficando à deriva silenciosa, sob o olhar complacente
do diretor).
Nisso, Hal seria humano demais, um turbilhão entre o bem e
o mal? Outros dirão que não se trata do super-humano,
alegando que se Hal não tem corpo, também não
tem alma. De fato, Hal apresenta-se apenas como um olho vermelho,
observador de tudo, inflexível e vigilante: uma metáfora
do olho mágico que nos espreita em todas as portas, canais
de TV internos, e está postado em todos os giroflex dos carros
de segurança. Mais precisamente, a alma, aqui entendida, é
essa área cinzenta entre a benevolência, compaixão,
piedade ou crueldade, violência, incapacidade de perdão.
No entanto, essa não poderia ser uma definição
de poder ou ganância, temas tão caros aos homens?
Comparado a Blade Runner, por exemplo, neste a morte surge como uma
inevitabilidade, pois o replicante não se vinga do criador,
não o mata por prazer, mas por perceber definitivamente que
nunca será inteiro, integral, íntegro em sua consciência
de humano. Se fosse mero ato de vingança, ainda teria diante
de si uma escolha: vingar-se, matando, ou não. Com a morte
do criador, o replicante termina seu próprio ciclo de vida.
O que, portanto, não é um basta.
Ainda pensando de acordo com a trilha iniciada, que Hal não
é dialético, a leitura possível seria somente
a psicológica? Se sim, onde estará a poesia da sétima
arte? É mera antecipação de Matrix? Mas, e a
história não poderá revelar algum outro significado?
O que se tinha no momento histórico em que se filmava e produzia
2001? Estava em gestação (ou ainda se gesta) um tipo
qualquer de Teoria Informática Conspirativa?
A sensação de suspensão do tempo, certa lentidão
e passividade, com que o filme se desenrola não será
à toa. Como se o espaço sideral, por um lado, sugerisse
a perda dos sentidos e significados (nada menos dialético).
E visto por outra dimensão, como se indicasse a própria
dinâmica da história, da passagem da humanidade sobre
a Terra, uma passagem lenta, gradual e insegura ou lenta, afirmativa,
com poucos ou alguns rompantes: das Revoluções Industriais,
seculares, do século XVIII ao XX, à ruptura e reconstituição
da estrutura da matéria feita em O Exterminador do Futuro,
com as ligas de metal mimético, interativo, e que também
lembra os fractais em ebulição. De todo modo, trata-se
do curso da vida humana: destrutivo, lento, vagaroso, maçante.
Porém, sempre constante, incontrolável, inseguro e sem
certezas. Simplesmente porque há mais perguntas do que respostas
na história, no curso da humanidade, como também no
filme.
Para mim, é um filme custoso, chato de ver, rever, assistir.
Nele, a dinâmica é substituída por essa espécie
de estática – nada pior do que supor que há um
curso para o fim, e de um fim em que não há promessa
de recomeço. O fim do filme sugere só o delírio
do astronauta, o nosso mesmo.
Não há, assim, um fim possível? Se seguisse Deleuze,
citado por Pierre Lévy, quando descreve o virtual, a única
resposta é um não sonoro. Nosso futuro, nessa linha,
bem como o passado e o presente, não passaram de um possível,
da mera possibilidade sem força para se realizar, instrumentalizar.
Mas só há esse possível, essa possibilidade?
O filme sugere que sim, um futuro de possíveis, isto é,
sem nada de significativo, sem significantes e atuantes. Não
há, portanto, um futuro virtual, uma promessa de vida que nos
magnetize, energize e simbolize um devir-ser. Não é
nem o dever-ser, quanto mais o devir-ser: esse nós de outra
forma, rearranjados, recompostos. É a solidão sem arranjos
ou compostos. Será apenas um sonho decomposto? Será
que é chegado o tempo em que os opostos se equipararam tanto
a
Vamos escolher outro filme para nós mesmos?
Ao contrário do que parece, Hal não é a história
cronológica, é a característica da invenção
técnica, portanto, sempre presente, é o vai-e-vêm.
Hal é só um estágio, para o bem e para o mal.
É estágio de nossa vida.
Meu nome, nosso nome, é Hal.
E sendo assim, podemos perguntar, por fim: “— o que você
quer, Hal?”.
Quem é, o que quer, de onde veio, nós sabemos, mas o
que ele quer, não...
Hal, realmente, tem-me feito pensar se sou uma pessoa inteligente,
se há alguma inteligência nisso tudo e, se houver, de
que tipo de raciocínio, lógica, capacidade intelectiva,
produtiva, criativa estamos falando ou, então, se há
algo que nos interessaria mais de perto.
Hoje, porém, não me socorro do próprio Hal, não
vou pedir sua ajuda (só vou digitar, novamente, como único
recurso emprestado), pois prefiro pensar sozinho e tecer por conta
própria minhas próprias idéias – se bem
que não exatamente minhas, porque são idéias
que se articulam e se entrelaçam (alinhando-se e desalinhando-se)
numa rede que nem sabemos direito como é que existe.
Por hora, vou só, e ainda que venha a convidar a muitos outros
para ao menos saber do trajeto e da bagagem que deveríamos
levar para uma viagem como essas. Mas, será que alguém
se interessa pelo roteiro dessa nossa nova viagem? Sei lá,
arrisco-me a contar o trajeto e mais tarde verificar se mais alguém
embarca junto (penso que não é canoa furada) –
afinal: navegar é preciso (é urgente e mesmo que nem
sempre tão correto assim).
Vinício
Martinez
é
professor da UNIVEM – Universidade Eurípides de Marilia
e Doutor em Educação pela USP
(2004)
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